Assi recito.
730
Na corte de Castela
731
donde, infanta, assisti sete anos nela,
732
tendo tréguas a Marte concedido
733
os arraiais seguia de Cupido,
734
sendo por vários modos
735
premática entre todos
736
que os que na corte assistem
737
na bandeira de amor logo se alistem,
738
nesta, pois, alistado,
739
sendo de amor soldado
740
comecei a empreender tam alta empresa
741
que os pensamentos pus numa princesa
742
que assistia na corte de Castela,
743
mais suave e mais bela
744
que a rosa que bebeu da fresca aurora
745
as primícias das lágrimas que chora,
746
em fim, era um tesouro,
747
pérolas dentes e palavras ouro,
748
mas pudera este assombro de beleza
749
ser um retrato só de vossa alteza,
750
pois quando a mais louvá-la me atrevera
751
dar-lhe melhor louvor nunca pudera.
752
Esta Raquel divina,
753
beleza perigrina,
754
ai, se nam fora ingrata,
755
beleza que dá vida quando mata,
756
sete anos, que julguei por breve instante,
757
como Jacob servi, servindo amante,
758
mas isto nam me admira
759
porque imagino que inda mais servira
760
se nam fora, ou por breve ou por comprida,
761
para tam largo amor tam curta vida.
762
Foi nosso amor crecendo com o trato,
763
vivendo sempre oculto e com recato,
764
guardado no tesouro de discreto
765
que dura muito amor quando é secreto
766
não se ofendia dele Florisbela,
767
que este era o nome da princesa bela,
768
porque nam há amor tam desvalido
769
que por tíbi,o ou por frouxo, ou por remisso,
770
nam seja pelo menos admitido.
771
Neste, pois, amoroso paraíso,
772
passando amantes calmas,
773
pelos olhos bebíamos as almas,
774
gerando amor, que todo é pensamentos,
775
vários atrevimentos,
776
que são as salamandras que se alentam
777
neste fogo, que os olhos representam.
778
Continuou por tempo este segredo
779
sem ser nunca entendido nosso enredo;
780
nesta correspondência,
781
pouco a pouco apurando-se a paciência,
782
sem outros messageiros
783
mais que os amantes olhos lisonjeiros,
784
eram estes em mi sem esperança
785
por nam ter confiança
786
nesta amorosa empresa
787
de gozar a beleza
788
que via em Florisbela,
789
que era merecer muito o merecê-la.
790
Porém, como o poder de amor se mostra
791
quando tudo a seus pés humilha e prostra,
792
em ter em menos conta a mor grandeza,
793
fez tanto co a princesa
794
que humanos interesses esquecendo,
795
perigos nam temendo,
796
que amor nunca temeu pôr-se a perigo,
797
desprezando a fortuna,
798
fugir comigo trata,
799
por fugir a ocasião de ser ingrata,
800
escolhida a que foi mais oportuna,
801
levando ela consigo
802
as jóias de mor preço,
803
o mais rico vestindo-se adereço,
804
nos saímos da corte,
805
ofrecidos nas mãos de nossa sorte
806
sobre um filho de Zéfiro gerado,
807
de pescoço um pouco alto e levantado,
808
cujas trenças beijavam
809
a terra que as briosas mãos pisavam,
810
de narizes fendidos
811
que vertem fogo quando mais partidos,
812
bem seguro de cascos
813
que velozes romper sabem penhascos,
814
canas grossas, enxutas e tiradas,
815
as ancas grandes e proporcionadas,
816
larga a cola e comprida, o pêlo brando,
817
os olhos bem rasgados, na cor baio.
818
Neste, pois, caminhando,
819
correndo mais fogoso do que raio,
820
em pouco espaço andámos
821
quanto nos foi possível e tratámos
822
de assi pormos em salvo desta sorte
823
as vidas, que o rigor de Henrique forte
824
nos peitos amorosos
825
castigos ameaçava rigorosos.
826
Caminhava o cavalo sempre ufano
827
contra a parte do reino lusitano
828
até chegar a um rio e fresco prado,
829
do caminho geral bem desviado,
830
se há desvios que possam com excesso
831
estrovar da fortuna um mau sucesso.
832
Aqui nos apeámos
833
na margem deste rio que encontrámos,
834
que alegre se desata
835
em céus de cristal, em voz de prata,
836
cujas águas sonoras
837
emudecem as aves mais canoras,
838
a salva se suspende,
839
confuso o bosque atende
840
a tanta melodia
841
quanta forma a corrente doce e fria,
842
a cuja voz suave Florisbela
843
deu tributo a Morfeu quando amor vela.
844
Mas, ai, que pouco dura
845
um gosto limitado, um sono leve,
846
que quem não tem ventura
847
jamais descanso algum em tempo teve
848
Velavam meus sentidos a beleza
849
no tempo em que os dous sóis dormidos via
850
no rosto cristalino da princesa,
851
por não abrasar com três sóis ao dia,
852
quando del rei Henrique alguns vassalos,
853
juntos numa grão tropa de cavalos
854
seguindo-nos da corte,
855
se avançaram connosco desta sorte.
856
Desmaiou este assalto a Florisbela,
857
quis a vida perder em defendê-la,
858
mas a inimiga sorte
859
para sempre morrer me nega a morte,
860
e claramente vejo
861
que há-de fugir de mi, pois a desejo.
862
Vendo-me neste estado,
863
que a princesa me tinham já ganhado,
864
vali-me do cavalo e posto nele
865
antes que algum dos outros me atropele,
866
com denodado alento, ânimo e brio,
867
passei em claro da outra parte o rio,
868
e apertando ao cavalo os acicates
869
despois de ter passado estes combates
870
em breve tempo, sem que mais aguarde
871
por nam ter que temer-me,
872
a Portugal passei a socorrer-me
873
del rei Fernando invicto, que Deos guarde
874
idades largas e felices anos,
875
para assombro fatal dos castelhanos.
876
Aqui el rei costuma sempre honrar-me
877
nos cargos de mais porte
878
que ocupam os maiores desta corte,
879
donde soube, depois que assisto nela,
880
que de puras saudades e tristeza
881
era morta a princesa Florisbela,
882
ai, mal lograda e infeliz beleza,
883
mas não me espanta dor que tam mal trata,
884
porque um grande desgosto também mata.
885
Isto posto de parte,
886
antes que doutro caso mais me aparte,
887
aqui começo agora
888
como se aqui, senhora, Tróia fora.
889
Soube que el rei pretende desposar-vos
890
c’o duque que agora é de Benavente,
891
este enigma pretendo declarar-vos
892
porque o amor que vos tenho não consente
893
que outro, Beatriz fermosa,
894
senão eu, vos receba por esposa.
895
Se por duque, senhora,
896
vos merece mais que eu, é bem que agora
897
sem me ter declarado
898
vos confesse que sou de mor estado
899
do que o de Benavente
900
sendo mais poderoso e mais potente,
901
e se o nome até 'qui tive encoberto
902
é porque sei de certo
903
que Henrique de Castela,
904
porque furtei da corte a Florisbela,
905
solicita tomar vengança disto,
906
sabendo adonde estou ou donde assisto.
907
Agora, infanta, pois quem sou confesso
908
e a verdade sabeis deste sucesso,
909
permiti-me que tenha em tais memórias
910
passadas penas e presentes glórias,
911
que outra maior não quero
912
que amar essa beleza que venero.
913
Prenda, infanta, senhora,
914
rendido a vossos pés me postro agora
915
(Ajoelha-se)
para que essa beleza
916
de mim se compadeça
917
aqui de meus queixumes magoados,
918
aqui de meus sospiros namorados,
919
aqui de meu tormento,
920
aqui de lágrimas minhas cento a cento,
921
aqui de meu amor firme e constante,
922
aqui que morro por morrer amante.