Leonardo Saraiva Coutinho

Contra si faz quem mal cuida





Texto utilizado para esta edição digital:
Saraiva Coutinho, Leonardo. Contra si faz quem mal cuida. Editado por José Camões y José Pedro Sousa para o Centro de Estudos de Teatro, Teatro de Autores Portugueses do Séc. XVII – uma biblioteca digital. http://www.cet-e-seiscentos.com/
Codificação de texto digital para EMOTHE:
  • Tronch Pérez, Jesús

Nota sobre esta ediçao digital

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Comédia famosa Contra si faz quem mal cuida
de Dom Leonardo Saraiva Coutinho, teólogo.
Representou-se na Universidade de Coimbra.


Figuras que falam:

Infante D. João
Dona Maria Teles
Rosa, criada
Medronho, gracioso
Dous embuçados
Dona Leonor, rainha
Infanta Dona Beatriz
Dom Fadrique
Diogo Afonso de Figueiredo
Garcia Afonso, comendador de Elvas
Músicos

[Loa]

Loa que se lançou nesta comédia.

Um Castelhano e um Português.
Sai o Castelhano.

Castelhano
1
No salgo a pedir silencio
2
pera empezar la comedia,
3
mas antes vengo a reírme
4
de los que la representan,
5
porque me han dicho que aquí
6
recitan por cosa nueva
7
una comedia famosa
8
en la lengua portuguesa.
9
¿Quién vio mayor disparate?
10
Pues, de imperfecciones llen,a
11
silbada en vez de aplaudida
12
no puede ser que no sea.
13
Que esto de comedias sólo
14
(por ser la lengua más bella)
15
se debe a la castellana,
16
como a reina de las lenguas.
17
¡Cosa de risa parece
18
que haya en portugués comedia!
19
Daquí me pongo a escucharla
20
pera burlarme de verla.

Sai o Português.

21
Por esta vez lhe suplico,
22
senhor Castelhano, queira
23
franquear-nos livre o teatro
24
por que comece a comédia
25
Contra si faz quem mal cuida,
26
comédia, al fim, portuguesa,
27
porque a língua castelhana
28
já em Portugal não reina,
29
quando a nossa, por suave,
30
por elegante e suprema,
31
a todas leva aventage
32
e sobre todas campea.

Castelhano
33
Sí, mas no me habéis negar
34
que pera esto, es cosa cierta,
35
nacieron los castellanos,
36
que a todos la palma llevan.

Português
37
Será porque em Portugal
38
pera entrarem nas comédias
39
não se acha tanto vadio
40
como quantos tem Castela,
41
e não por falta de engenho,
42
nem da língua portuguesa,
43
pois não tem a castelhana
44
nenhum partido com ela.
45
Vejam-se livros antigos,
46
abram-se histórias modernas,
47
donde autores portugueses
48
(nessas antigas comédias)
49
logo que talvez queriam
50
que se introduzisse nelas
51
diabo, mouro, gentio,
52
bobo, fantasma, quimera
53
e outros redículos mais
54
desta semelhança mesma,
55
quasi sempre em castelhano
56
falavam desta maneira,
57
sendo o mais resto da obra
58
todo em língua portuguesa,
59
como se o mouro, diabo
60
bobo, fantasma, quimera,
61
só falassem castelhano,
62
por virem lá de Castela.

Castelhano
63
Por más, señor Portugués,
64
que acreditéis vuestra lengua,
65
pera esto que llaman cómico
66
la castellana es la reina.
67
¿Ha más bizarría que
68
ver salir echando piernas
69
un castellano, el cual entra
70
aderazando los guantes,
71
componiendo la melena,
72
consertandose el sombrero,
73
la capa de un lado suelta,
74
y luego puesto en tablado
75
en nuestra lengua materna
76
está dando con su gracia
77
alma a cuanto representan?

Português
78
Falar doçuras, amores,
79
dizer requebros, ternezas,
80
recitar branduras, chistes,
81
descrever guerras, tormentas,
82
se tudo isto quereis ver
83
com propriedade e eloquência,
84
satisfeito ficareis
85
ouvindo agora a comédia,
86
ũa verdadeira história
87
das antigas portuguesas.
88
E quando não vos contente,
89
quiçá que somente seja
90
não por defeito da língua
91
mas por falta do poeta,
92
que disso pede perdão,
93
por ser esta a vez primeira
94
que solecita obrigar-vos
95
pera que aplausos mereça.

Vão-se.

Primeira Jornada

96
Fogo, fogo, que se abrasa esta casa,
97
venha água, fogo!

Sai o Infante e Medronho:

Medronho
98
Senhor, fujamos daqui,
99
que abrasa o fogo esta casa.

Infante
100
Outro mais cruel me abrasa
101
de uns belos olhos que vi,
102
a cuja vista rendi
103
a liberdade em rigor,
104
pois não há fogo maior,
105
mais intenso e de mor calma,
106
que aquele que abrasa ũa alma
107
no purgatório de amor.

Medronho
108
Deixa-te dessas quimeras,
109
saiamo-nos daqui logo
110
antes que nos colha o fogo
111
e jogue connosco às peras.
112
Que tens? Que aguardas? Que esperas,
113
tão suspenso e descuidado?
114
Não pretendas, por ousado,
115
seres Tifeu arrogante,
116
porque amor nam é gigante
117
para morrer abrasado.

Infante
118
Oxalá que me abrasara
119
todo esse fogo que vês
120
para que assi de ũa vez
121
a vida se me acabara.
122
Que amor, que em nada repara,
123
como a quem tudo obedece,
124
ver-se abrasado apetece
125
entre esse fogo fatal,
126
só porque dele imortal,
127
como Fénix, renacesse.

Dentro:

128
Fogo, fogo!

Sai Rosa, criada.

Rosa
129
Grão perigo, infante, corre
130
no fogo minha senhora,
131
se vosso valor agora
132
neste aperto a não socorre.
133
Entrai, subi nessa torre
134
antes que nesse edifício
135
entre por algum resquício
136
o fogo que anda ateado,
137
e depois de haver entrado
138
usurpe de Cloto o ofício.

Infante
139
Oh, que ditosa ocasião
140
se me ofrece nesta empresa,
141
para obrigar a beleza
142
que idolatra o coração.
143
Que ũa valente facção
144
merecedora de fama
145
talvez faz com que ũa dama
146
abrande de seu rigor,
147
porque obriga a muito amor
148
quem se arrisca pelo que ama.

Entra-se.

Rosa
149
Tu, Medronho, a teu senhor
150
não vás ajudar? Também
151
entra, seguindo me vem.

Medronho
152
Para quê? Não é melhor
153
noutro perigo maior
154
ver-me por ti arriscado?

Rosa
155
Oh como estás descansado!
156
Entra que inda o fogo dura.

Medronho
157
Sou eu judeu porventura
158
para que morra queimado?
159
De ser Medronho a medonho
160
o pouco que vai nam vês?
161
Pardeos que o medo me fez
162
mui branco, com ser Medronho.
163
Que não sou Moisés (suponho)
164
para, ousado, acometer
165
o fogo que vejo arder,
166
e porque em monte criei-me
167
temo que tanto me queime,
168
que Pirenes venha a ser.
169
Não sabes que a mão um dia
170
a certo astrólogo dei
171
e depois que lha mostrei
172
me disse que morreria
173
se em perigos me metia
174
de fogo?

Rosa
Pois quanto é d’água
175
nunca terei de ti mágoa,
176
que tal azar tens com ela,
177
que antes que beberes dela
178
te arrojarás numa frágua.
179
Bem contigo se pareça
180
o que caindo ũa vez
181
beber certa dama o fez
182
um púcaro de água a pressas;
183
pondo-lhe a mão na cabeça
184
«não foi nada» lhe dizia,
185
mas ele, que isto lhe ouvia,
186
respondeu muito afligido:
187
«e é pouco ter bebido
188
um púcaro d’água fria»?

Medronho
189
Pois já que por não me veres
190
assi com tal acrimónia
191
como os três de Babilónia
192
meter-me no fogo queres
193
vem comigo e não esperes
194
que faça de mim tam tarde
195
por teu amor mor alarde.
196
Porém, deixa-me primeiro
197
confessar-me.

Rosa
           Malhadeiro,
198
entra, não sejas cobarde.

Entram-se por ũa parte e sai pela outra o Infante com Dona Maria nos braços, e logo Medronho com Rosa ao colo.

Infante
199
Livre já do fogo estais,
200
fermosa dona Maria,
201
que com vossa bizarria
202
a tanto amor me obrigais,
203
que quando outra vez volvais
204
a ser ingrata comigo
205
quisera noutro perigo
206
ver-me por vós arriscado,
207
se não sou tão desgraçado
208
que obrigando desobrigo.

Dona Maria
209
Infante, vosso valor
210
muito me chega a obrigar
211
e se me é lícito amar
212
não há dúvida, senhor,
213
que neste fogo apurastes
214
de vosso amor os quilates
215
e nesta casa, talvez,
216
como em jogo de xadrez,
217
ganhais a dama e dais mates.

Infante
218
Perigos, bela senhora,
219
não teme quem tem amor,
220
que não pode ter temor
221
um eos, quando nada ignora.
222
Se por vós somente agora
223
neste fogo me abrasara
224
ser como Pláucio, tomara,
225
com Hostília, porque assim
226
vendo-me abrasar a mim,
227
com outro, um fogo matara.

Dona Maria
228
Tão discreto me obrigais
229
com tal bizarria e gala
230
que amor, que as almas iguala
231
em sujeitos desiguais,
232
cada vez me força mais
233
a que em amorosos laços
234
vos dê honestos abraços,
235
porque bem pode, em rigor,
236
ser de meus braços senhor
237
quem me livrou em seus braços.

Abraçam-se.

Infante
238
Pois que Atlante deste céu
239
me fazeis, bela senhora,
240
gozando já desde agora
241
este amoroso troféu,
242
talvez como Prometeu
243
do fogo me hei de ajudar
244
para com ele abrasar
245
vosso peito desta sorte,
246
que amor é fogo e tam forte
247
que a um mármol faz abrandar.

Dona Maria
248
Ai, infante, quem pudera
249
não ser tam tenra e tam branda
250
que amor, que muito se abranda,
251
tem já condição de cera,
252
e se de seu fogo a esfera
253
na terra está, que pisais,
254
não há para que subais
255
a furtar a doutro céu
256
e a pena de Prometeu,
257
mudado em Proteu, tenhais.

Infante
258
Nunca me posso mudar
259
se não for para querer-vos,
260
porque o mais fora ofender-vos
261
e ser falso em vos amar.
262
Segura podeis estar
263
de que jamais se divida
264
dessa alma que tem unida
265
amor, que é tam verdadeiro,
266
porque sempre o amor primeiro
267
é o que dura na vida.
268
Poder-se-á mudar um monte,
269
produzir aves o mar,
270
nacerem peixes do ar,
271
voltar para trás a fonte,
272
rasgar-se todo o horizonte,
273
ser cada estrela ũa flor,
274
perder o sol o esplendor,
275
ser noite o que é dia agora,
276
antes que vejais, senhora,
277
mudar-se tam firme amor.

Falam à parte.

Medronho
278
Já que do fogo em que estavas
279
ardendo, qual alma em pena
280
como doutra Tróia a Helena,
281
te livrei das chamas bravas,
282
quando menos o cuidavas,
283
bem mereço que cortês
284
essa mão, Rosa, me dês,
285
pois só por livrar-te a ti
286
como Cévola meti
287
no fogo esta mão que vês.

Rosa
288
Dar-te-ei ũa mão-de-gato
289
sem ser d’ouro.

Medronho
Por meu gosto,
290
que essa ponhas no teu rosto,
291
pois sem ser contigo ingrato
292
inda o farei mais barato
293
se tomares um conselho
294
de quem já é perro velho
295
porque me podes, suponho,
296
pôr na boca por medronho
297
e no rosto por vermelho.

Rosa
298
Necessito eu porventura
299
de cor mais bela e graciosa
300
que a que tenho em ser rosa?

Medronho
301
Bem no creo, mas procura
302
com tal graça e fermosura,
303
que das três és a primeira,
304
antes ser rosa-albardeira
305
que rosa-de-Alexandria
306
por que não me dê algum dia,
307
já sabes, calo a viseira.

Rosa
308
Oh, que gracioso estás!

Medronho
309
É meu ofício ser gracioso
310
se bem mui pouco rendoso,
311
porque a ninguém rico faz.

Rosa
312
Que pouco que medrarás
313
com dizer graças tam frias.

Medronho
314
Pois se inda nisso porfias
315
ũa te quero contar
316
que te deve de agradar
317
por não ser de muitos dias.
318
Num palratório de frades
319
quis dizer graças um certo,
320
mas teve tam mau acerto
321
que disse mil necedades
322
cuidando que divindades
323
falou entre alguns sandeus,
324
a tomar parabéns seus
325
na porta donde lhos davam
326
se foi pôr e aos que passavam
327
dizia: «ajudou-me Deos».

Rosa
328
E que parabéns, Medronho,
329
levarás de quem te trata?

Medronho
330
Tenho graça gratis data
331
e de nada me envergonho.

Rosa
332
Por que nam?

Medronho
Porque suponho
333
dizer graças infinitas
334
das que tem Floresta escritas
335
ou quando outrem queira e faça
336
que diga graças sem graça
337
direi que nam estão fritas.

Infante
338
Já desde agora atropelo
339
impossíveis nesta empresa,
340
tendo por prémio a beleza
341
por quem tanto me desvelo.

Dona Maria
342
Infante, com tal desvelo
343
tanto podeis perfiar
344
que inda chegueis a alcançar
345
favores de mor empenho,
346
pois com dar-vos os que tenho
347
nam tenho mais que vos dar.

Infante
348
Tal favor, sem merecê-lo,
349
de vós chego a receber
350
que inda mais do que a morrer
351
passará o agradecê-lo.

Dona Maria
352
Nesse amoroso desvelo
353
com que, Infante, me obrigais
354
quero que agora infirais
355
daqui esta consequência:
356
que em doce correspondência
357
crece amor cada vez mais.

À parte tudo.

Infante
358
(à parte)
Que perigrina beleza!

Dona Maria
359
(à parte)
Que entendimento divino!

Infante
360
(à parte)
Que rosto tam perigrino!

Dona Maria
361
(à parte)
Que presença! Que grandeza!

Infante
362
(à parte)
Que doçura! Que terneza!

Dona Maria
363
(à parte)
Que discreto! Que sutil!

Infante
364
(à parte)
Que bizarra! Que gentil!

Dona Maria
365
(à parte)
Que Cupido! Que Narciso!

Infante
366
(à parte)
Que flor! Que Vénus! Que aviso!

Dona Maria
367
(à parte)
Que ramalhete!

Infante
(à parte)
Que Abril!

Medronho
368
Licença para falar
369
me dem, senhores, agora.

Infante
370
Sai-te, Medronho, lá fora.

Medronho
371
Mais barato me é calar,
372
mas quisera-te avisar
373
que tenho de aconselhar-te
374
para que as galas de Marte
375
pelas de Himineu trocasses
376
e com Rosa me casasses
377
que em tudo quero imitar-te.

Rosa
378
Nam há nécio que nam tenha
379
presunção para falar
380
contigo hei eu de casar?
381
Melhor estrea me venha.

Medronho
382
Esse melindre me empenha
383
a que teu desdém conquiste
384
que pois teu favor me assiste
385
quero tomar-te por dama
386
ou pelo menos por ama
387
que inda há pouco que pariste.

Dona Maria
388
Tam boa cousa, Medronho,
389
achas que é um casamento?

Medronho
390
São mil dias de tormento
391
e assi, senhora, o suponho
392
mas inda que é tam medonho
393
bem será que os atropeles
394
por dous gostos que trás eles
395
se seguem (que mais embebem)
396
um quando os dous se recebem
397
e outro quando morre um deles

Rosa
398
Esse da morte me agrada
399
se contigo me casar.

Medronho
400
Pois à fé que hás de cantar
401
«La bella mal maridada».

Rosa
402
Antes morta que casada.

Medronho
403
Assi dezia ũa dama,
404
de grande opinião e fama,
405
que casar-se não queria
406
e com um negro dormia
407
todas as noites na cama.

Rosa
408
Sempre estás de bom humor
409
e assi não te ponho culpa.

Medronho
410
Tenho em mi mesmo a desculpa
411
em ter tão alegre cor.

Rosa
412
Nem por isso ela é melhor
413
do que a da melancolia
414
porque essa muita alegria
415
(que é pera quem a condena
416
dessimulação da pena)
417
perto está de ser mania.

Dona Maria
418
Al fim, que me amais, senhor?

Infante
419
Vosso, senhora, hei de ser.

Dona Maria
420
Sereis firme?

Infante
Até morrer.

Dona Maria
421
Quem mo abona?

Infante
Meu amor.

Dona Maria
422
Quem mo afirma?

Infante
O ter favor.

Dona Maria
423
Perfiareis?

Infante
Com empenho.

Dona Maria
424
Tereis fé?

Infante
Nisso me empenho.

Dona Maria
425
Serei vossa?!

Infante
E mui querida.

Dona Maria
426
Amareis-me?

Infante
Em toda a vida.

Dona Maria
427
Quem me obriga?

Infante
O amor que tenho.

Dona Maria
428
Pois a Deos, Infante, esposo.

Infante
429
A Deos, prenda, a Deos, amores.

Dona Maria
430
Que fortuna! Que favores!

Infante
431
Que dia! Que venturoso!

Dona Maria
432
Que discreto! Que amoroso!

Infante
433
Que gala! Que fermosura!

Dona Maria
434
Ai que glória e que doçura!

Infante
435
Ai que esperança tam larga!

Dona Maria
436
Ai que pena tam amarga!

Infante
437
Ai que amorosa ventura!

Vão-se.

Medronho
438
Rosa, cuja bela cor
439
é de múrice desdém
440
preso teus olhos me tem
441
no limoeiro de amor,
442
modera de teu rigor
443
porque se preso hei de estar
444
bem posso agora cantar
445
entre grilhões tam esquivos
446
«que tus alfileres vivos
447
me prendieron sin pensar»
448
Deixa de tratar tam mal
449
a quem por ti se desvela,
450
não me faças ramoela
451
como pela c’o cendal.
452
E pois me vês que leal
453
te adoro de coração
454
dói-te desta prisão
455
em que (com tam dura pena)
456
«está metido en la trena
457
tu querido Escarramão».
458
Abracemo-nos a ratos,
459
que, se nos vem, em rigor
460
dirão que está nosso amor
461
como entre perros e gatos.

Rosa
462
Nam me estejas dando tratos,
463
se porfias em me amar
464
é fazer ao demo mangas,
465
que andando a caçar de gangas
466
grillos vendrás a cazar.

Vai-se.

Medronho
467
Oh nunca amor me metera
468
em grosar o Escarramão
469
só porque nesta ocasião
470
por poeta nam perdera
471
a dita que merecera
472
por músico de mão chea
473
se com diferente vea
474
cantasse ao som dum pipote
475
«Aquí lloró don Quixote
476
ausencias de Dulcinea».

Vai-se.
Sai a Rainha.

Rainha
477
Já que por sorte, ou fosse indústria minha,
478
Portugal me obedece
479
por senhora e legítima rainha
480
sem que nada pudesse,
481
a pesar de contrárias resistências.
482
dos astros impedir as influências
483
para que el rei comigo não casasse,
484
com inveja, não mais, que eu reinasse,
485
que quando amor é tam forte
486
que usurpa as armas inda à mesma morte.
487
Agora, pois, que el rei de mi confia
488
o ceptro de toda esta Monarquia,
489
que por achaques que não fazem termo,
490
jaz na cama doente e mui enfermo,
491
para que Portugal no régio ofício
492
possa lograr propício
493
sempre da minha parte,
494
aqui me hei de valer de engenho e arte.
495
Os grandes me murmuram,
496
o reino me moteja,
497
todos juntos procuram
498
que rainha não seja,
499
mas, a pesar da inveja
500
e da sorte importuna,
501
o ceptro hei de reger contra a fortuna.

Sai Diogo Afonso e Garcia Afonso.

Diogo
502
Que dizeis, que sentis dos que no paço
503
murmuram da rainha tam d’espaço?

Garcia
504
Digo que hei de seguir, sem ser covarde,
505
as partes da rainha, que Deos guarde,
506
porque tem, governando o régio ofício,
507
para ganhar vontades artifício.

Rainha
508
(à parte)
Os dous falam de mi; ouvi-los quero,
509
que apurar nas palavras só espero,
510
como próprios espelhos que são d’alma,
511
os segredos que ocultam dentro nela,
512
que é mui certo um descuido em mor cautela.

Diogo
513
El rei que desconfia
514
da saúde que vê lhe vai faltando,
515
a seu poder e mando
516
desta comete o ceptro, monarquia,
517
e os que o reino não querem que lhe entreguem
518
é porque outra facção contrária seguem.

Rainha
519
(à parte)
Estes de mi bem falam,
520
que os corações leais nunca se calam.

Garcia
521
Não há cousa que mais contrária seja
522
nem monstro mais cruel do que a inveja,
523
por isso os que talvez não consintiram
524
que Latona bebesse e lhe impediram
525
que na corrente fria
526
não mitigasse a sede que trazia,
527
dos deuses castigados
528
em rãs todos ficaram transformados.

Diogo
529
Oh quantas rãs houvera
530
se Deos nelas a todos convertera
531
quantos vemos que impedem com grão mágoa
532
que outros tenham também ũa vez d’água.
533
Mas aqui donde estamos
534
está sua majestade a quem buscamos.

Garcia
535
A falar-lhe cheguemos
536
para que estes despachos lhe entreguemos.
537
A vossa majestade
538
a quem venero como a deidade...

Diogo
539
A vós, ilustre sol, que não pudera
540
dá-lo maior a lusitana esfera...

Garcia
541
Em quem tem firme assento
542
de excelências divinas um portento...

Diogo
543
Em quem a natureza
544
cifrou todos os dotes da beleza...

Garcia
545
Quando todo o universo ser pudera
546
para tão grande sol pequena esfera.

Diogo
547
Quando para louvor tam sem segundo
548
é pouca toda a voz de todo o mundo.

Garcia
549
Mas se agora louvar-vos solicito
550
é querer limitar um infinito.

Diogo
551
Fora querer com breve concha, ufano,
552
esgotar os cristais desse oceano.

Rainha
553
Bem está por agora.
554
Cujos são os papéis?

Garcia
555
Estes, senhora,
556
me deu el rei, que o céu invicto guarde,
557
por que para mais tarde
558
nam fiquem os despachos preferidos
559
dos cargos que estão vagos, e providos
560
devem ser todos eles.

Rainha
561
O primeiro
562
lede, Comendador, sendo terceiro,
563
de quem vos parecer que é suficiente
564
para ocupar os cargos que despacho.

Garcia
565
Neste principal acho
566
que está vago presente
567
o cargo de Almirante,
568
sendo tam principal como importante.

Rainha
569
Quem vos parece que esse cargo agora
570
pode ocupar melhor?

Garcia
571
A mi, senhora,
572
o conde dom João Afonso Telo
573
é somente quem pode merecê-lo.
574
E se conselho deve dar quem prima
575
por que seguro viva
576
bem será, quando nisto se recate,
577
que vossa majestade sempre trate
578
de ter por esta via
579
a nobreza de toda a monarquia,
580
pois sendo desta sorte
581
Alcaide-Mor o conde, invicto e forte,
582
da principal cidade que é Lisboa,
583
com esta segurança
584
em perpétua bonança
585
regerá sempre o ceptro e a coroa.

Rainha
586
Pois ao conde esse cargo se lhe aplique.

Diogo
587
Para que lho publique,
588
quando ao conde servir me delibero,
589
daqui partir-me quero
590
com licença de vossa majestade.

Vai-se.

Rainha
591
Deos vos guarde.

Garcia
592
Também de qualidade
593
outro cargo está vago por agora.

Rainha
594
Inda que murmurada seja nisto.

Garcia
595
Este cargo é, senhora,
596
no Mestrado de Cristo.

Rainha
597
Por ser no meu estado
598
quero que a meu sobrinho seja dado.

Garcia
599
Outros estão aqui de menos porte.

Rainha
600
Esses vos despachei, porque na corte
601
de um privado são próprios interesses.

Garcia
602
A terra que pisais beijo mil vezes.

Rainha
603
Vamo-nos pois daqui, que el rei me aguarda.

Garcia
604
Oh, quanto esta privança me acobarda.

Vão-se.
Sai a Infanta e Fadrique.

Fadrique
605
Discreta e gentil infanta
606
em quem contemplo e admiro
607
divinamente um portento,
608
humanamente um prodígio,
609
glória de nossa região,
610
deusa deste paraíso,
611
pelo humano singular,
612
admirável pelo lindo,
613
donde as excelências tem
614
lustrosamente escolhido,
615
para lustre de si mesmas
616
grave assento, firme sítio.
617
Escutai, fermosa infanta,
618
as queixas que vos publico,
619
que enquanto conta seu mal
620
descansa um triste afligido.

Infanta
621
Fadrique, nam deve ser
622
vosso mal muito excessivo
623
que quem se atreve a contá-lo
624
pouco deve de senti-lo.

Fadrique
625
Cada um fala como sente
626
e eu, porque muito sinto,
627
me atrevo a contar meu mal
628
para que em vós ache alívio.

Infanta
629
Aliviar vosso mal
630
nunca podereis comigo,
631
que nam sou a causa dele
632
para poder diverti-lo.

Fadrique
633
Antes porque é vossa alteza
634
a causa aqui lho refiro,
635
para que assim lhe dê fim,
636
pois que lhe sabe o princípio.

Infanta
637
Princípio querem as cousas,
638
Fadrique.

Fadrique
    Verdade é isso,
639
mas contra as que vos proponho,
640
que contra vós verifico,
641
nam podeis argumentar
642
sendo primeiros princípios
643
porque são cousas tam claras
644
estas que, Infanta, vos digo
645
que nam tem flor esse campo,
646
planta esse vale sombrio,
647
aves esse fresco prado,
648
peixes esse verde rio,
649
feras essa bruta selva,
650
brutos esse monte altivo,
651
que ignorem, discreta infanta,
652
quanto vos adoro e estimo,
653
que o fogo de amor nam pode
654
estar coberto e escondido.
655
Esta é a ocasião primeira
656
que, arrojado, vo-lo digo
657
porque, talvez, a fortuna
658
favorece os atrevidos.
659
Se mudas adorações,
660
se secretos sacrifícios,
661
se rendidos pensamentos
662
logram nome de serviços,
663
por prémio deles me basta
664
saber que os haveis sabido,
665
que perdidos ser não podem
666
bem empregados serviços
667
quando, senhora, não tenham
668
por meus, como desvalidos,
669
de desenganados se,
670
de presumidos, castigo.
671
Vós, com afecto piedoso,
672
aceitai o sacrifício,
673
que na aceitação consiste
674
conhecimento preciso.

Infanta
675
Serviços bem empregados
676
nunca podem ser perdidos
677
quando somente o servir
678
é paga de mor serviço.
679
Eu não confesso nem nego
680
que vos queixais sem alívio
681
que bem se pode queixar
682
quem se perde por perdido,
683
mas bem conheço e alcanço
684
nesta queixa e desvario
685
que amor que muito se queixa
686
não tem nada de sofrido,
687
inda que bem se permite
688
desculpa em tal desatino,
689
que desenganada queixa
690
desesperação há sido,
691
e só podeis por remédio
692
entre engano tam esquivo
693
ou sofrer desesperado
694
ou desesperar sofrido.
695
Que nam tem em mi lugar
696
vosso amor vos certifico,
697
porque a nenhũa fortuna
698
se sujeita o alvedrio.

Fadrique
699
Em desengano tam certo
700
inda, infanta, vos suplico
701
que entre mortas esperanças
702
me deis um engano vivo,
703
porque se nam há quem viva
704
sem um engano, imagino
705
que este me falte, talvez,
706
pois de desenganos vivo,
707
mas em ver que por vós peno
708
meu sentimento alivio
709
que o não poder já cair
710
é alívio de caídos,
711
por vós, infanta, me vejo
712
metido em tal labirinto
713
que a vida que vós me dais
714
vejo pendente de um fio
715
e temo que a Parca o corte
716
para exemplo de atrevidos,
717
que arrogantes pensamentos
718
sempre correrão perigos,
719
mas quando em tão alta empresa
720
tenha de Ícaro o castigo
721
ninguém me pode tirar
722
a glória que tenho visto.
723
Que culpa tenho em querer-vos
724
se vós, senhora, haveis sido
725
causa de tantos efeitos
726
e de tanto amor princípio?

Infanta
727
Eu? De que sorte?

Fadrique
               Escutai,
728
que em breve vo-lo refiro.

Infanta
729
Dizei, pois.

Fadrique
     Assi recito.
730
Na corte de Castela
731
donde, infanta, assisti sete anos nela,
732
tendo tréguas a Marte concedido
733
os arraiais seguia de Cupido,
734
sendo por vários modos
735
premática entre todos
736
que os que na corte assistem
737
na bandeira de amor logo se alistem,
738
nesta, pois, alistado,
739
sendo de amor soldado
740
comecei a empreender tam alta empresa
741
que os pensamentos pus numa princesa
742
que assistia na corte de Castela,
743
mais suave e mais bela
744
que a rosa que bebeu da fresca aurora
745
as primícias das lágrimas que chora,
746
em fim, era um tesouro,
747
pérolas dentes e palavras ouro,
748
mas pudera este assombro de beleza
749
ser um retrato só de vossa alteza,
750
pois quando a mais louvá-la me atrevera
751
dar-lhe melhor louvor nunca pudera.
752
Esta Raquel divina,
753
beleza perigrina,
754
ai, se nam fora ingrata,
755
beleza que dá vida quando mata,
756
sete anos, que julguei por breve instante,
757
como Jacob servi, servindo amante,
758
mas isto nam me admira
759
porque imagino que inda mais servira
760
se nam fora, ou por breve ou por comprida,
761
para tam largo amor tam curta vida.
762
Foi nosso amor crecendo com o trato,
763
vivendo sempre oculto e com recato,
764
guardado no tesouro de discreto
765
que dura muito amor quando é secreto
766
não se ofendia dele Florisbela,
767
que este era o nome da princesa bela,
768
porque nam há amor tam desvalido
769
que por tíbi,o ou por frouxo, ou por remisso,
770
nam seja pelo menos admitido.
771
Neste, pois, amoroso paraíso,
772
passando amantes calmas,
773
pelos olhos bebíamos as almas,
774
gerando amor, que todo é pensamentos,
775
vários atrevimentos,
776
que são as salamandras que se alentam
777
neste fogo, que os olhos representam.
778
Continuou por tempo este segredo
779
sem ser nunca entendido nosso enredo;
780
nesta correspondência,
781
pouco a pouco apurando-se a paciência,
782
sem outros messageiros
783
mais que os amantes olhos lisonjeiros,
784
eram estes em mi sem esperança
785
por nam ter confiança
786
nesta amorosa empresa
787
de gozar a beleza
788
que via em Florisbela,
789
que era merecer muito o merecê-la.
790
Porém, como o poder de amor se mostra
791
quando tudo a seus pés humilha e prostra,
792
em ter em menos conta a mor grandeza,
793
fez tanto co a princesa
794
que humanos interesses esquecendo,
795
perigos nam temendo,
796
que amor nunca temeu pôr-se a perigo,
797
desprezando a fortuna,
798
fugir comigo trata,
799
por fugir a ocasião de ser ingrata,
800
escolhida a que foi mais oportuna,
801
levando ela consigo
802
as jóias de mor preço,
803
o mais rico vestindo-se adereço,
804
nos saímos da corte,
805
ofrecidos nas mãos de nossa sorte
806
sobre um filho de Zéfiro gerado,
807
de pescoço um pouco alto e levantado,
808
cujas trenças beijavam
809
a terra que as briosas mãos pisavam,
810
de narizes fendidos
811
que vertem fogo quando mais partidos,
812
bem seguro de cascos
813
que velozes romper sabem penhascos,
814
canas grossas, enxutas e tiradas,
815
as ancas grandes e proporcionadas,
816
larga a cola e comprida, o pêlo brando,
817
os olhos bem rasgados, na cor baio.
818
Neste, pois, caminhando,
819
correndo mais fogoso do que raio,
820
em pouco espaço andámos
821
quanto nos foi possível e tratámos
822
de assi pormos em salvo desta sorte
823
as vidas, que o rigor de Henrique forte
824
nos peitos amorosos
825
castigos ameaçava rigorosos.
826
Caminhava o cavalo sempre ufano
827
contra a parte do reino lusitano
828
até chegar a um rio e fresco prado,
829
do caminho geral bem desviado,
830
se há desvios que possam com excesso
831
estrovar da fortuna um mau sucesso.
832
Aqui nos apeámos
833
na margem deste rio que encontrámos,
834
que alegre se desata
835
em céus de cristal, em voz de prata,
836
cujas águas sonoras
837
emudecem as aves mais canoras,
838
a salva se suspende,
839
confuso o bosque atende
840
a tanta melodia
841
quanta forma a corrente doce e fria,
842
a cuja voz suave Florisbela
843
deu tributo a Morfeu quando amor vela.
844
Mas, ai, que pouco dura
845
um gosto limitado, um sono leve,
846
que quem não tem ventura
847
jamais descanso algum em tempo teve
848
Velavam meus sentidos a beleza
849
no tempo em que os dous sóis dormidos via
850
no rosto cristalino da princesa,
851
por não abrasar com três sóis ao dia,
852
quando del rei Henrique alguns vassalos,
853
juntos numa grão tropa de cavalos
854
seguindo-nos da corte,
855
se avançaram connosco desta sorte.
856
Desmaiou este assalto a Florisbela,
857
quis a vida perder em defendê-la,
858
mas a inimiga sorte
859
para sempre morrer me nega a morte,
860
e claramente vejo
861
que há-de fugir de mi, pois a desejo.
862
Vendo-me neste estado,
863
que a princesa me tinham já ganhado,
864
vali-me do cavalo e posto nele
865
antes que algum dos outros me atropele,
866
com denodado alento, ânimo e brio,
867
passei em claro da outra parte o rio,
868
e apertando ao cavalo os acicates
869
despois de ter passado estes combates
870
em breve tempo, sem que mais aguarde
871
por nam ter que temer-me,
872
a Portugal passei a socorrer-me
873
del rei Fernando invicto, que Deos guarde
874
idades largas e felices anos,
875
para assombro fatal dos castelhanos.
876
Aqui el rei costuma sempre honrar-me
877
nos cargos de mais porte
878
que ocupam os maiores desta corte,
879
donde soube, depois que assisto nela,
880
que de puras saudades e tristeza
881
era morta a princesa Florisbela,
882
ai, mal lograda e infeliz beleza,
883
mas não me espanta dor que tam mal trata,
884
porque um grande desgosto também mata.
885
Isto posto de parte,
886
antes que doutro caso mais me aparte,
887
aqui começo agora
888
como se aqui, senhora, Tróia fora.
889
Soube que el rei pretende desposar-vos
890
c’o duque que agora é de Benavente,
891
este enigma pretendo declarar-vos
892
porque o amor que vos tenho não consente
893
que outro, Beatriz fermosa,
894
senão eu, vos receba por esposa.
895
Se por duque, senhora,
896
vos merece mais que eu, é bem que agora
897
sem me ter declarado
898
vos confesse que sou de mor estado
899
do que o de Benavente
900
sendo mais poderoso e mais potente,
901
e se o nome até 'qui tive encoberto
902
é porque sei de certo
903
que Henrique de Castela,
904
porque furtei da corte a Florisbela,
905
solicita tomar vengança disto,
906
sabendo adonde estou ou donde assisto.
907
Agora, infanta, pois quem sou confesso
908
e a verdade sabeis deste sucesso,
909
permiti-me que tenha em tais memórias
910
passadas penas e presentes glórias,
911
que outra maior não quero
912
que amar essa beleza que venero.
913
Prenda, infanta, senhora,
914
rendido a vossos pés me postro agora
915
(Ajoelha-se)
para que essa beleza
916
de mim se compadeça
917
aqui de meus queixumes magoados,
918
aqui de meus sospiros namorados,
919
aqui de meu tormento,
920
aqui de lágrimas minhas cento a cento,
921
aqui de meu amor firme e constante,
922
aqui que morro por morrer amante.

Infanta
923
Fadrique, vida, amor, mas, ai, que digo?
924
(à parte)
que não sei donde estou, se estou comigo,
925
que tenro se há mostrado,
926
que amante, que rendido e namorado.
927
Estou para o abraçar, piedosa e humana
928
se não fora mostrar-me aqui liviana,
929
mas quanto mais me obriga com amar-me
930
não posso ter-lhe amor nem sujeitar-me
931
a lhe corresponder agradecida,
932
que de amores do Infante estou perdida.
933
Assi que agora quero aqui fingir-me
934
muito queixosa com deixá-lo e ir-me.
935
Fadrique, vosso louco atrevimento
936
se agora o não castigo é porque intento
937
vingar-me desta sorte,
938
fazendo desterrar-vos desta corte,
939
que quem traidor tem sido
940
a seu rei natural pode, atrevido,
941
ser traidor, fementido e lisonjeiro
942
a qualquer outro rei sendo estrangeiro.

Vai-se.

Fadrique
943
Aguarde, escute, advirta vossa alteza...
944
ai que sorte cruel, ai que dureza
945
ea, fortuna ingrata,
946
aqui me tens agora, aqui me mata
947
ea, tirano amor, ea, arrogante,
948
amar vivendo por morrer amante,
949
pois vejo desta sorte
950
que tudo é vida, amor, desamor, morte.

Vai-se.
Sai Dona Maria com Rosa.

Dona Maria
951
Publicarei minha dor?

Rosa
952
Por amor.

Dona Maria
953
Pois quem me tolhe e põe medo?

Rosa
954
O segredo.

Dona Maria
955
E quem manda que padeça?

Rosa
956
A firmeza.

Dona Maria
957
Logo, se em tal aspereza
958
a vida venho a passar,
959
tenho por certo acabar
960
de amor, segredo e firmeza.
961
Como vivirei penando?

Rosa
962
Amando.

Dona Maria
963
E para não afligir-me?

Rosa
964
Ser firme.

Dona Maria
965
Ser firme é morrer de amante?

Rosa
966
Por constante.

Dona Maria
967
Pois logo ninguém se espante
968
que descubra meu querer
969
se é que hei-de vir a morrer
970
amando, firme e constante.
971
Descobrirei afeição?

Rosa
972
Em ocasião.

Dona Maria
973
E que ocasião é melhor?

Rosa
974
A de amor.

Dona Maria
975
Amor quando ma assegura?

Rosa
976
Na ventura.

Dona Maria
977
Por isso meu mal procura
978
que a vida venha acabar
979
antes que chegue a gozar
980
ocasião, amor, ventura.
981
Quem de amor ventura alcança?

Rosa
982
A esperança.

Dona Maria
983
Quando gozada se vê?

Rosa
984
Com ter fé.

Dona Maria
985
E quem gozá-la confia?

Rosa
986
A perfia.

Dona Maria
987
Logo com justa alegria
988
darei remédio a meu mal
989
tendo amor para imortal
990
esperança, fé, perfia.
991
Serei, se venho a ser tal,...

Rosa
992
Sem igual.

Dona Maria
993
Hei-de ser conrespondida?

Rosa
994
Mui querida.

Dona Maria
995
Virei a ser desamada?

Rosa
996
Mais amada.

Dona Maria
997
Logo dou por bem pagada
998
pena que padecer
999
pois espero vir a ser
1000
sem igual, querida e amada.

Sai Medronho.

Medronho
1001
Um lugar de Barrabás
1002
é a corte para nós:
1003
há mercê, há tu, há vós
1004
y trecientas cosas más,
1005
há cavaleiros andantes,
1006
há homens de maus semblantes,
1007
há forçantes,
1008
guarda-infantes,
1009
muita soma de ignorantes,
1010
também muito mentecapto,
1011
homens qui vivunt ex rapto,
1012
unhas de gato,
1013
maldicentes,
1014
damas com postiços dentes,
1015
há barrigas alũadas
1016
com minguantes e crecentes,
1017
donzelas mal maridadas,
1018
guitarradas
1019
por não dizer violadas,
1020
há em todas quantas acho
1021
emprastos de incenso macho,
1022
há donzelas quinquagésimas
1023
que de tudo pedem décimas,
1024
devotas de São Tomás
1025
y trecientas cosas más,
1026
há podengos
1027
cantos sengos
1028
e poetas bordalengos
1029
há num poleiro dous galos,
1030
intendimentos cavalos,
1031
há nos estrados coxins,
1032
munchachins,
1033
arreliquins,
1034
bodegões,
1035
requeijões,
1036
cuscuz quente,
1037
laranjada e aguardente,
1038
há geração dos Fialhos,
1039
barba d’alhos
1040
e cabeças de bugalhos,
1041
há bruxas e feiticeiras,
1042
muitos amantes de freiras
1043
todos nécios namorados,
1044
há telhas em os telhados,
1045
há damas tam atiladas
1046
que abrem as bolsas tapadas,
1047
e todos por modos vários
1048
tem cada dia ordinários,
1049
há tendas de lapidários,
1050
unguentos e boticários
1051
e tavernas de Hipocrás
1052
y trecientas cosas más.

Rosa
1053
Adonde, Medronho, vás
1054
com tal arenga?

Medronho
1055
É de um cego
1056
certa oração que comprei
1057
que todos os dias rezo.

Dona Maria
1058
Donde fica teu senhor,
1059
Medronho?

Medronho
     Senhora, creo
1060
que estará sonhando em ti
1061
se acaso dormindo o deixo,
1062
porque agora dormem muito
1063
os amantes deste tempo,
1064
e eu por mim somente o julgo
1065
pois durmo mais do que um bêbado,
1066
mas que muito me embebede
1067
se é medronho o amor que tenho.

Rosa
1068
E que bem com tal amor
1069
granjearás um casamento
1070
pois pera seres cornudo
1071
é o sono o melhor meo,
1072
mas se dormes quanto dizes
1073
já desde agora te vejo
1074
dormir sono de cornudo.

Medronho
1075
Nada disso me receo
1076
que se bem todo o cornudo
1077
tem dous contra um espero
1078
ter sempre mui boa mesa.

Rosa
1079
Cornicabras pelo menos
1080
nunca te faltarão nela.

Medronho
1081
Oxalá, mas se pretendo
1082
casar contigo bem posso
1083
dizer o que diz um certo
1084
que vendo que lhe deziam,
1085
por caso mui verdadeiro,
1086
que a molher lhe punha os cornos
1087
respondeu, como discreto:
1088
«inda mal que não tem ela
1089
cara para isso» e isto mesmo
1090
presumo dizer de ti.

Rosa
1091
Isso, pícaro, mereço
1092
pois te não dou mil punhadas.

Medronho
1093
Tem-te, não me piques, quedo,
1094
porque és Rosa com espinhas.

Dona Maria
1095
Basta, Rosa, nécia, deix’-ò

Rosa
1096
Se não fora...

Medronho
       Muito sentes
1097
chamar-te fea, mas creo
1098
que te acertei com o nome

Rosa
1099
Que isto sofre e não lhe quebro...

Medronho
1100
Não te agastes.

Rosa
          A cabeça.

Medronho
1101
Serás discreta em extremo
1102
mas a ti, senhora minha,
1103
esta vez te rogo e peço
1104
que em paga deste papel
1105
que te trago com segredo,
1106
que é do Infante meu senhor,
1107
me faças, pois to mereço,
1108
amigo outra vez com Rosa,
1109
que pedir-lhe perdão quero.

Dona Maria
1110
Por mim, que sejais amigos.

Rosa
1111
Eu por sua me confesso.

Medronho
1112
E eu por seu me publico.

Dona Maria
1113
Romper esta nema quero
1114
para ler este papel
1115
que espelhos do intendimento
1116
são os escritos de amor
1117
estas cifras que contemplo
1118
como caracteres d’alma
1119
adonde estão sempre impressos
1120
assi dizem desta sorte,
1121
ânimo, amor, que vencemos.
(Lê o papel.)
1122Se quereis que não perca a vida quem só vive de querer-vos, dai-me licença para ver-vos esta noite, porque com mais olhos de estrelas possa contemplar vossa fermosura. O Infante.
-->
1123
Já vejo neste papel
1124
que aqui recitado tenho
1125
equívocos os sentidos
1126
entre amoroso e discreto.

Rosa
1127
Adverte que sai sua alteza.

Dona Maria
1128
Dizes bem, com pressa quero
1129
esconder este papel.
1130
Vai-te, Medronho, primeiro
1131
que te veja, e a teu senhor
1132
dirás que esta noite o espero.

Medronho
1133
A servir-te me disponho
1134
e vou, senhora, correndo.

(Vai-se)

Dona Maria
1135
Sai-te, também, Rosa, fora.

Rosa
1136
Desta sorte te obedeço.

(Vai-se)
Sai a Infanta.

Infanta
-->
1137
Zéfiros suaves
1138
desta fresca selva
1139
que correndo alegres
1140
levais tristes queixas
-->
1141
brincadas boninas
1142
graciosas e belas
1143
que teceis grinaldas
1144
para a Primavera
-->
1145
cristalinas fontes
1146
claras e serenas
1147
que as cheirosas flores
1148
guarneceis de perlas
-->
1149
Lisonjeiras aves
1150
suaves e ledas
1151
que vos queixais tristes
1152
e não sentis queixas
-->
1153
parai, suspendei,
1154
escutai suspensas
1155
por que meus queixumes
1156
canteis em endechas.

Dona Maria
-->
1157
Se às almas mortais
1158
pede vossa alteza
1159
para seus queixumes
1160
queixosas endechas
1161
bem pode queixar-se
1162
que eu a escuito atenta
1163
que uma alma inmortal
1164
melhor sente penas.

Infanta
-->
1165
Meu mal desacredito
1166
se aqui queixar-me dele solicito
1167
que medir com a voz o sentimento
1168
é nam saber sentir de seu tormento.

Dona Maria
1169
Acordo-me que um dia
1170
li de um sábio, senhora, que dezia
1171
que a troco de queixar-se
1172
haviam as desditas de buscar-se
1173
e assi cuido que agora
1174
também deves de ser. Amas, senhora?

Infanta
1175
Amor tenho ao infante
1176
a quem adoro e idolatro, amante.

Dona Maria
1177
Ai Deos, que ao Infante estima,
1178
nam sei como esta mágoa me reprima.

Infanta
1179
E para não cansar-te
1180
quero meu pensamento declarar-te:
1181
sabe, pois, que um recado
1182
ao Infante dom João tenho mandado
1183
pera que nesta noite a ver-me venha
1184
que me importa falar-lhe e é bem que tenha
1185
de meu amor notícia
1186
que todo é guerra em mi, todo milícia.

Dona Maria
1187
Oh que lance tão forte
1188
que ocasiono ciúmes que dão morte.
1189
Não sei se fazes bem em declarar-teI
1190
que pode amar o Infante noutra parte.

Infanta
1191
Quando outra dama adore
1192
farei com que de mi só se enamore.

Dona Maria
1193
Que não farás, te juro.
1194
Que tod'o amor primeiro é mais seguro
1195
e não pode acabar-se
1196
amor que se empenhou por empenhar-se.

Infanta
1197
Vamo-nos, pois, que é tarde
1198
e pode ser que o Infante já me aguarde.

Dona Maria
1199
Oh nunca amor nacera
1200
se nacido não fora não morrera.

Vão-se.
Sai o Infante.

Infante
1201
Indiscreta anda a Infanta se me chama
1202
pois não sabe que amor que todo é chama
1203
para nunca acabar-se
1204
na própria esfera sabe só parar-se
1205
assi que vou buscando neste ocaso
1206
esta esfera de fogo em que me abraso
1207
que pois tanto a venero
1208
subir a região do fogo espero
1209
é amor lisonjeiro
1210
temerário, Tiseu, Marte guerreiro
1211
que audaz/andas meu pensamento
1212
asas vestido se calçado vendo
1213
Faetonte atrevido
1214
Ícaro presumido
1215
águia voadora
1216
que a tanta luz que adora
1217
desta vez solicita,
1218
que um desejo impossíveis solicita,
1219
penetrar o divino de seus raios
1220
a cuja vista o sol fica em desmaios
1221
mas que muito se afronta o sol de vê-los
1222
sendo estes raios doutros sóis mais belos.

Sai Fadrique.

Fadrique
1223
Acompanhar-vos quero, Infante amigo,II
1224
porque se acaso houver algum perigo
1225
nessa pretensão vossa
1226
acompanhar-vos nela também possa.

Infante
1227
Suplico-vos, Fadrique, em cortesia
1228
que me deixeis ir só, sem companhia.

Fadrique
1229
Bem conheceis, Infante,
1230
quanto secreto sou e quanto amante
1231
pera o posto guardar-vos
1232
determino esta vez de acompanhar-vos.

Infante
1233
Não quero porfiar.

Fadrique
É cousa justa.

Infante
1234
Ai quantas penas que ũa glória custa.

Vão-se.
Saem dous Embuçados.

Embuçado I
1235
Aqui juntos paremos
1236
a ver se passa alguém a quem furtemos
1237
ũa capa sequer.

Embuçado II
Hei de roubá-la
1238
ou quando não puder, acutilá-la.

Embuçado I
1239
Eu a capa que trago anda mais rota
1240
que a mesma consciência que a denota.

Embuçado II
1241
Não vamos nós buscar algũa capa
1242
e tragamos por capa ũa gualdrapa.

Embuçado I
1243
Nada disso temamos
1244
porque nós puramente capeamos
1245
mas esperai que hei visto
1246
três homens desta vez, por Jesu Cristo.

Embuçado II
1247
Capas são, não duvido,
1248
que nos cornos do touro tem caído.

Sai o Infante, Fadrique e Medronho com espadas e broquéis.

Infante
1249
Alegre noite fria
1250
que em teus braços descansa o claro dia
1251
noite serena e clara
1252
com teu manto estelífero me ampara.

Embuçado I
1253
Larguem logo essas capas, cé, fidalgos.

Medronho
1254
Por Deos, que nos colheram como galgos

Embuçado II
1255
Cá, senhores, cá.

Infante
               Desta sorte
1256
lhe daremos as capas com a morte.

Embuçado I
1257
Morram todos, por Cristo.

Medronho
1258
Pardês, que noutra tal nunca me hei visto.

Fadrique
1259
Desta espada os rigores
1260
exprimentam cobardes e traidores.

Infante
1261
A eles, que sou raio.

Fadrique
1262
E eu corisco.

Medronho
1263
Mata, mata.

Embuçado II
1264
Fujamos.

Medronho
Por são pisco.
1265
que também nas comédias são mil vezes
1266
valentes os lacaios portugueses.

Vão-se acutilando todos e entram-se.
Sai a Infanta à janela com Dona Maria Teles e Rosa.

Infanta
-->
1267
Noite venturosa
1268
alegre e serena
1269
capa de cobardes
1270
de amantes terceira.
-->
1271
Noite em quem descansam
1272
de cansadas penas
1273
humanas fadigas
1274
amorosas queixas.
-->
1275
Noite em quem concedem
1276
aos cuidados tréguas
1277
as vidas que lidam
1278
as almas que penam.
-->
1279
Não me mexeriques
1280
desta acção travessa
1281
de dia ao sol
1282
de noite às estrelas.
-->
1283
Amparem-me, noite,
1284
tuas asas negras
1285
por que nas da fama
1286
meu amor nam leão.

Dona Maria
-->
1287
Que rigoroso é meu mal
1288
que cruel é minha estrela
1289
pois chego a ver com meus olhos
1290
o que jamais ver quisera.

Infanta
1291
Cuidado me dá o Infante
1292
pois é tão tarde e não chega.

Dona Maria
1293
Sempre correm devagar
1294
as horas a quem espera.

Sai Fadrique.

Fadrique
1295
Morto ficara o ladrão
1296
se dos pés se não valera
1297
correr o vi mais que um gamo
1298
custou-lhe cara a pendência
1299
aqui pelo Infante espero
1300
que se foi cenando nela
1301
e com as sombras da noite
1302
não vi onde se metera.

Rosa
1303
Gente vejo àquela parte.

Infanta
1304
Quiçá que o Infante seja
1305
dize-lhe, Rosa, que chegue.

Dona Maria
1306
A morte aqui se me ordena

Rosa
1307
Ah fidalgo, cé.

Fadrique
1308
Quem chama?

Rosa
1309
É o Infante?

Fadrique
1310
Aqui é ela?
1311
Fingir-me o Infante quero.

Rosa
1312
Não fala?

Fadrique
1313
Saber quisera
1314
quem pergunta pelo Infante.

Muda a fala.

Infanta
1315
Quem por ele se desvela

Fadrique
1316
Viva Deos, que esta é a infanta
1317
pois o infante sou, que chega
1318
a pagar favor tam grande
1319
ah ingrata, quem dissera
1320
(à parte)
que assi pagasses tam falsa
1321
ũa fé tam verdadeira.

Infanta
1322
Que vos adoro, Infante,
1323
bem o deveis saber, passo adiante
1324
porque se o não soubéreis
1325
amante pouco firme parecêreis
1326
que os olhos lisonjeiros
1327
são de amor os espelhos verdadeiros
1328
e se livro os chamar não é delito
1329
sendo a margem o branco, o negro o escrito
1330
e nos meus lestes como em livro aberto
1331
que não pode o amor ser incobertos
1332
sentindo seus afectos
1333
por natural, pensam só dos discretos
1334
em fim, sabe infante
1335
queimando morro porque vivo amante.

Fadrique
1336
Dentro em meu peito atesouro
1337
esse amor, como discreto,
1338
porque só o amor secreto
1339
se pode ter por tesouro
1340
mas seu valor nam desdouro
1341
se calo dentro na idea
1342
efeitos que a alma recea
1343
declarar, não sem temor,
1344
pois nam há pena maior
1345
como amar a ũa alma alhea.

Infanta
1346
Alhea não pode ser,
1347
quando tal nome mereça,
1348
ũa alma que vos confessa
1349
querer e só por querer
1350
vós senhor bem podeis ver
1351
que em vos amar sou constante
1352
e nam duvideis, infante,
1353
que faça meu amor pausa
1354
porque duvidar sem causa
1355
é delito num amante.

Fadrique
1356
Pois que chego a merecer
1357
tal prémio antes de servir-vos
1358
nam tenho mais que pedir-vos
1359
nem vós que me conceder
1360
se não hei de endoudecer
1361
quando em tal glória imagino
1362
nam tenho por bom destino
1363
não fazer um grande excesso
1364
porque um ditoso sucesso
1365
acredita um desatino.

Dona Maria
1366
Ouves, Rosa, o que lhe diz?

Rosa
1367
Todo nela se esmoreceu.

Dona Maria
1368
Ah, ingrato.

Rosa
1369
Quem tal cresce.

Dona Maria
1370
Mal em declarar-me fiz.

Sai o Infante e Medronho.

Infante
1371
Seguir um dos ladrões quis
1372
mas as costas me virou.

Medronho
1373
Atilado nisso andou
1374
que se as costas nam virara
1375
eu só lhe cruzara a cara.

Infante
1376
Foi-se Fadrique?

Medronho
1377
Voou.

Infante
1378
Gente vejo aparecer.

Fadrique
1379
Este é o Infante que espero.
1380
(à parte)
Ir-me retirando quero
1381
sem me dar a conhecer.

Infanta
1382
Antes que cheguem a ver,
1383
Infante, quem aqui está
1384
retirar-vos bom será.

Fadrique
1385
Pois vós me mandais, senhora,
1386
retirar-me quero agora.

Infanta
1387
Adeus, Infante.

(Vai-se).

Fadrique
1388
Aqui já
1389
que espero quero escapar-me.

(Vai-se).

Dona Maria
1390
Deixa-me, Rosa, que agora
1391
hei de afrontá-lo.

Rosa
1392
Senhora.

Dona Maria
1393
Não tens mais que porfiar-me
1394
que não sofro desprezar-me
1395
um traidor. Esta é, Infante,
1396
aquela fé tam constante?
1397
Isto é firmeza? Isto amor?

Medronho
1398
Ela é, chega, senhor,
1399
nam sejas cobarde amante.

Põe-se o Infante aonde estava Fadrique.

Infante
1400
Amores, meu bem, senhora
1401
a quem amante e rendido.

Dona Maria
1402
Ah traidor, ah fementido
1403
que assi me trates agora
1404
despois de estares um hora
1405
com mil requebros e amores
1406
com a Infanta?

Infante
1407
Que favores
1408
nem qual Infanta, também?
1409
Deixai-vos desse desdém
1410
e abrandai tantos rigores.
1411
Apurar mais meu amor
1412
não pretendais dessa sorte
1413
dando-me vida na morte
1414
sustento do mesmo ardor
1415
quem viu fineza maior
1416
de amor que nam desfalece
1417
antes com rigores crece
1418
mas nisto venho a alcançar
1419
que nam se sabe mudar
1420
quem ama sem interesse.
1421
Desta que espero vitória
1422
tanto me cansa a peleja
1423
que temo que a morte veja
1424
antes que chegue tal glória
1425
nesta esperança e memória
1426
que amor por troféu aguarda
1427
o temor não me acobarda
1428
nem a perfia me altera
1429
que o prémio que não se espera
1430
nunca parece que tarda.

Dona Maria
1431
Dar-te n’alma uma ferida,
1432
falso amante, desejara
1433
por ser de quem me agravara
1434
injustamente homicida
1435
não me vejas toda a vida
1436
nem trates mais de querer I
1437
que somente com viver
1438
porque matar-te pudera
1439
ser basilisco quisera
1440
porém não pera te ver.

(Vai-se).

Infante
1441
Aguarda, detém-te, espera
1442
quem viu desgraça maior?
1443
Foi-se, Medronho.

Medronho
1444
Senhor.
1445
correndo como ũa fera.

Infante
1446
Entrar trás ela quisera
1447
que de paixão desatino
1448
mas vamo-nos, que imagino
1449
que hei de perder o sentido.

Medronho
1450
Pois dá-o já por perdido
1451
que amor todo é desatino.

Vão-se.

Segunda Jornada

Sai a Infanta com Dona Maria, pegadas de um papel.

Infanta
1452
Solta o papel.

Dona Maria
É cansar-te
1453
se nessa perfia dás.

Infanta
   Porquê?

Dona Maria
1454
Porque o não lerás.

Infanta
1455
Por vida del rei, hei de dar-te.

Dona Maria
1456
Não jures.

Infanta
   Pois com tomar-te
1457
este papel desta sorte
1458
veremos qual é mais forte.
1459
Solta.

Dona Maria
Jesus, que cruel.

Infanta
1460
Já vejo neste papel
1461
sentença de minha morte.

Dona Maria
1462
Pois aí verás quanto a vida
1463
desejo dar-te, senhora,
1464
antes do que ser agora
1465
tua cruel homicida,
1466
mas daqui fica advertida
1467
para que noutro perigo
1468
não sejas cruel comigo,
1469
pois nisto vens a entender
1470
que talvez inda é bom ter
1471
té o verdugo por amigo.

Infanta
1472
Bem dizes, pois, sem engano,
1473
isso que afirmando estás
1474
neste papel que me dás
1475
apuro este desengano,
1476
e quando, como tirano
1477
verdugo, intente acabar-me,
1478
quero aqui reconciliar-me
1479
com ele, já que, cruel,
1480
c’uma bala de papel
1481
pretende agora matar-me,
1482
neste como em branco vaso
1483
apurei mais o veneno
1484
com que mortalmente peno
1485
no fogo em que aqui me abraso,
1486
e bem vejo neste acaso
1487
quanta ũa desgraça é forte,
1488
pois por ter no papel morto
1489
fez que o prémio se trocasse
1490
e em branco a tenção ficasse
1491
por sair em negro a sorte;
1492
consigo traz o veneno
1493
este papel, que é do infante,
1494
retrato de um falso amante
1495
por quem tanto sinto e peno,
1496
nele meu amor condeno
1497
por pouco considerado,
1498
mas que muito, se arrojado,
1499
quis de tal sorte empenhar-se
1500
que antes de desempenhar-se
1501
se julgou mal empenhado.
1502
E tu, que atrevidamente
1503
me ocasionas esta dor,
1504
adverte que é meu amor
1505
tão mal sofrido e paciente
1506
que a nenhum outro consente
1507
de qualquer sorte e aparência
1508
que em doce conrespondência
1509
queira com ele igualar-se,
1510
porque saberá vingar-se
1511
de quem lhe faz competência.

Faz que se vai.

Dona Maria
1512
Aguarda, detém-te, espera,
1513
que se presumes vingar-te
1514
bom será desenganar-te
1515
dessa, que formas, quimera.
1516
Pois quando em vingar-te, fera,
1517
me desprezes, tão cruel,
1518
quero que neste papel,
1519
como instrumento de amor,
1520
leas que o meu é milhor
1521
pois tem melhor aranzel.

Infanta
1522
Que dizes, estás em ti,
1523
que assi falas dessa sorte?

Dona Maria
1524
Dizes bem, que mal tão forte
1525
me faz não estar em mi,
1526
mas quero, infanta, que aqui
1527
isto te não esquecesse,
1528
que se amor ao trato crece
1529
e nace dele, é melhor
1530
amor que nace de amor
1531
que o que nace de interesse.

Infanta
1532
Logo, posso claramente
1533
inferir de provas tais
1534
que de interesse, não mais,
1535
nace meu amor somente,
1536
e pois queres justamente
1537
que te tenha por sesuda,
1538
desse pensamento muda
1539
ou cuidarei mal de ti.

Dona Maria
1540
Quando cuides mal de mi
1541
contra si faz quem mal cuda,
1542
e se queres persuadir-me
1543
a que deixe de querer,
1544
enganas-te em pretender,
1545
por tal modo, dissuadir-me,
1546
que só por morrer de firme
1547
tanto comigo labuto,
1548
que amargo pagam tributo
1549
meus olhos ao desamor,
1550
pois duma esperança em flor
1551
é já desengano o fruto.

Infanta
1552
Sabes que quero ao infante.

Dona Maria
1553
Sei que lhe quero, também.

Infanta
1554
A ti nunca te está bem
1555
que ele seja teu amante.

Dona Maria
1556
Por que não?

Infanta
Oh, que galante!
1557
Não vês que amor entre iguais
1558
é mais firme e dura mais?

Dona Maria
1559
Dizes bem, mas em rigor
1560
amor, que é rei e senhor,
1561
faz iguais de desiguais,
1562
quanto mais que por igual
1563
me tenho. E se é meu amante,
1564
tam boa sou como o infante.

Infanta
1565
Pois se com presunção tal,
1566
sendo em tudo desigual,
1567
queres com ele igualar-te,
1568
adverte que posso dar-te
1569
morte, quando te condeno,
1570
que é o mesmo que veneno
1571
ciúme, com que matar-te.

Vai-se.

Dona Maria
-->
1572
Na guerra descansar, na paz cansar-se,
1573
ter por neve o calor, por calma o frio,
1574
achar que é doce o mar, salgado o rio
1575
de si desconfiar, noutrem fiar-se,
-->
1576
alegrar-se c’o mal, c’o bem queixar-se,
1577
dar entrada à inconstância, à fé desvio,
1578
chamar ao claro escuro, ao sol sombrio,
1579
ter ódio à luz, das trévoas contentar-se,
-->
1580
cantar na pena com chorar na glória,
1581
deixar branduras por buscar rigores,
1582
seguir a dor, fazer ao alívio pausa,
-->
1583
perder ganhando, sem ganhar vitória,
1584
amar desprezos, desprezar amores,
1585
próprios efeitos que o ciúme causa.

Sai Rosa.

Rosa
-->
1586
Licença para falar-te
1587
te pede Fadrique, agora.

Dona Maria
1588
Pois dize-lhe que entre embora.

Rosa
1589
Mas queres que vá buscar-te
1590
cadeiras donde sentar-te?

Dona Maria
1591
Para quê? Não é decente,
1592
que não quero que igualmente
1593
comigo esteja sentado,
1594
que ũa dama em seu estrado
1595
se deve sentar, somente.

Sai Fadrique.

Fadrique
1596
Nesta, que tomo, ousadia,
1597
quando for de vós culpado
1598
merece ser desculpado
1599
quem vos busca por valia.
1600
Ditoso seja este dia
1601
em que vos venho a buscar,
1602
que despois de me apartar
1603
do que chego a conhecer
1604
nam tenho já mais que ver,
1605
falta-me com que cegar.

Dona Maria
1606
A lisonja que me dais
1607
aceito, com que me honreis
1608
nesta casa, pois sabeis
1609
o gosto que me causais.
1610
Mas dizei-me o que mandais
1611
ou em que devo servir-vos.

Fadrique
1612
Venho, senhora, a pedir-vos
1613
favor numa pretensão,
1614
que em vós cifradas estão
1615
as glórias que hei de advertir-vos.
1616
Já sabeis que adoro a infanta
1617
quanto me despreza mais,
1618
e, assi, quero que sejais
1619
medianeira em pena tanta,
1620
porque seu desdém me encanta,
1621
com que cruel me desama,
1622
a que desta ardente chama
1623
nam lhe encareça o afecto,
1624
que se turba o mais discreto
1625
em presença de quem ama.

Dona Maria
1626
Nam é delito, Fadrique,
1627
que à vista de quem namora
1628
se turbe o que mais adora
1629
sem que sua dor publique,
1630
e quando suspenso fique
1631
será por se acreditar,
1632
porque se nam pode achar
1633
melhor arte nem secreto
1634
para parecer discreto
1635
como sofrer e calar.

Falam à parte.
Sai o Infante e Medronho.

Medronho
1636
Olha que somos perdidos.

Infante
1637
Ai, céu, que em dor tão cruel,
1638
sendo a vista tam fiel,
1639
não são falsos os ouvidos.

Medronho
1640
Vês como estão divertidos,
1641
falando com tal despejo?

Infante
1642
Comigo mesmo pelejo
1643
quando, entre sonhos, tam certo
1644
estou c'os olhos abertos,
1645
mais cego quanto mais vejo,
1646
parece sono ou enredo
1647
isto que passa por mi.

Dona Maria
1648
Advirte que o infante aqui
1649
nos ouve, suspenso e quedo.

Infante
1650
(à parte)
Num laberinto me enredo
1651
donde livrar-me não posso.

Medronho
1652
Pois entra com fio grosso
1653
e não fies tam delgado
1654
que se apertas c’o fiado
1655
que quebre será forçoso.

Dona Maria
1656
(à parte)
Com Fadrique dar-lhe quero
1657
ciúmes agora aqui,
1658
já que ele mos deu a mi,
1659
porque assi vingar-me espero.
1660
Fadrique, eu me delibero
1661
a ser vossa medianeira
1662
fazendo com que vos queira.
1663
Porém, na harpa de amor
1664
muitas vezes tem valor
1665
XXXal a prima e terceira
1666
XXXXXX terceira servir quer,
1667
que é como colher de pão
1668
com quem, se comendo estão,
1669
comem depois a colher.

Infante
1670
A vida espero perder
1671
todo o juízo perdendo
1672
em ver que hei de estar querendo,
1673
com paga tam desumana,
1674
a quem cruel e tirana
1675
vejo que me está ofendendo.

Medronho
1676
Ham, hum, a senhora Rosa
1677
fale aos seus e guarde o seu.

Rosa
1678
Bem guardado está o meu.

Medronho
1679
Não sejas tam rigorosa,
1680
que, se bem és tam fermosa,
1681
sem que dizer tal te afronte,
1682
também tem rosas o monte.
1683
Mas, deixando isto até 'qui,
1684
quisera saber de ti
1685
se queres fazer como onte?

Rosa
1686
Não quero nada contigo
1687
porque és muito chocarreiro.

Medronho
1688
Sequer para alcoviteiro
1689
nam me terás por amigo?
1690
Dá-me este ofício que digo,
1691
nam te faças rigorosa
1692
porque desta sorte, Rosa,
1693
andando assi a teu lado
1694
serei delfim, neste estado,
1695
tu Anfitrite fermosa.

Infante
1696
Nunca vista confusão
1697
com que labuto e pelejo
1698
em ver que presente vejo
1699
minha desesperação!

Dona Maria
1700
Por vosso amor e afeição
1701
farei quanto me mandais.

Fadrique
1702
Muito nisso me obrigais,
1703
que em tudo sois tam sutil,
1704
tam perfeita e tam gentil
1705
que o mais tendes por demais.

Infante
1706
Que isto sofro?

Dona Maria
(à parte)
Está picado.

Infante
1707
Viva Deos, que é ter-me em pouco.

Medronho
1708
Pardez, que nunca vi louco
1709
que não fossse namorado.
1710
Senhor, deixa esse cuidado,
1711
chega, que estás aguardando?

Infante
1712
Estou, Medronho, cuidando
1713
que desgraçado é o amante
1714
que chega a não ter constante
1715
a fortuna de seu bando.

Sai a Infanta.

Infanta
1716
Fadrique falando está
1717
com Dona Maria à parte,
1718
não sei se daqui me aparte
1719
porque ciúme me dá.
1720
Amor, bem vejo que já
1721
me pesa de que me deixe,
1722
mas não sei de quem me queixe,
1723
se de mi, pelo deixar,
1724
se dele em me não amar
1725
quando contra amor peleije.
1726
O infante está rebatendo
1727
e bem creo que será
1728
porque com Fadrique está
1729
Dona Maria falando.
1730
Quero estrová-los entrando,
1731
que entre efeitos disiguais
1732
cada vez me força mais
1733
com ciúmes à perfia.
1734
Infante, Dona Maria,
1735
Fadrique, de que tratais?

Dona Maria
1736
Tratávamos de um amante
1737
que num cavalo de fama
1738
galanteando ũa dama
1739
passou onte mui galante,
1740
e com adorno brilhante
1741
tão enlevado a seguia
1742
que do cavalo em que ia
1743
vendo-se ir quasi caindo
1744
perguntou com gesto lindo
1745
para que parte caía.

Infanta
1746
Pois quisera-te advirtir
1747
antes que daqui te apartes
1748
para qual das duas partes
1749
deves primeiro cair.

Dona Maria
1750
Não tens que me persuadir
1751
porque estou bem advertida.

Infanta
1752
(à parte)
De ciúme estou perdida.

Infante
1753
(à parte)
Perdendo vou os sentidos.

Fadrique
1754
(à parte)
Todos estamos perdidos.

Dona Maria
1755
(à parte)
Em que pena estou metida.

Infanta
1756
(à parte)
Que laberinto de amor.

Dona Maria
1757
(à parte)
Que confusão de Babel.

Infante
1758
(à parte)
Que tirana, que cruel.

Fadrique
1759
(à parte)
Que tormento, que rigor.

Infante
1760
(à parte)
Que desdém, que desamor.

Dona Maria
1761
(à parte)
Que mudável, que inconstante.

Infanta
1762
(à parte)
Que falso, que pouco amante.

Dona Maria
1763
(à parte)
Que ingrato, que fementido.

Infanta
1764
(à parte)
Que louco, que presumido.

Fadrique
1765
(à parte)
Que dureza.

Infante
(à parte)
Que diamante.

Medronho
1766
Postos estão cara a cara
1767
cerra Espanha de vencida.

Rosa
1768
Todos derrota batida
1769
vão desta vez, quem cuidara
1770
que nisto, amor, tal parara.

Infanta
1771
De que tão suspenso estais,
1772
Infante? Que imaginais?

Infante
1773
Não sei, por Deos, que imagino,
1774
porfiar contra o destino
1775
sem ventura é por demais.

Dona Maria
1776
Porfiando vence amor.

Infante
1777
Mas talvez, Dona Maria,
1778
se cansa com a porfia
1779
quando lhe negam favor.

Infanta
1780
Não paga com desamor
1781
quem se vê conrespondida.

Fadrique
1782
Bem sei eu quem é querida
1783
e mais conresponde ingrata.

Infanta
1784
Quiçá porque se recata
1785
de não se ver ofendida.

Fadrique
1786
Ao menos faça esta dor
1787
ante vós fé de tal fé.

Infanta
1788
O que c’os olhos se vê
1789
não há mister prova melhor.

Infante
1790
Como é cego todo o amor
1791
não vê adonde se emprega.

Dona Maria
1792
Amor, infante, não cega
1793
senão só despois de amar.

Infante
1794
Bem cego deve de estar
1795
amor, que a outro se apega.

Infanta
1796
(à parte)
Todos picados estão
1797
e não sei qual dos dous queira,
1798
mas quero desta maneira,
1799
já que ciúme me dão,
1800
apurar esta afeição
1801
com deixar cair aqui
1802
esta luva em que meti
1803
este papel, que é do infante,
1804
porque o que for mais amante
1805
a tome só para si.

Deixa cair a luva, metendo dentro nela o papel que tomou a Dona Maria do Infante, o qual se lança a tomá-la, e Fadrique a ganha.

Fadrique
A mi só pretenceI
1806
levantar esta luva.

Infante
Aqui não vence
1807
mais que o valor. Fadrique, soltai logo.

Fadrique
1808
Que não canseis, vos rogo,
1809
que a luva perderei, perdendo a vida.

Infante
1810
Soltai, ou, se não, dai-a por perdida.

Fadrique
1811
Não temo, Infante, nada,
1812
pois para a defender trago esta espada.

Infante
1813
Isso é ser atrevido.

Fadrique
 Vós porfiado.

Infante
1814
Por Deos que se me enfado...

Fadrique
 Infante, quedo.

Infante
1815
Matar-vos poderei só com o medo.

Fadrique
1816
Para matar-me, Infante,
1817
se o que tendes me derdes é bastante.

Infante
1818
Pois assi desta sorte
1819
a luva ganharei com dar-vos morte.

Mete mão.

Fadrique
1820
Da ponta até ò punho
1821
em sangue tingerei, que esta empunho.

Mete mão.

Infante
1822
Na guerra poucas vezes
1823
trazem branca a espada os portugueses.

Sai a Rainha.

Rainha
1824
Que é isto, Infante? Passo.
1825
Sobre que é a questão?

Infante
Foi um acaso,
1826
que a vossa majestade
1827
pode informar Fadrique da verdade.

Fadrique
1828
Da infanta Beatriz, minha senhora,
1829
que está presente agora,
1830
esta luva caiu, que hei levantado.
1831
Quis o infante, cortês, se bem ousado,
1832
ganhar-me pela mão a luva dela,
1833
assi foi-me forçado o destendê-la
1834
com tomar este caso tanto a peito
1835
por não ceder aqui de meu direito.

Rainha
1836
Essa luva me dai, Fadrique, logo
1837
por que a mão nenhum ganhe deste jogo.

Fadrique
1838
A vossa majestade
1839
somente a entregarei com mais vontade.

Dá-lhe a luva e tira-lhe o papel.

Rainha
1840
Toma a luva outra vez e adverte, infanta,
1841
que te pode obrigar quem a levanta.

Dá-lhe a luva à infanta.

Rainha
1842
Os dous me acompanhai, vinde comigo.

Infante
1843
Obedecer é força.

Fadrique
O mesmo digo.

Vão-se.

Medronho
1844
Rosa, antes que me vá quero advertir-te,
1845
se algum escarapim tens que cair-te,
1846
que de luva te sirva, porque quero
1847
mostrar-me amante, com erguê-lo, fero.

Rosa
1848
Não quero por amante
1849
quem não sabe, inorante,
1850
o nome dar às cousas, pois que chama
1851
escarapim à luva de uma dama.

Medronho
1852
Pois, à fé, que se besta te chamara
1853
que desta vez o nome te acertara,
1854
mas porque teu melindre me desgosta
1855
não te quero aguardar outra reposta.

Vai-se.

Dona Maria
1856
Mui bem, infanta, fingiste
1857
o descuido do pensado
1858
deixando cair a luva,
1859
sobre que renhiram tanto.

Infanta
1860
Não sejas, dona Maria,
1861
tão suspeitosa, e mais quando
1862
a luva de que me culpas
1863
não caiu senão acaso.

Dona Maria
1864
Não pudeste imaginar,
1865
pera fazer sem engano
1866
prova de um e outro amante,
1867
melhor invenção nem passo.

Infanta
1868
Isto é já muita malícia,
1869
porque eu nem ao infante amo
1870
nem menos quero a Fadrique.

Dona Maria
1871
Isso quem pode julgá-lo?

Infanta
1872
Tu.

Dona Maria
Enganas-te.

Infanta
Porquê?

Dona Maria
1873
Porque é muito ao contrário.
1874
Bem que se amas ao infante,
1875
é gastar tempo baldado,
1876
porque eu sei que me quer bem
1877
e eu deveras o amo,
1878
e por que te deixe agora
1879
cuidar nisto mais d’espaço
1880
me vou, com tua licença,
1881
por te não dar mais enfado.

Faz que se vai.

Infanta
1882
Volta cá, detém-te um pouco
1883
porque sei que posso tanto
1884
que posso matar de amores
1885
e dar cuidado ao cuidado.

Dona Maria
1886
Nada disso me dá pena
1887
porque bem vejo e alcanço
1888
que poucos se querem bem
1889
dos corações alugados.

Infanta
1890
Não podes julgar que o meu
1891
ama por força em tal caso,
1892
que amar forçado não pode
1893
coração que é voluntário.

Dona Maria
1894
Também por força de amor
1895
não falta quem ame. E tanto
1896
que se desculpam com ele
1897
os que delinquem amando.

Infanta
1898
Não há nenhum grande amor
1899
que force o alvedrio humano,
1900
que amor nace da vontade
1901
que ama livre e não forçado

Dona Maria
1902
Antes cuido no que dizes,
1903
que argumentas ao contrário,
1904
que amor não há de ser livre
1905
para ser mais estimado,
1906
porque se livre nascera
1907
deixara de querer quando
1908
se enfadasse de correr
1909
e melhorara de trato.
1910
Mas nam falemos mais nisto
1911
e dêmo-lo por passado,
1912
que quem sabe mais de amor
1913
menos se atreve a explicá-lo.

Infanta
1914
Pois bem podes recolher-te
1915
a estudar sobre esse caso.

Vão-se. Sai o Infante.

Infante
1916
Que assi Dona Maria me maltrate
1917
com ciúmes, desdéns e disfavores,
1918
que assi de ver-me tanto se recate,
1919
que tirana me nega seus favores,
1920
ai, doce amor, quando cruel me mate
1921
esta que a todos dá morte de amores,
1922
direi que morro só porque é tão bela
1923
que inda nam sou pera morrer por ela.
1924
Oh, mil vezes feliz e venturoso
1925
quem de amor tal ventura há conseguido,
1926
que sem viver sentido nem queixoso,
1927
de ciúmes tiranos perseguido,
1928
em suave prisão, trato amoroso,
1929
docemente se vê conrespondido,
1930
gozando sempre em amorosos laços
1931
lisonjeiras prisões, doces abraços.
1932
Mas ai de quem só vive de esperanças,
1933
homicidas suaves de ũa vida,
1934
pois tam poucas promete seguranças
1935
numa conrespondência agradecida
1936
que a pena que ocasiona tais mudanças
1937
justamente se tem por homicida.
1938
E se o temor ũa alma tanto inflama
1939
é porque sempre teme quem bem ama.
1940
Quem dissera que amor bem empregado
1941
tão mal fosse de amor conrespondido
1942
que despois de ficar acrisolado
1943
no fogo em que talvez se viu metido
1944
em tam pouco valor seja avaliado
1945
que chegue a ter lugar de desvalido.
1946
Mas se um amor com outro amor se paga
1947
tenha um desdém outro desdém por paga.

Sai Medronho.

Infante
1948
Que vai, amigo Medronho,
1949
falaste a Dona Maria?

Medronho
1950
Senhor, muito baralhado
1951
anda o negócio, por vida.
1952
Não percas hora nem tempo:
1953
ama, quer, roga, perfia,
1954
porque não há dama que
1955
lhe pese de ser querida.
1956
E quando, Infante, se mostram
1957
mais melindrosas e esquivas,
1958
então imagina que
1959
estão de todo perdidas,
1960
não te acobarde o desdém
1961
logo na primeira vista
1962
de ũa dama melindrosa
1963
que de tudo se enfastia.
1964
Se acaso te dá ciúmes
1965
dá-los também à perfia
1966
porque a nódoa de ũa amora
1967
com outra verde se tira.
1968
Dize-lhe palavras doces,
1969
chama-lhe aurora, sol, dia,
1970
pérola, aljôfar, cristal,
1971
rosa, açucena, bonina,
1972
e, se tal vez lhe escreveres,
1973
chama-lhe por senhoria
1974
que desta sorte a ũa freira
1975
um certo amante escrevia
1976
só por que ela se obrigasse
1977
deste termo e cortesia,
1978
que é mui bem criado amor,
1979
posto que criança ainda,
1980
e assi, senhor, desta sorte
1981
toda a dama mais esquiva
1982
que ũa Lucrécia, ũa Porcia,
1983
ũa Dafne fugitiva,
1984
te terá por mais cortês
1985
que o que descobriu as Índias.
1986
E isto de damas, infante,
1987
é cousa muito sabida
1988
que também há chuvas d’ouro
1989
se há também Danes esquivas.
1990
Mas isto deixando à parte,
1991
inda que a dizer me obriga
1992
que onde aí não há molheres
1993
não há ter gosto nem vida.

Infante
1994
Conta-me, por vida tua,
1995
se viste a Dona Maria,
1996
que estou morto por saber
1997
o que de mi imagina.

Medronho
1998
Senhor, dá-o por contado,
1999
porque nam sei que te diga
2000
mais que estar de ti ciosa
2001
por cuidar que a infanta estimas.
2002
Mas antes que mais me esqueça,
2003
fui, entrei, eis que saía
2004
quando topei com Fadrique,
2005
que me trazia de espia,
2006
e em me vendo me entregou
2007
este papel que te invia.
2008
Toma o papel.

Infante
Mostra cá.
Lê o Infante:
2009Para tratar convosco um negócio, vos suplico que venhais esta noite ao Campo de Santa Clara, às doze em ponto, donde somente vos espero com capa e espada. Fadrique.

Medronho
2010
Por Deos, que te desafia
2011
por amor de algũa freira.

Infante
2012
Tem segredo, e a ninguém digas
2013
o que contém o papel.

Medronho
2014
Dar-te um conselho queria
2015
nesta ocasião.

Infante
E que tal?

Medronho
2016
Por Santa Iria,
2017
que te deve de agradar.
2018
Escuta, por vida minha,
2019
verás se tenho razão:
2020
dous fidalgos que serviam
2021
a certa dama em palácio,
2022
num serão, que então havia,
2023
sobre dançarem com ela
2024
desafiaram-se um dia
2025
para Val de Cavalinhos.
2026
Ambos de dous se partiram
2027
que aviriguar esta dança
2028
neste campo pretendiam.
2029
Chegaram ambos ao posto
2030
que já sinalado tinham,
2031
e dizendo um para o outro
2032
«arrancai», respondeu ele:
2033
«não posso, por vida minha,
2034
porque espada de brigar
2035
nam trago agora cingida,
2036
que é somente de vestir
2037
esta que trago de dia,
2038
mandarei por ela a casa
2039
e então com igual justiça
2040
a questão deslindaremos».
2041
Foram-se de companhia
2042
e não tornaram jamais.
2043
Agora o conto te aplica,
2044
se é que espada de brigar
2045
também não trazes cingida.

Infante
2046
Do conselho te aproveita
2047
que pode ser que te sirva,
2048
que agora deixar-te quero
2049
por que mais contos não digas.

Vai-se.

Medronho
2050
Pois, à fé, que melhor fora
2051
dizer-te «dói a barriga»
2052
ou fingir este doente,
2053
porque é grande boveria
2054
matar-se um homem de bem
2055
por nenhuma rapariga,
2056
quando todas são ranhosas,
2057
ũas nécias presumidas,
2058
que não sabem mais de amor
2059
do que eu sei de uma botica.

Vai-se. Sai a rainha com a Infanta.

Rainha
2060
Cerra essa porta, infanta, e entra passo
2061
por que não nos escute alguém acaso,
2062
que as cousas de importância
2063
devem-se de tratar com vigilância,
2064
e quem se não recata
2065
mostra pouca prudência no que trata,
2066
pois quem mais se acautela
2067
nenhum dano lhe faz nímia cautela

Infanta
2068
Cerrada a porta está, fala senhora.

Rainha
2069
Escuita.

Infanta
Atenta escuito.

Rainha
Soube agora
2070
que solicita o infante
2071
Dona Maria Teles como amante,
2072
pois de dia a passea com cuidado
2073
e de noite a visita desvelado,
2074
que amor não tem paciência
2075
para ũa noite só sofrer de ausência,
2076
e como é vandoleiro
2077
sai de noite a roubar mais sorrateiro,
2078
mas pode descuidar-se
2079
ficando preso sem poder soltar-se,
2080
porque nunca dos braços
2081
jamais se livra amor andando a braços,
2082
e se neles enlaça
2083
Dona Maria ao infante, que isto traça,
2084
pode vir a reinar por esta sorte
2085
quando a Parca a el rei o fio corte,
2086
e porque seu intento
2087
sortir não possa o feito, o casamento
2088
que em cortes se retratou c’o de Castela,
2089
dando-te por esposa, infanta bela,
2090
ao duque que agora é de Benavente,
2091
determino estrovar secretamente
2092
pera mor segurança
2093
de poder governar sempre em bonança,
2094
pois c’o infante casando
2095
terás sempre o governo de meu bando,
2096
e quando a el rei da vida prive a morte
2097
ficarei desta sorte
2098
sendo sempre rainha,
2099
pois por indústria minha
2100
cheguei a tal fortuna
2101
que na roda importuna
2102
me sustento até ‘gora
2103
sem que a enveja me possa lançar fora,
2104
mas da roda temer deve a mudança
2105
quem subiu, por fortuna, a tal bonança.
2106
Por isso estes gentios que a adoravam
2107
em trajos de molher a retratavam
2108
e por não ter constância nem firmeza
2109
a tinham fortemente atada e presa,
2110
que inda assim com prisão tão dura e forte
2111
por segura a não davam desta sorte,
2112
mas só por que não visse em quem se emprega,
2113
não tem mistério, a pintaram cega
2114
c’uma letra que diz «em bens e males
2115
nada podes, nem vês, mas assi vales».

Infanta
2116
Em nenhuma infortuna
2117
deve ninguém queixar-se da fortuna,
2118
que são queixas de nécios que imaginam
2119
que as estrelas nos homens predominam.
2120
Quando um santo falando das estrelas
2121
diz que os não criou Deos por amor delas,
2122
mas por amor dos homens, que criara,
2123
todo esse céu de estrelas marchetara.

Sai Garcia Afonso.

Garcia
2124
Se vossa majestade, que Deos guarde,
2125
há de dar audiência, faz-se tarde,
2126
porque há mui grande espaço
2127
que as partes esperando estão no paço
2128
e hão mister despachadas
2129
as consultas, que estão já consultadas.

Rainha
2130
Nam posso, por agora,
2131
dar audiência às partes, melhor fora
2132
que os memoriais tomasses
2133
e despois mais de espaço os despachasses,
2134
que com a infanta tenho
2135
que tratar um negócio de importância.

Garcia
2136
Em servir-vos me empenho,
2137
donde ponho o cuidado e vigilância.

Vai-se.

Rainha
2138
Disto que digo, infanta, é bem tratemos
2139
para que assi melhor nos conservemos.

Infanta
2140
Tenho por acertado
2141
quanto dizes, senhora, e com cuidado
2142
deves pôr nisto todo,
2143
pera poder reinar por este modo.

Vão-se.
Sai Dona Maria tapada com um manto e o Infante trás ela.

Dona Maria
2144
Pelo que a nobre deveis
2145
vos suplico, com cortesia,
2146
que daqui com tal perfia
2147
mais adiante nam passeis.

Infante
2148
Deixar-vos nam pode ser
2149
sem primeiro vos pedir
2150
que vos queirais descobrir
2151
ou vos deis a conhecer.
2152
Nam eclipseis, bela senhora,
2153
desses sóis os raios tanto
2154
com a nuve desse manto
2155
com que vos cobris agora.
2156
Deixai que deste arrebol
2157
entre amorosos ensaios
2158
aprenda de vossos raios
2159
a ser mais galhardo o sol,
2160
que se a luz mais ocultais
2161
desses tam superiores
2162
perderá seus esplendores
2163
todo esse céu que ilustrais,
2164
e a que me dá ciúme
2165
esse rosto peregrino,
2166
que ser um sol imagino,
2167
coberto com essa nuve.
2168
Um cego ver desejava
2169
do sol claro esplendor
2170
e para o saber melhor
2171
a todos o perguntava,
2172
que lhe firmava e dezia
2173
que era um celeste farol,
2174
e singular arrebo,
2175
autor e causa do dia,
2176
qual lhe pintava nos céus
2177
uma luz tam bela que,
2178
a faltar divina fé,
2179
fora adorada por Deos.
2180
Viu de uma celeste estrela
2181
a luz que no céu brilhava
2182
e como sol a adorava
2183
por ser tam fermosa e bela.
2184
Porém, despois que o arrebol
2185
viu que esse sol ostentava
2186
deixou a estrela que amava
2187
só por adorar ao sol.
2188
Assi eu, como vevia
2189
cego de amor, sospeitava
2190
que era um sol quando adorava
2191
a qualquer dama que via,
2192
mas chegando a conhecer
2193
vosso divino arrebol
2194
para adorar-vos por sol
2195
é bem que vos deixeis ver.

Dona Maria
2196
Se somente essa perfia
2197
consiste em ver-me, não mais.
2198
Basta que agora saibais
2199
que me vistes algum dia,
2200
mas como cego ficastes
2201
doutra luz e doutros raios,
2202
entre seus belos ensaios
2203
por estrela me julgastes.
2204
Agora que haveis estado
2205
menos cego e diferente,
2206
que todo o amor de repente
2207
aborrece de pensado,
2208
como arrependido estais
2209
me persuadis, lisonjeiro,
2210
que sou o solverdadeiro
2211
que vós somente adorais.
2212
E se bem me persuado
2213
em vós tenho conhecido
2214
efeitos de arrependido,
2215
mas não de desenganado,
2216
que em culpa tão conhecida
2217
bem alcanço no que trato,
2218
que o que ũa vez foi ingrato
2219
o há de ser em toda a vida.

Infante
2220
Confuso estou e admirado
2221
de que ingrato me chameis
2222
quando de mim não sabeis
2223
nem jamais me haveis tratado,
2224
mas nesta esperança calma
2225
está, não sem confusão,
2226
publicando o coração
2227
segredos que guarda a alma.
2228
E não sei, por Deos, que vejo
2229
nesse gesto que mostrais
2230
que mil sospeitas me dais
2231
quanto mais ver-vos desejo.
2232
Desde a igreja em que vos vi
2233
por entre esse negro manto,
2234
não sem mistério e espanto,
2235
vos vim seguindo até 'qui.
2236
E logo que nela entrastes
2237
se por anjo vos julguei
2238
despois me desenganei
2239
como água benta tomastes,
2240
porque bem claro se estava
2241
nisto que cheguei a ver
2242
que anjo não podia ser
2243
quem ter culpas confessava.
2244
E se os que sentem de amor
2245
dizem por causas sabidas
2246
que vertem sangue as feridas
2247
à vista do matador,
2248
das que n’alma me apontou
2249
amor, vós a causa sois,
2250
pois vertem sangue despois
2251
que ante vossa vista estou.
2252
E a luz desocultai
2253
desses dous sóis encobertos,
2254
e despois de descobertos
2255
raio a raio me matai.

Dona Maria
2256
Não perfieis mais, senhor,
2257
porque me vai muito a mi
2258
em não descobrir-me aqui.

Infante
2259
Valha-me o céu, que rigor,
2260
deixai-me essa mão beijar
2261
para que nesta ocasião
2262
possa afirmar que por mão
2263
vos começo de ganhar.

Dona Maria
2264
Algum dia pretendi
2265
com pensamento amoroso
2266
dar-vo-la como a esposo,
2267
mas despois me arrependi,
2268
porque traz um casamento
2269
consigo tam grande azar,
2270
que antes de se efeituar
2271
se segue o arrependimento.

Infante
2272
Nessas, que ouço, linsonjeiras
2273
tam equívocas rezões
2274
certas imaginações
2275
apuro por verdadeiras.
2276
De ter convosco, senhora,
2277
simpatia é cousa certa
2278
pois qual íman sempre alerta
2279
vos venho seguindo agora.
2280
Enfim, sois todo o meu bem.

Dona Maria
2281
Pois amais?

Infante
Dês que vos vi.

Dona Maria
2282
A quem?

Infante
 A vós.

Dona Maria
A mi?

Infante
Si.

Dona Maria
2283
Que temeis?

Infante
Vosso desdém.

Dona Maria
2284
Que sentis?

Infante
Que vos adoro.

Dona Maria
2285
Que aguardais?

Infante
Um bom sucesso.

Dona Maria
2286
Quando será?

Infante
Isso peço.

Dona Maria
2287
Sabeis quem sou?

Infante
Não ignoro.

Dona Maria
2288
Pois que vos falta?

Infante
 Ventura.

Dona Maria
2289
Para quê?

Infante
  Para alcançar-vos.

Dona Maria
2290
Que pretendeis?

Infante
Obrigar-vos.

Dona Maria
2291
Pois quem obrigar procura
2292
deve em tudo obedecer.
2293
E assi vos peço que agora
2294
me deixeis.

Infante
    Vou-me, senhora,
2295
só por vos não ofender.

Vai-se.

Dona Maria
2296
Olá, tirem-me este manto.

Sai Rosa.

Rosa
2297
Muito na missa tardastes.

Dona Maria
2298
Foi forçoso.

Rosa
Que encontrastes,
2299
que assi vos fez deter tanto?

Dona Maria
2300
Seguir-me o infante até 'qui,
2301
que intentou reconhecer-me
2302
por mais que quis esconder-me.

Rosa
2303
Viu-te?

Dona Maria
Imagino que si.

Rosa
2304
Pois sabe que me contou
2305
Medronho, como fiel,
2306
que ao infante num papel
2307
Fadrique desafiou,
2308
e que esta noite saía
2309
a campo.

Dona Maria
 Sabes porquê?

Rosa
2310
Não sei.

Dona Maria
Pois quisera que
2311
essa contenda e perfia
2312
estorvássemos levando
2313
certo papel ao infante
2314
em que lhe escreva que, amante,
2315
estou por ele esperando,
2316
que esta noite, com cuidado,
2317
venha ao jardim.

Rosa
Dizes bem.
2318
Escreve logo.

Dona Maria
Pois vem,
2319
levar-lhe-ás este recado.

Vão-se. Sai Medronho.

Medronho
2320
Ando como atordado
2321
despois que dei também em namorado
2322
que amor, que todo é fumo,
2323
que me subiu, presumo,
2324
como vinho à cabeça,
2325
porque de amor de Baco me adormeça.
2326
Se bem, por Santiago,
2327
que outro vinho há mil dias que não trago,
2328
antes, com grande mágoa,
2329
bebo da fonte fria sempre a água,
2330
e já me consolara em tais dietas
2331
se da fonte bebera dos poetas
2332
ou de algum charco acaso,
2333
que fez a ferradura do Pegaso
2334
que também os poetas não são parcos
2335
que cantam como rãs d’entre estes charcos
2336
porque nem todos podem (por perene)
2337
beber da fonte limpa de Hipocrene,
2338
mas contra mi murmuro
2339
se isto de ser poeta mais apuro,
2340
que se bem nisto cudo
2341
imagino que dou no próprio escudo
2342
que também sou poeta, e Deos o sabe,
2343
se tal nome me cabe
2344
com razões tão perversas,
2345
pois al fim faço versos que são versas.
2346
Quiçá que tal espírito participe
2347
porque bebi na fonte de Aganipe
2348
por um velho cabaço com que Apolo
2349
regava o cebolinho sem miolo,
2350
assi que sou poeta jardineiro,
2351
que não sei, lisonjeiro,
2352
mais que falar em flores e boninas,
2353
chamando às águas turvas cristalinas
2354
e à corrente mais breve
2355
arminho de cristal, serpe de neve,
2356
e também por corrente
2357
lhe chamarei grilhão, forçadamente.
2358
Mas bem pareço nisto
2359
ser poeta de Abril, por Jesu Cristo,
2360
que se dele escapar o meu falsete
2361
ser músico de Maio me compete,
2362
pois sei que na Aretusa
2363
não bebi por panela nem infusa,
2364
antes doutra maneira
2365
sospeito que bebi pela caveira
2366
de um asno patalou,
2367
que por beber na fonte se afogou.
2368
Mas já me acordo agora
2369
que por nenhũa cousa destas fora
2370
porque um grande poeta,
2371
que não fazia versos à gineta,
2372
antes se cavalgava numa albarda
2373
c’os pés muito direitos à bastarda,
2374
esse me disse um dia,
2375
falando nesta fonte clara e fria,
2376
que os amantes de freiras
2377
bebiam pelos cornos das gualteiras
2378
e por este sospeito, sem mais tretas,
2379
que bebi nesta fonte dos poetas
2380
porque nunca de freiras, cousa rara,
2381
poeta me chamara,
2382
se no Parnaso monte
2383
não bebera por cornos nesta fonte.
2384
Mas quem nisto me vê não fazer pausa
2385
e não conhece a causa
2386
por que de freiras trato
2387
ter-me-á por mentecato,
2388
mas nisto não me fio
2389
pois sei que os altos pago de vazio,
2390
e com razão parece disparate
2391
ver que um lacaio destas cousas trate.
2392
Porém, quem entre doces mais se emprega
2393
algũa cousa deles se lhe pega.
2394
Oh, que sono me dá, deitar-me quero,
2395
que aqui neste lugar ao infante espero.

Deita-se a dormir. Sai Rosa.

Rosa
2396
Achar quisera o infante,
2397
porque minha senhora, como amante,
2398
esta carta lhe invia,
2399
intentando estrovar por esta via
2400
que não saia à campanha com Fadrique
2401
por que mais seu amor se não publique.
2402
Aqui aguardar quero
2403
que venha a recolher-se, como espero.
2404
Mas ali jaz um vulto
2405
e quem seja decerto deficulto.
2406
Quem será? Oh que lance,
2407
que é Medronho o que vejo neste transe,
2408
que ao sereno da noite está cozendo
2409
a fornada de quanto andou bebendo,
2410
e pois caiu no laço
2411
ũa burlha lhe faço
2412
de quantas me tem feito:
2413
aqui trago no peito
2414
inda umas escorralhas de vermelho
2415
que neste papel velho
2416
guardei, por cor precisa,
2417
de quando me infeitei para ir à missa,
2418
com este, por meu gosto,
2419
tingir-lhe quero agora todo o rosto.
Vai-o tingindo.
2420
Oh pícaro borracho,
2421
pois que tanto vermelho sem empacho
2422
sempre metes por dentro cada hora
2423
aqui to quero pôr também por fora.
2424
Se isto não te envergonha
2425
será porque antes queres ter vergonha
2426
no rosto do que mágoa
2427
dentro no coração, que não vê água.
2428
Porém, já que és Medronho
2429
só com este vermelho que te ponho,
2430
à mi fé que te juro
2431
que hás de ficar Medronho bem maduro.

Desperta Medronho.

Medronho
2432
Morto de sono estava,
2433
mas, por Deos, que não sei em que sonhava.

Rosa
2434
(à parte)
Já do sono acordou. Ir-me quisera
2435
sem que me conhecera.

Retira-se a ũa parte.

Medronho
2436
Não sei que vejo ali, se é fantesia
2437
que o cabelo esta vez me arrepia.

Rosa
2438
(à parte)
Quero ver se escapar-lhe posso agora
2439
fingindo-me fantasma.

Cobre-se toda c’o manto.

Medronho
2440
Oh, quem me fora
2441
pássaro que voara
2442
por que desta fantasma me escapara.
2443
Jesus seja comigo,
2444
que me vejo metido em grão perigo.
2445
Ai, que não sei que sinto,
2446
que a barriga me dói. Pardês, não minto,
2447
deixe-me, senhora alma pecadora,
2448
que me saia lá fora,
2449
se não eu te esconjuro
2450
que me deixes passar livre e seguro,
2451
não me faças caretas
2452
que as temo mais que às línguas dos poetas
2453
e deixa-me ir vestir outra camisa,
2454
cantarei-te um prefácio de ũa missa,
2455
que temo se me tocas com recato
2456
que te não cheire bem este meu fato.
2457
Ai, ai, ai, que me queres? Teu mal purga,
2458
não te chegues a mi, que estou de purga.
2459
Almas santas, valei-me,
2460
por que o fogo desta alma não me queime.

Vai-se retirando, e Rosa com ele.
Sai Fadrique.

Fadrique
2461
Oh, mil vezes ditoso
2462
quem de amor tal ventura há conseguido,
2463
que, sem viver queixoso
2464
de enganos e ciúmes ofendido,
2465
gozando está presente
2466
o que cego idolatra e amante sente.
2467
Se geme, é socorrido
2468
com mimos, com regalos, com favores,
2469
e, se chora, é ouvido
2470
de quem piedosa escuta suas dores,
2471
que pode desta sorte
2472
dar vida à mesma vida e morte à morte.
2473
Sem ciúmes tiranos
2474
estima, adora, quer, ama e venera,
2475
e sem temer enganos,
2476
que não tem que temer quem nada espera,
2477
tudo o que quer alcança
2478
mas, ai de quem só vive de esperança.
2479
Ea, amor arrogante,
2480
que hoje esperas vencer ou ser vencido,
2481
porque se adora o infante
2482
a prenda a quem confesso estar rendido,
2483
neste campo presumes
2484
a batalha vencer de teus ciúmes.

Sai o Infante.

Infante
2485
Aqui neste teatro
2486
de meu braço o valor mostrar espero,
2487
que se a quem idolatro
2488
outro adorar se atreve, ousado e fero,
2489
vingar-me é cousa justa
2490
que ũa ousadia talvez morte custa.
2491
Fadrique ali me aguarda.
2492
Hei tardado?

Fadrique
Deos guarde a vossa alteza.
2493
Quem vem tam bem não tarda.

Infante
2494
Não pude vir mais cedo.

Fadrique
Que me pesa
2495
de inquietar-vos, infante,
2496
mas cumpro com as leis de ser amante.

Infante
2497
Ea, em campo estou posto,
2498
como amante fazei, e como honrado.

Fadrique
2499
Antes que rosto a rosto
2500
livremos a pendência deste enfado
2501
nas espadas, quisera
2502
que soubésseis a causa que tivera.

Infante
2503
Se hemos renhir, Fadrique,
2504
repeti vosso agravo a quem o ignora.

Fadrique
2505
Por que a justiça fique
2506
sempre da minha parte vencedora,
2507
meu agravo repito.

Infante
2508
Pedir satisfação não é delito.

Fadrique
2509
Amor, que por ser estrela,
2510
para o que pretende inclina,
2511
pois sendo livre a vontade
2512
talvez a faz ser cativa,
2513
quis que à infanta me inclinasse
2514
por natural simpatia,
2515
a quem, rendido, rendi
2516
alma, coração e vida.
2517
A noite em que me dissestes
2518
que ũa dama vos pedira
2519
que fôsseis só a falar-lhe
2520
sem levar mais companhia,
2521
acompanhando vos fui
2522
e não sei, por Deos, que diga.

Infante
2523
Já sei que fostes comigo
2524
naquela noite sabida,
2525
em que com dous embuçados,
2526
que o passo nos impediam,
2527
sobre as capas nos pedirem
2528
ũa pendência renhida,
2529
com ambos de dous tivemos,
2530
que enchendo-nos nela de ira
2531
metemos mãos às espadas
2532
e com igual valentia
2533
aqui talho, ali revés,
2534
passando escritos de vida,
2535
os fumos levando a todos,
2536
cevando-nos em a briga
2537
té que nos desencontrámos
2538
por escapar da justiça.
2539
Daqui podeis prosseguir.

Fadrique
2540
De aí é bem que prossiga:
2541
dei volta outra vez à rua
2542
e vi numa gelosia
2543
posta ũa dama à janela
2544
falando com voz sumida.
2545
Pus-me ao pé dela arrimado
2546
para ver se a conhecia
2547
e logo vi que era a infanta
2548
e a outra, Dona Maria.
2549
Não me pude encobrir tanto
2550
que me não vissem de cima,
2551
acenaram-me chegue,
2552
perguntei o que queriam,
2553
se era o infante, me disseram.
2554
Mas cuidando, ai, inimiga,
2555
que esta pergunta. e assi foi.
2556
da parte da infanta vinha,
2557
porque talvez os ciúmes
2558
acertam no que adivinham,
2559
ser o infante respondi,
2560
com voz turbada e fengida.
2561
E não me saiu frustrada
2562
esta sospeita e malícia,
2563
pois vi que a infanta, enganada,
2564
tantas cousas me dezia
2565
que me persuadi que amor,
2566
a querer-vos, muito a obriga.
2567
Neste comenos chegastes
2568
com Medronho em campanha,
2569
que foi causa de que então,
2570
por escusar outra briga,
2571
da infanta me despedisse,
2572
fingindo que gente vinha,
2573
e com as sombras da noite
2574
me encobri de vossa vista
2575
retirando-me do posto
2576
que a vós usurpado tinha.
2577
E como amor não consente
2578
que outrem lhe roube o que estima,
2579
pois sabeis que adoro a infanta
2580
e que me vai nela a vida,
2581
ou me tirai a que tenho
2582
ou por estorvar desditas
2583
palavra me haveis de dar
2584
de disistir, por ser minha,
2585
desta empresa, porque amor
2586
a tal extremo me obriga.

Infante
2587
Dessa empresa que dizeis,
2588
Fadrique, não disistira,
2589
se, como vós suspeitais,
2590
tivera amor algum dia
2591
ou quisera bem à infanta.

Fadrique
2592
Logo negais, sem mentira,
2593
que não lhe fostes falar
2594
aquela noite da briga.

Infante
2595
É verdade, bem que a infanta
2596
mandado chamar me tinha
2597
nessa noite, porém eu
2598
que adoro...

Fadrique
A quem?

Infante
Quem duvida?
2599
Que a dona Maria Teles
2600
que como na gelosia,
2601
pois que vai a dizer tudo,
2602
estava, desgraça minha,
2603
com a infanta a quem então
2604
falastes, foi grão desdita,
2605
cuidando que eu lhe falava
2606
e que à infanta queria,
2607
morta de desconfianças
2608
e de ciúmes, não viva,
2609
nem se paga de desculpas
2610
nem de firmezas se obriga.

Fadrique
2611
Pois podeis negar, infante,
2612
que não é vossa esta firma
Dá-lhe a carta que tirou da luva caída.
2613
que na luva que caiu
2614
da infanta vinha metida?

Infante
2615
Não nego, Fadrique, aqui
2616
não ser essa letra minha,
2617
pois é essa a própria carta
2618
que escrevi a dona Maria
2619
na noite em que pretendi
2620
falar-lhe, e, desavertida,
2621
lha tomaria a infanta
2622
por sospeitas que teria.
2623
Mas, pois satisfeito estais
2624
nesta parte, quanto à minha
2625
me deveis satisfação,
2626
pois sois causa de que viva
2627
morto, com mil disfavores
2628
que me faz dona Maria.
2629
E assi pois em campo estamos
2630
por que de nós não se diga
2631
que a desafio saímos
2632
e por medo ou cobardia
2633
as espadas não medimos,
2634
tomais do campo a medida
2635
que quiserdes, que esta espada
2636
vos mostrará quem a vibra.
2637
Ea, que vos suspendeis?
2638
Mostrai vossa valentia.

Fadrique
2639
Infante, nunca o céu queira
2640
que contra vós algum dia
2641
desembainhe esta espada,
2642
posta a vossos pés rendida,
2643
eu me dou por satisfeito
2644
da queixa que de vós tinha,
2645
que pera estar obrigado
2646
a satisfação me obriga.
2647
Se esta desculpa não basta
2648
para desculpar-me ainda,
2649
a dona Maria Teles
2650
direi que por culpa minha
2651
contra vós, injustamente,
2652
tantos rigores fulmina.
2653
Se, contudo, infante amigo,
2654
desta culpa cometida
2655
vos não dais por satisfeiro
2656
para vingar vossa ira
2657
aqui tendes esta espada.
Dá-lhe a espada.
2658
Tomai-a, que por ser minha
2659
podereis mais facilmente
2660
tirar-me com ela a vida,
2661
quando somente quisera
2662
viver para que vos sirva.

Infante
2663
Tão discreto me obrigais
2664
que, se a infanta fora minha,
2665
tomara, Fadrique amigo,
2666
ser Alexandre por vida
2667
para deixar-vos a dama
2668
a quem dar mate podia.

Fadrique
2669
Os pés bejo a vossa alteza,

Infante
2670
Os braços melhor se estimam.

Fadrique
2671
Ânimo, amor, que talvez
2672
se vence com a perfia.

Vão-se.
Sai Medronho com Rosa, que traz um espelho.

Rosa
2673
Toma e vê-te neste espelho,
2674
se crédito me não dás,
2675
porque nele te verás
2676
mais que Medronho vermelho.

Medronho
2677
Viva Deos, que isto me fez
2678
esta noite alguma bruja
2679
que em figura de coruja
2680
me quis chupar do envés.

Rosa
2681
Não vês como tens coradas
2682
as faces?

Medronho
Bem vejo, à fé,
2683
que estão mais vermelhas que
2684
se foram esbofeteadas.

Rosa
2685
Não sei se esta cor puseste
2686
para ser mais gentil-home.

Medronho
2687
Por ventura sou eu home
2688
que para Narciso preste?
2689
Eu, vermelho? Eu, cor no rosto?

Rosa
2690
Nam sei que isto possa ser

Medronho
2691
Deixa-me tornar a ver
2692
nesse espelho, por meu gosto,
2693
que folgo de ver-me agora
2694
tam gentil-home e corado.

Rosa
2695
Tens como deciplinado
2696
o rosto todo por fora.
2697
Mas essa cor, soponho,
2698
que diz bem com o nome de Medronho.

Medronho
2699
Mui bem nisso reparaste,
2700
porém, dá-me cá um pano
2701
para alimpar esta cor,
2702
que se bem me nam engano
2703
folgas de que eu aproveite
2704
para te enfeitardes quando
2705
fores amanhã à missa.

Rosa
2706
Toma esse lenço, borracho.

Medronho
2707
Mostra.

Rosa
Alimpa.

Medronho
Molha.

Rosa
Toma

Medronho
2708
Estou já mais descorado?

Rosa
2709
Bem estás.

Medronho
   Que te pareço?

Rosa
2710
Que me pareces.

Medronho
Zombamos?

Rosa
2711
À fé.

Medronho
Toca.

Rosa
    Toco.

Medronho
Lindo.

Rosa
2712
Mas antes creo que um trago
2713
melhor tocaras agora.

Medronho
2714
Oh, quem me vira corado
2715
antes com esse vermelho.

Rosa
2716
Pois vem, porque eu quero dar-to.

Medronho
2717
Dessa cor quero os ciúmes
2718
que, sendo, como está claro,
2719
filhos bastardos de amor,
2720
se por bastardos os trato
2721
também Baco tem ciúmes,
2722
pois se compõem de bastardo.

Vão-se.

Terceira Jornada

Sai o Infante e Dona Maria, dadas as mãos.

Infante
2723
Agora, sim que vejo
2724
cumprido meu desejo
2725
agora sim que a mando resoluto
2726
gozo de meu amor o doce fruto
2727
agora sim que logro venturoso
2728
a ventura de ver-me vosso esposo
2729
que amor, que tudo alcança e facilita,
2730
em possessão ditosa solecita
2731
gozar-se em doces laços
2732
abrindo braços e apertando abraços.

Dona Maria
2733
Estes vos dou, Infante,
2734
já como a vossa esposa e como amante
2735
pois porque al fim me viste bem lograda
2736
para sempre convosco estou casada
2737
porque é desluzimento
2738
amor que nam se ordena a casamento.

Infante
2739
Mil parabéns vos dou de Dona Maria.
2740
O sol, autor do dia,
2741
quando deixar as águas neptuninas,
2742
torquezadas cortinas
2743
do leito azul de Tétis, que obediente
2744
lhe corre, lá na casa do Ocidente
2745
e quando ao deos nocturno a porta abrindo
2746
for as horas do dia destinguindo
2747
em seu carro luzente
2748
d’entre os belos topázios do Oriente
2749
vendo os raios divinos
2750
que ostentam vossos olhos perigrinos
2751
deixando logo seu dourado carro
2752
baxe, alegre e bizarro,
2753
para servir somente de juolhos
2754
às mininas de vossos lindos olhos
2755
porque no céu bem podem por melhores
2756
sustutuir de sol luzes maiores.
2757
Ofereçamos a Aurora
2758
de pérolas, que chora
2759
belíssimas grinaldas.
2760
Flora, vós de tapetes de esmeraldas
2761
a Primavera, flores e boninas
2762
sirvam-vos estas fontes cristalinas
2763
de espelho, a vossa vista sempre bela
2764
alegre-se com ela
2765
este jardim de flores matizado
2766
cubra-se de matizes todo o prado
2767
vista-se de alegria
2768
o campo, o monte, o vale, a selva humbria
2769
cantem as belas ninfas
2770
corram sempre risonhas estas linfas
2771
repitam ledas aves
2772
doces endechas e canções suaves
2773
as plantas reverdeçam
2774
os bosques se guarneçam
2775
de boninas e cores
2776
dispam-se de rigores
2777
as feras desses montes
2778
mostrem-se os horizontes
2779
cobertos de escarlata
2780
estas fontes de prata
2781
correndo transparentes
2782
banhem sonoras flores diferentes,
2783
seu manto estenda neste campo flora,
2784
cantem as de Hipocrene em voz sonora
2785
e mostre esta alameda
2786
movendo as folhas que me escuta leda
2787
vinci feniceos anos
2788
sem desvelos tiranos
2789
queixumes da ventura
2790
gozando sempre vossa fermosura
2791
de alegres passatempos
2792
tendo em todos os tempos
2793
novas felicidades
2794
glórias de eternidades
2795
eternas alegrias
2796
alegres noites e felizes dias.

Sai Rosa e Medronho .

Rosa
2797
A dar-te mil parabéns
2798
te vimos, senhora, a ver
2799
cheos de gosto e prazer
2800
do novo estado que tens.
2801
Nesse amoroso troféu
2802
sem que a morte te devida
2803
gozes mais anos de vida
2804
que tem estrelas o céu.
2805
Tal ventura tenhas que
2806
jamais não vivas ciosa
2807
que esta pensão rigorosa
2808
paga quem não guarde fé.
2809
Nesta companhia tal
2810
logres estrela tão boa
2811
que te aclame ? por Lisboa
2812
rainha de Portugal
2813
e tão conformes vivais
2814
que sendo dous devididos
2815
digam que estais tão unidos
2816
que pareceis um, não mais.
2817
Vivei com muita alegria
2818
rendendo graças aos céus
2819
por vos haver dado Deos
2820
tão fermosa companhia.

Infante
2821
Só a Deos, nesta ocasião,
2822
dou as graças de ser vosso.

Dona Maria
2823
Só com amor pagar posso,
2824
esposo, tanta afeição.

Medronho
2825
Pois eu, como te direi
2826
senhor, o que vejo em ti?
2827
Tal prazer recebo em mi
2828
que ser papa desejei
2829
porque assim em gosto tal
2830
quando contigo falasse
2831
tantas bênças te lançasse
2832
que igualem com o missal.
2833
Cantem os músicos logo,
2834
tracem-se festas estranhas,
2835
comam-se muitas castanhas
2836
todas assadas no fogo.
2837
Mais de cem mil boticários
2838
toquem seu almofarices,
2839
tomem-se pelos narices
2840
tabaco por modos vários.
2841
Comam-se muitos pepinos
2842
beringelas e bananas,
2843
vendam-se pelas cabanas
2844
os autos de Valdevinos.
2845
Tanjam em harpas de couro
2846
com trombetas de funil,
2847
toquem-se pipotes mil,
2848
sirva um casado de touro,
2849
e, pera ter tudo graça,
2850
nesta festa, por devisa
2851
saiam correndo em camisa
2852
cem bruxas por toda a praça.

Infante
2853
Que bem a festa traçaste.

Rosa
2854
Nunca outra vejas melhor
2855
em teus dias.

Medronho
        Pois, senhor,
2856
se da festa te pagaste,
2857
pera ajuda dela intento
2858
pedir-te certas mercês
2859
porque é justo que mas dês
2860
em dia de casamento.
2861
Confiado nisto quero
2862
dar-te este memorial
2863
porque de ti, libaral,
2864
famoso despacho espero.

Infante
2865
Mostra.

Medronho
           Meus serviços nele
2866
todos cifro desta vez
2867
e se poucos nele vês
2868
outros tenho fora dele.
(Dá-lhe o memorial.)
2869
O que nele mais atento
2870
é que o ofício, senhor,
2871
me dês de monteiro-mor
2872
porque no monte pretendo
2873
como Medronho viver.

Infante
2874
Dous mil cruzados em pago
2875
de me servires te pago.

Medronho
2876
Deixa-me, infante, sequer
2877
descalçar-te este sapato
2878
pera te beijar no pé,
2879
por que ninguém cuide que
2880
fingo que o sapato te ato.

Dona Maria
2881
Eu do mestrado de Cristo
2882
que administradora sou
2883
também a Rosa lhe dou
2884
uma tença.

Rosa
    Bem, com isto
2885
pagas mais do que me deves.

Medronho
2886
Pois já tenho tanta renda
2887
há quem casar-se pretenda?
2888
Rosa, se a sofrer te atreves
2889
achaque de casamento
2890
com todos cinco sentidos
2891
o menor de teus maridos
2892
serei se assi te contento,
2893
porque havendo dous casados
2894
parece fim de comédia.

Rosa
2895
Antes parece tragédia.

Medronho
2896
Porquê? Se estão desposados
2897
nossos amos?

Rosa
        Por casar-nos
2898
antes que a comédia acabe.

Medronho
2899
Quem a história desta sabe
2900
nada terá que notar-vos.
2901
Casar-nos aqui convém
2902
que não é cousa roim
2903
que cada um se casa al fim
2904
adonde lhe está mais bem.
2905
E a esses ossos me toca
2906
pois se lembram nossos amos
2907
de dar-nos com que comamos.

Rosa
2908
São neve e cristal de Rosa.

Medronho
2909
Não são senão, voto a Deos,
2910
tudo polpa na verdade.
2911
Oh que mão sem alvaiade.

Dona Maria
2912
Deixem-vos lograr os céus.

Infante
2913
Por ser cousa mui vulgar
2914
música nos casamentos
2915
saiam com seus instrumentos
2916
os músicos a cantar.

Saem os músicos.

Músico
2917
Aqui nos apresentamos
2918
pera em tudo obedecer.

Infante
2919
Cantai e, se puder ser,
2920
não tempereis.

Músico
         Não estamos
2921
pera a nenhum aguardar
2922
se de temperar se acorda
2923
que me dá tratos de corda
2924
qualquer nécio temperar.

Cantam:

[MÚSICOS]
-->
2925
Entre aquele álamo verde
2926
queixas formava de amor
2927
breve cítera de pena
2928
um ramalhete com voz.
-->
2929
Ai que rigor
2930
queixar-se sem remédio por amor.
-->
2931
Lágrimas verte queixoso
2932
queixas canta em triste tom
2933
que se o cantar alevia
2934
o chorar aumenta a dor.
-->
2935
Ai que rigor
2936
queixar-se sem remédio por amor.
-->
2937
Venturoso aquele que
2938
amor nunca exprimentou
2939
pois até um passarinho
2940
se sabe queixar de amor.
-->
2941
Ai que rigorI
2942
queixar-se sem remédio por amor.

Enquanto estão cantando, sai a infanta ao pano, e acabando diz:

Infanta
2943
Música neste jardim,
2944
ai Deos, a quem se dará?
2945
Mas quiçá que o infante seja
2946
quem a música vem dar.
2947
D'entre estas ramas oculta
2948
quero ver a quem se dá.
2949
se também (como a de Orfeu)
2950
estas trás si não levar.

Esconde-se entre umas ramas enquanto os músicos tornam a cantar.
Cantam os músicos:

[MÚSICOS]
-->
2951
Entre aquele álamo verde
2952
queixas formava de amor
2953
breve cítera de pena
2954
um ramalhete com voz.
-->
2955
Ai que rigor
2956
queixar-se sem remédio por amor.

Vão-se os músicos.

Infante
2957
Se comparar com a luz do sol quisesse
2958
(Dona Maria) vossa fermosura
2959
e se com sangue sobre neve pura
2960
a cor de vosso rosto engrandecesse
2961
se nome de robis à boca desse
2962
(que um brinquinho de cravo me afigura)
2963
e com a Rosa de melhor frescura
2964
comparar vossa graça pretendesse
2965
se chamasse trençados de ouro fino
2966
vossos cabelos em que a natureza
2967
mostrou de seus poderes o tesouro
2968
fora grande ousadia e desatino
2969
pois vence vossa angélica beleza
2970
rosa, cravo, rubis, sol, ouro.

Medronho
2971
Advirte, senhor, que é tarde
2972
e vamo-nos acostar
2973
que temo muito os serenos
2974
que me fazem grande mal,
2975
e, já que recém-casado
2976
com Dona Maria estás,
2977
não faças a noite curta
2978
que larga tomara mais,
2979
que, pardês, quisera agora
2980
lá na Noruega estar
2981
por ter seis meses de noite
2982
só pera dormir em paz.

Infante
2983
Dizes bem, daqui nos vamos.
Faz a Infanta ruído entre as ramas.
2984
Mas aguarda, que ali está
2985
bolindo entre aquelas ramas
2986
alguém que traição nos faz.

Medronho
2987
Alguma bruxa, senhor,
2988
imagino que será
2989
que anda por baxo da folha
2990
por se ter untado mal.

Tornam a bulir as ramas.

Infante
2991
É força reconhecer
2992
quem nos espreita sagaz.
2993
Desembainha a espada a tempo que Dona Maria se abraça com ele e fere-se numa mão.

Dona Maria
2994
Esposo, senhor, detém-te!

Infante
2995
Solta, desvia-te lá.

Dona Maria
2996
Ai que me feriste, Infante.

Infante
2997
Viva o céu, que me farás
2998
matar-me com esta espada
2999
pois com ela te fiz mal.
3000
Que desastre!

Dona Maria
        Que presságio!

Rosa
3001
Caso estranho!

Medronho
          Mau sinal.

Dona Maria
3002
Bem dizes, infaustas bodas,
3003
pois começo a celebrar
3004
com sangue as bodas primeiras,
3005
anúncio de um grande mal.

Sai a Infanta d'entre as ramas.

Infanta
3006
Que é isto, Dona Maria?

Medronho
3007
Há tal cousa?

Rosa
       Quem viu tal?

Infante
3008
Que ela fosse.

Dona Maria
         Foi desgraça.

Infanta
3009
Que tens, que ferida estás?

Dona Maria
3010
Tu, alteza, teve a culpa.

Infanta
3011
Sinto de te ocasionar
3012
tal ferida. Toma presto
3013
e at’a com esse cendal.
(Dá-lhe o cendal.)
3014
Ouvi cantar no jardim
3015
baxei, cheguei até cá
3016
pera ajudar-vos a todos
3017
estas bodas celebrar.

Medronho
3018
Não cuides que estão de veras
3019
casados, que voto a tal
3020
que estamos representando
3021
as bodas de Cananá.
3022
(à parte)
Por Deos, que esta bruxa infanta
3023
ouviu tudo.

Infanta
     Bem está.
3024
Deste novo estado Infante
3025
parabéns vos quero dar
3026
mil anos vós gozeis ambos
3027
em tálamo conjugal.

Infante
3028
Os pés bejo a vossa alteza
3029
por favor tão singular.
3030
(à parte)
Viva o céu, que me há pesado
3031
de que a Infanta saiba tal
3032
nem que com dona Maria
3033
estou desposado já.

Dona Maria
3034
Licença me dê tu’alteza
3035
por que esta mão vá curar.

Infanta
3036
Quem sem licença se casa
3037
tem licença pera o mais
3038
mas à fé que desta raiva
3039
desta pena, este pesar,
3040
eu me vingue, e deste Infante
3041
que comigo usou tão mal
3042
que ũa molher ofendida
3043
nunca sabe perdoar.
3044
Infante, vinde comigo.

Infante
3045
Obedeço ao que mandais.

Vão-se todos três.

Medronho
3046
Cê, mondongueira! Que digo?
3047
Com quem falo? Escute cá.

Rosa
3048
Que temos, ouque me dá
3049
de estar casado comigo?

Medronho
3050
Sabes, olhos de cachucho,
3051
que estar comigo casada
3052
é vida mais apertada
3053
do que ser frade capucho?

Rosa
3054
Sei que num hábito desses
3055
ver-te mui cedo te espero
3056
porque então cantar-te quero
3057
um requies todos os meses.

Medronho
3058
Por são Vasco, que um capuz
3059
cedo por ti vestirei
3060
que mui pouco sofrerei
3061
deste matrimónio a cruz.

Rosa
3062
Mau agouro por ti venha
3063
pois já matar-me desejas.

Medronho
3064
Não há casado que envejas
3065
ao viúvo não tenha.

Rosa
3066
Pera que casar querias
3067
sendo ainda tão moderno?

Medronho
3068
Porque estas noites de inverno
3069
sem companhia são frias.

Rosa
3070
Mas oh que frio que estás
3071
vem-te comigo deitar.

Medronho
3072
Receo alagado estar.

Rosa
3073
Ligado, milhor dirás.

Medronho
3074
Seja ligado, ou legado,
3075
que nada disso aproveita.
3076
Mas vamos, que desta feita
3077
hei de ver se sou castrado.

Rosa
3078
Bode me parecerás
3079
se castrado queres ser.

Medronho
3080
Se bode te parecer
3081
também tu cabra serás.

Vão-se.
Sai a Infanta e Fadrique.

Fadrique
3082
Até quando, ingrata Infanta,
3083
até quando, Infanta ingrata,
3084
matar-me teu desdém trata
3085
por querer-te com fé tanta?
3086
Se essa beleza me encanta
3087
como à de Circe rendido
3088
culpa não hei cometido
3089
vencendo-me teu amor.
3090
Mas ai, que culpa maior
3091
que confessar-me vencido?
3092
Neste vencimento quer
3093
amor ter por mais vitória
3094
ficar vencido com glória
3095
do que sem glória vencer.
3096
Por prémio de meu querer
3097
outra não quero melhor
3098
que estar vencido de amor
3099
ante esses olhos rendido
3100
que é glória pera um vencido
3101
ter um grande vencedor.
3102
Vencer teu desdém procuro
3103
e não sei, bela inimiga,
3104
como te não vence e obriga
3105
esta fé, este amor puro.
3106
Se em querer-te me asseguro
3107
duvido da segurança
3108
pois me tem minha esperança
3109
de todo desconfiado
3110
que perder por confiado
3111
é mui nécia confiança.
3112
Se desconfio de ti
3113
a culpa, senhora, tem
3114
esse teu tanto desdém
3115
com que me tratas assi.
3116
Se te confesso, ai de mi,
3117
o muito com que te adoro
3118
padeço, suspiro, choro,
3119
e das feridas sentido
3120
não sentes ver-me ferido
3121
como Angélica a Medoro.
3122
Ea ingrata, quem pudera
3123
dessa luz e vista bela
3124
viver ausente, sem vê-la
3125
inda que ausente morrera.
3126
Se quem tanto te venera
3127
jamais espera favor
3128
viver ausente é melhor
3129
por não ver seu mal presente
3130
que tal vês tiranamente
3131
esquivança aparta amor.

Infanta
3132
Por meu conselho te dera
3133
que te apartasses de mi
3134
que pode bem ser que assi
3135
algum amor te tivera.
3136
Se em partir-se persevera
3137
quem contra amor se descarta
3138
quiçá que antes que se parta
3139
obrigue em partir também
3140
que sempre parece bem,
3141
todo o amante que se aparta.

Fadrique
3142
Se confessas que obrigar-te
3143
poderei com me apartar,
3144
a troco de te obrigar
3145
quero partir e deixar-te.
3146
E pera em tudo agradar-te
3147
vou ordenar a partida
3148
que inda que me custe a vida
3149
a partir amor me chama,
3150
que a qualquer ingrata dama
3151
castiga uma despedida.

Vai-se.

Infanta
3152
Tal estou que me há pesado
3153
de ver que tão mal o trato,
3154
porque perder qualquer trato
3155
não deixa de dar cuidado.
3156
Temo que estando apartado
3157
viva de mim esquecido
3158
e nada disto duvido
3159
pera ter mais que sintir
3160
pois vejo que trás partir
3161
nam há mais que ter partido.

Vai-se.
Sai a rainha com Garcia Afonso e Diogo Afonso.

Rainha
3162
Adonde a infanta vistes? Que sem elaI
3163
tratar quero um pesar que me quebranta.

Garcia
3164
Daqui se vai agora a infanta bela.

Rainha
3165
Folgo por que não saiba disto a infanta
3166
neste caso que tanto me desvela
3167
(por ser negócio de importância tanta)
3168
segredo, amigos, e conselho peço
3169
que um bom conselho estorva um mau sucesso.

Garcia
3170
Em nome aqui de todos te prometo
3171
de servir-te fiel, como constante.

Rainha
3172
Já sabeis que casada está em secreto
3173
Dona Maria Teles c'o infante
3174
(a Beatriz do que digo me remeto)
3175
pois nas bodas se achou prova bastante.

Diogo
3176
Bem sabemos que quer Dona Maria
3177
ver se pode reinar por esta via.

Rainha
3178
Pois por que lhe atalhemos seus intentos
3179
(que excedem as maiores esperanças)
3180
amigos, escutai-me agora atentos
3181
que em vós tenho librado as seguranças
3182
em que estribo estes altos pensamentos.
3183
Eu vos prometo cargos e privanças
3184
se esta minha facção tam importante
3185
fomentardes leais contra o infante.

Garcia
3186
Tu, senhora, és rainha e a ti se deve
3187
a coroa do reino lusitano.

Rainha
3188
Pois contra quem ousado se me atreve
3189
sem temer da fortuna um desengano
3190
pelas voltas que dá em tempo breve
3191
hei traçado valer-me de um engano
3192
do qual somente podes ser Ulisses
3193
só por que em teu engenho te eternizes.
3194
Amigo, esta traição que te cometo,
3195
é digna de louvor e nam te infama,
3196
restaurador da pátria te prometo
3197
que há de aclamar-te o tempo, o povo, a fama.
3198
Consegue esta facção como discreto
3199
pois o mundo por tal assi te aclama,
3200
livrando o reino (não sem glória pouca)
3201
do cativeiro desta Circe louca.
3202
Faze com que Dom João se persuada
3203
que lhe faz traição Dona Maria
3204
porque uma indústria tenho já traçada
3205
com que te dê mais ânimo e ousadia,
3206
tal que nesta ocasião tam acertada
3207
possa enganar a mesma fantesia
3208
desso infante, enganando-se com Rosa
3209
que lhe faz tanta ofensa sua esposa.
3210
Isto com Rosa tenho já traçado
3211
(se bem o fim não sabe deste enredo)
3212
porque lhe tenho dito e declarado
3213
que me importa esta noite com segredo
3214
apurar as sospeitas de um cuidado
3215
pondo-lhe nesta parte grande medo
3216
sob pena de que a vida perderia
3217
se este engano algum tempo descobria.
3218
Porque lhe declarei que meu intento
3219
era só intentar por esta via
3220
estrovar de Fadrique um casamento.
3221
Para isto, ser a infanta fingiria
3222
vestindo-se com grande paramento
3223
num vestido que traz Dona Maria
3224
por que lhe fale assim por arte tanta
3225
que imagine Fadrique que é a infanta.
3226
Isto Rosa fará de sua parte
3227
tomando-lhe um vestido em que, galante,
3228
se vista de tal sorte e com tal arte
3229
que por Dona Maria a julgue o Infante
3230
e viva o céu de em meu governo dar-te
3231
tanta parte que a todo o mundo espante,
3232
pois tanto te darei, com tal sobejo,
3233
que os lemites exceda a teu desejo.

Garcia
3234
Causa tam justa deves principiá-la
3235
pois quando a consegui-la mais me atrevo
3236
menos tenho ocasião para deixá-la
3237
se amor da pátria ante os olhos levo;
3238
de morrer nesta empresa ou de acabá-la
3239
palavra aqui te dou que cumprir devo
3240
e me parto a tratar deste negócio
3241
que empresas grandes não permitem ócio.

Vai-se.

Diogo
3242
Eu, que sempre a servir-te me acomodo
3243
como leal vassalo e verdadeiro,
3244
pois nunca em teu serviço de algum modo
3245
jamais segundo fui, por ser primeiro,
3246
nam sendo dos que o mundo ofrecem todo
3247
e nada sabem dar por derradeiro
3248
aos mais nobres sentidos farei claro
3249
(que são os olhos) este engano raro.

Vai-se.

Rainha
3250
Que bem conheci logo desta sorte
3251
o génio que este tem para um engano.
3252
Nunca faltam traidores em a corte
3253
aptos para traçarem qualquer dano.
3254
dar a Dona Maria intento morte
3255
se é que aspira ao cetro lusitano,
3256
que pouco em subir tanto persevera
3257
quem passar quis além de sua esfera.

Vai-se.
Sai o infante com Garcia Afonso e Dom Afonso.

Garcia
3258
Isto, Infante, me mandou
3259
que te dissesse a rainha
3260
como quem tanto lhe pesa
3261
de que com Dona Maria
3262
estejas casado já,
3263
porque pensamento tinha
3264
de casar-te co a infanta
3265
para que por esta via
3266
pudesses vir a reinar.
3267
Porque por direita linha
3268
e por morte de Fernando
3269
o reino te competia
3270
se com a infanta casasses;
3271
suposto que ela não tinha
3272
filho varão que pudesse
3273
herdar esta monarquia,
3274
que mais desejava ver-te
3275
casado com sua filha
3276
de que ser ela molher
3277
(o que não consenteria)
3278
do Duque de Benavente
3279
com quem casar solecita
3280
como se tem assentado
3281
em as cortes de Leiria.
3282
Pois mais rezão era, infante,
3283
que este império possuíras
3284
que fora de teus avós
3285
casando como convinha
3286
com Beatriz tão singular
3287
que não os que vem por linha
3288
del rei dom Henrique, que
3289
neste império e monarquia
3290
nos tem feitos tantos danos
3291
com tantas guerras contínuas
3292
como experimentado temos
3293
à custa/a custas de tantas vidas.

Infante
3294
Amigo, bem desejara
3295
que isso que diz a rainha
3296
pudesse surtir efeito
3297
nesta ocasião tam precisa
3298
se nesta em que agora estou
3299
livre (como ante) me vira
3300
pera poder conseguir
3301
esse intento da rainha,
3302
mas a impossibilidade
3303
me acobarda e desanima
3304
pois vejo que já casado
3305
estou com Dona Matia.

Garcia
3306
Tudo, infante, tem remédio
3307
se este aplicá-lo te animas.

Infante
3308
Como remédio, se estou
3309
casado?

Garcia
            Cousa é sabida
3310
que Dona Maria Teles
3311
te faz traição.

Infante
       Quem podia
3312
tomar tal atrevimento
3313
se não tu? Queres que a vida
3314
te tire com esta adaga
3315
pois que com tanta ousadia
3316
te atreves a dizer tal?
3317
Bárbaro, que determinas?

Garcia
3318
Jesus, tu, adaga em meu peito?

Infante
3319
Hás visto fonte mais limpa
3320
cristal mais resplandecente
3321
corrente mais cristalina
3322
neve mais cândida e pura
3323
prata mais bela e mais fina
3324
arminho mais alvo e branco
3325
flor mais intacta e bonita
3326
luz mais clara e transparente
3327
sol, estrela mais altiva
3328
que se atreva a competir
3329
com a honestidade e vida
3330
de Dona Maria Teles,
3331
honra desta monarquia
3332
em quem mais claros se vem
3333
céu, estrelas, raios, dia?
3334
Pois por que, infame, te atreves
3335
a pôr a boca atrevida
3336
naquela que em excelências
3337
vence as romanas antigas?

Garcia
3338
Sabe que é cousa tão certa
3339
e tão fora de mentira
3340
isto que, infante, te digo
3341
(como quem tanto te estima)
3342
que Diogo Afonso que aí está
3343
é testemunha de vista
3344
a quem me remeto agora
3345
pera que o demais te diga.

Infante
3346
Dize-me, amigo, o que viste,
3347
conta-me, por tua vida.
3348
(Ai que pena tão cruel)
3349
minha desonra e desdicha!
3350
Oh, quem nunca se casara
3351
por que em transe não se vira
3352
de perder, casando, a honra
3353
que sem ser casado tinha!
3354
Quem viu maior desventura
3355
que a jóia de mais estima
3356
de maior valor e preço
3357
(prenda em que tanto se arrisca)
3358
estar sujeita ao mau trato
3359
de ũa molher fementida?
3360
Ah céu, que em raiva me abraso
3361
e me estou comendo em ira.

Diogo
3362
Por não dar-te este desgosto
3363
esta traição te encobria
3364
e sabe Deus que me pesa
3365
de chegar a descobri-la.
3366
Viva o céu, que antes tomara
3367
que a terra me consumira
3368
e que me abrasasse um raio
3369
fazendo-me em pó e cinza
3370
que um leão me espedaçasse
3371
que um basilisco me vira
3372
que um áspide me mordesse
3373
que me picasse ũa bíbora
3374
antes que ver com meus olhos
3375
o que sem eles não vira
3376
porque quisera cegar
3377
por não ver quem te ofendia
3378
mas quem te serve leal
3379
não te ofende se te avisa
3380
do que te pode ofender
3381
por que ofendido não vivas.
3382
Sabe, infante, que há na corte
3383
quem tua esposa solecita
3384
e com quem foi menos casta
3385
do que, a ser quem é, devia.
3386
À noite pelo jardim
3387
certo fidalgo a visita
3388
e no paço, serão, festas
3389
a galantea de dia.
3390
Se esta verdade melhor
3391
averiguar determinas
3392
acolhe ao jardim de noite.
3393
Quere-lo mais claro ainda?

Infante
3394
Que isto sofro e me reporte!
3395
Vai-te de aqui, que me obrigas…

Diogo
3396
Senhor…

Infante
  A dar-te…

Diogo
                   Mal pagas…

Infante
3397
Mil mortes.

Diogo
      A quem te avisa!
3398
Que se esta muita maldade
3399
tanto, infante, não sentira
3400
não me atrevera a dizer-ta
3401
nem menos a descobri-la
3402
mas vou-me porque te enfadas
3403
de que verdade te diga
3404
que hoje só privam na corte
3405
falsidades e mentiras.

Vai-se.

Garcia
3406
Infante, aos que assim te dizem
3407
verdades tam conhecidas
3408
com ânimo de servir-te
3409
sem lisonjas fementidas
3410
não deves tam mal tratá-los
3411
com tal desprezo e inomínia
3412
desobrigando inimigo
3413
a quem amigo te obriga
3414
que o que desta sorte ofende
3415
a quem verdade lhe afirma
3416
é bem que viva ofendido
3417
porque ofensa não castiga.

Vai-se.

Infante
3418
Apurar ofensas tantas
3419
obrigação é precisa
3420
porque a honra mais segura
3421
se há tropeçado periga
3422
e quem se põe a perigo
3423
quando perigando arrisca
3424
se perigar arriscado
3425
no risco se precipita.
3426
Quero apurar isto mais.
3427
Que haja quem livre me diga
3428
que se não castigo ofensas
3429
que é bem que ofendido viva!
3430
E que não lhe dou a morte
3431
tirando-lhe logo a vida
3432
que repitir as ofensas
3433
é maior ofensa ainda.
3434
Viva Deus de castigá-las
3435
com tal castigo que sirva
3436
de exemplo a saberem todos
3437
como ofensas se castigam.
3438
E com esta própria adaga
3439
hei de desfazer um dia
3440
deste ídolo que adorei
3441
o altar em que se sustinha
3442
que como tam falso foi
3443
bem merece esta ruína
3444
pois quem se deixa arruinar
3445
presto há de ver a caída.
3446
Quem cuidara, falsa aleive,
3447
molher torpe e fementida,
3448
que àquele a quem mais te adora
3449
e a quem mais teu bem estima
3450
tratasses com tal maldade!
3451
Não sei como me reprima
3452
mas beberei, dessangrando-te,
3453
esse sangue que te anima.
3454
Honra, vinganças, verás
3455
de tanta desonra minha
3456
que dessimular castigos
3457
os delitos facelita.

Vai-se.
Sai Dona Maria muito triste com Rosa.

Rosa
3458
Que triste melanconia
3459
te obriga a chorar, senhora,
3460
desde que recorda a aurora
3461
até que adormece o dia?
3462
Porque essa muita tristeza
3463
que em matar-te não faz pausa,
3464
me obriga a saber a causa
3465
de tanta pena e aspereza.
3466
Teus pesares comunica
3467
a quem, piadosa, te assiste
3468
que sempre descansa um triste
3469
enquanto seu mal publica.
3470
Algum secreto desgosto
3471
em teu peito está sujeito
3472
porque os segredos do peito
3473
logo aparecem no rosto.
3474
Não te divirtem as flores
3475
de que este jardim se esmalta
3476
tão belas que não lhe falta
3477
mais que dizerem-te amores?
3478
Não te divertem as aves
3479
que, ramalhetes com voz,
3480
com passo e salto veloz
3481
cantam endechas suaves?
3482
Não te alegra essa campina
3483
alcatifada de flores
3484
de variedade de cores
3485
formada uma tela fina?
3486
Não te diverte (senhora)
3487
veres esses frescos prados
3488
todos de aljofar bordados
3489
que a aurora sobre eles chora?
3490
Não te diverte a frescura
3491
dessas árvores e plantas
3492
que formam de folhas tantas
3493
uma graciosa espessura?
3494
Não te divertes em vendo
3495
esse arroio murmurando
3496
de jaspe em jaspe saltando
3497
e de flor em flor correndo?

Dona Maria
3498
Bem vejo que divertir-me
3499
tão várias cousas puderam
3500
se a caso lugar me deram
3501
mais do que para sentir-me.

Rosa
3502
Conta-me secretamente
3503
a dor que tantas te ordena
3504
que se diminue a pena
3505
se se diz a quem a sente.
3506
Que tens? Que cousa te faz
3507
padecer tanta tristeza
3508
que parece que te pesa
3509
de ver que casada estás?
3510
Não te obriga a que me fales
3511
esta minha compaixão?
3512
Desabafa o coração
3513
com me contares teus males.

Dona Maria
3514
Não solecito aliviá-los
3515
meus males com referi-los
3516
mas morrerei de senti-los
3517
já que vivo de contá-los.
3518
Sabe, Rosa, que sonhava
3519
uma das noites passadas
3520
que morria a punhaladas
3521
com que o Infante me matava.
3522
E despois que alcançou bem
3523
que inocente me matou
3524
tanto disto lhe pesou
3525
que se quis matar também.
3526
Acordei achando então
3527
mil lágrimas derramadas
3528
que são lágrimas sonhadas
3529
presságios do coração.
3530
Era este sonho ao romper
3531
da alva, nas portas do oriente
3532
quando o sol adolecente
3533
se deixava um pouco ver.
3534
Esse crédito se dá
3535
quanto pode a humana fé
3536
aos que em sonhos dizem que
3537
verdades sonhadas há.
3538
Vê se bastante ocasião
3539
tenho pera triste ser
3540
pois do que há de acontecer
3541
é presságio o coração.

Rosa
3542
Jesus, senhora, é possível
3543
que isso cuidado te dê
3544
quando em sonhos sabes que
3545
nam há verdade infalível?
3546
Deixa essa imaginação
3547
com que os sentidos enleas
3548
e nada em sonhos mais creas
3549
porque os sonhos sonhos são.
3550
Do Infante que não se muda
3551
em querer-te e guardar fé
3552
não cuides tão mal porque
3553
contra si faz quem mal cuida.

Dona Maria
3554
Deixa-me, Rosa, ficar
3555
um pouco somente aqui
3556
pera ver se posso assi
3557
tributo a Morfeu pagar.

Rosa
3558
Dizes bem, que o não dormir
3559
aumenta a melanconia.

Dona Maria
3560
Cerra essa porta e vegia
3561
não deixes alguém cá vir.
Vai-se Rosa.
Estará no teatro uma alcatifa e coxim, em que se deita Dona Maria a dormir, e sai o Infante só:
3562
Vinganças solecito
3563
porque ofensas vingar não é delito
3564
e quem se está julgando
3565
ofendido de amor ofende amando
3566
pois amor não consente
3567
que tributo lhe paguem docemente
3568
fulminando-lhe ingratos
3569
tratando falsidades, falsos tratos
3570
que só estão sujeitos
3571
baxos enganos em humildes peitos.
3572
Ai amor quem cuidara
3573
que contra mi enganos fulminara
3574
aquela em quem se viam
3575
quantas nocturnas luzes alumiam
3576
esse globo celeste
3577
a quem com raios de seus olhos veste
3578
mas molher e fermosa
3579
é causa de guardar deficultosa
3580
que nunca tem firmeza
3581
molher com pouco amor, muita beleza.
3582
Mas ai que ao sono entregue
3583
por que seus olhos vendo o sol não cegue
3584
ali dormida vejo
3585
esta inimiga minha em quem desejo
3586
tomar vingança justa
3587
que desta sorte (ai quanto que me custa)
3588
castigar uma ofensa solecito
3589
que tal pena merece tal delito.
Mete mão à adaga, e quando vai pera lhe dar com ela Dona Maria lhe irá ao que diz o Infante, respondendo-lhe por sonhos:
3590
Morra esta falsa ingrata.

Dona Maria
3591
Ai Jesus, quem me ofende, ou quem me mata?

Infante
3592
Quem se julga ofendido.

Dona Maria
3593
Pois que culpa, senhor, hei cometido?

Infante
3594
Que maior que ofender-me?

Dona Maria
3595
Aqui minha inocência há de valer-me.

Infante
3596
(à parte)
Viva o céu, que sonhando
3597
comigo desta sorte está falando.
3598
Morra esta fementida.

Dona Maria
3599
Por que intentas, senhor, tirar-me a vida?

Infante
3600
Porque traição me fazes.

Dona Maria
3601
Para culpar-me assi culpas não trazes.

Infante
3602
Dar-te morte mereces.

Dona Maria
3603
O peito adonde estás não atravesses.

Infante
3604
Tirar-me dele aceito
3605
porque não tenho fé em falso peito.

Dona Maria
3606
Esse teu de diamamte
3607
com sangue de meu peito lavra, infante,
3608
que como pelicano
3609
sustento te dará em sangue humano.
3610
Com essa tua adaga
3611
teu nome de meu peito, esposo, apaga
3612
por que não viva, infante,
3613
tão vário nome em peito tão constante.
3614
Ai, quantos fulminarão
3615
enganos com que, infante, te burlarão!
3616
Que tens? Que estás prevendo?
3617
Acaba de matar-me se te ofendo.

Infante
3618
Ai que se está queixando
3619
quando em sonhos comigo vai falando.
3620
Ir-me quero e deixá-la
3621
por não ter coração pera matá-la
3622
porque em vendo seus olhos
3623
estou para adorá-los de juolhos
3624
mas quando me resolvo
3625
se amando parto, mais amante volvo.
3626
Beleza mal lograda
3627
que al fim naceste pera mal fadada
3628
pois tem sempre à perfia
3629
beleza com ventura antepatia
3630
se ventura te falta
3631
nacendo por teu mal com esta falta
3632
queixa-te de ser bela
3633
e nam culpes algũa infausta estrela
3634
que estrela nam domina
3635
beleza tam gentil e peregrina
3636
corrido estou de ver-te
3637
pois nam tenho valor pera ofender-te
3638
mas nisto vou resoluto
3639
que não te ofendo se ofendido volto.

Vai-se.

Dona Maria
3640
Aguarda! Escuta! Tem-te!
Desperta.
3641
Jesus, que triste sonho e que acidente.
3642
O coração me falta
3643
foge-me o sangue se o calor me falta.
3644
Nenhum sentido acerta
3645
se inda dormida estou ou se desperta
3646
imagino e suponho
3647
que foi tudo ilusão, tudo foi sonho.
3648
Mas já vejo que morro
3649
presságio é este sonho em que discorro
3650
porque imagem da morte
3651
um sábio lhe chamou. Ai dura sorte!
3652
Que morro é cousa certa
3653
que o coração mo diz, que sempre acerta.
3654
Esta melancolia
3655
quimeras fabricou na fantesia.
3656
Ai amor mal logrado
3657
sempre por casamentos desgraçado.
3658
Pois nunca se lograrão
3659
amantes que por firmes se casaram
3660
quem nunca se casara
3661
pera que estando livre livre amara
3662
que prisões da vontade
3663
são mais suaves que as da liberdade
3664
e pois que ma tiraste
3665
por que, tirano amor, me não mataste?
3666
Mas pera que me deixo
3667
levar desta ilusão de que me queixo?
3668
Afora sonho, afora
3669
que não pode matar-me quem me adora.

Vai-se.
Sai Fadrique.

Fadrique
3670
Alegre venho e contente
3671
vendo que antes de partir-me
3672
a troco de despedir-me
3673
hei de ver meu bem presente.
3674
Sucedeu-me felizmente
3675
esta minha despedida
3676
pois pera partir com vida
3677
a Infanta manda chamar-me
3678
por que havendo de apartar-me
3679
parta esta alma na partida.
3680
Se este bem chego alcançar
3681
conseguindo tanta glória
3682
não quero maior vitória
3683
da glória de meu amor
3684
troque-se em gosto o pesar
3685
que tive em ver que partia
3686
pois converto em alegria
3687
a tristeza de partir-me
3688
vendo que hei de despedir-me
3689
de quem não me despedia.
3690
Rode a fortuna inimiga
3691
que estando amor de meu bando
3692
quando tarde espero um quando
3693
que amor a esperar me obriga.
3694
Já não temo me persiga
3695
rigores de infausta estrela
3696
que pois minha ingrata bela
3697
em glória me troca a pena
3698
se entrar na glória me ordena
3699
já não posso cair dela.
3700
Oh se a noite se parece
3701
que corre com pressa tanta
3702
que parece que se espanta
3703
de ver que tanto esperasse.
3704
Parece que já renace
3705
o dia contente e ledo.
3706
Mas de que me espanto, e enredo
3707
em ver que o dia se aviste?
3708
Pois sei de certo que a um triste
3709
sempre amanhece mais cedo.

Sai Rosa nos trajos de Dona Maria.

Rosa
3710
Hoje o papel represento
3711
da infanta Beatriz. Que bem
3712
este vestido me vem
3713
pera seguir este intento.
3714
Enganar Fadrique intento
3715
com este trajo e disfraz
3716
porque a rainha me faz
3717
meter-me em tão grande enredo
3718
que algum mistério e segredo
3719
consigo este engano traz.
3720
Aqui pela Infanta aguarda
3721
Fadrique. Este é que aqui vem.
3722
Fingir-me a Infanta convém.

Fadrique
3723
Muito já a Infanta tarda,
3724
mas quem do dia se guarda
3725
até da noite tem medo
3726
de quem fia seu segredo.
3727
Ela chega. Ânimo, amor
3728
que noutro enredo maior
3729
de novo outra vez me enredo.
3730
Fermosíssima senhora
3731
tão discreta como linda
3732
em cujo rosto se vem
3733
céu, estrelas, raios, dia,
3734
extremo das mais discretas
3735
(quando não das mais esquivas)
3736
glória de toda esta pena
3737
regalo, bem , prémio, dita.
3738
Envolta em tristes endechas
3739
despido esta amarga vida
3740
qual Cisne que, quando morre,
3741
geme, chora, canta, expira.
3742
Se folgais de ver meus males
3743
por que tristemente viva
3744
vosso gosto me conduz
3745
tumba, aromas, urna, pira.
3746
Oh bela Infanta, oh cruel
3747
minha suave homicida
3748
sempre comigo tirana
3749
crua, forte, áspera, esquiva.
3750
Deixai que esta alma vos ame
3751
e como amante vos siga
3752
entregando em vosso céu
3753
coração, alma, olhos, vida.
3754
Pois não é bem que um serafim
3755
de humano tanto se vista
3756
que por cruel e por belo
3757
fira, mate, vença, oprima.
3758
Não duvideis deste amor
3759
animai esta perfia
3760
favorecei meu desvelo
3761
fé, constância, amor, fadiga.
3762
Porque somente em amar-vos
3763
Infanta, prenda querida,
3764
ocupo todas as horas
3765
tempo, instantes, noites, dias.
3766
Aceitai bela senhora
3767
esta adoração devida
3768
que um desdém não muda ũa alma
3769
que ama, quer, adora, estima.

Rosa
3770
Esse desvelo e cuidado
3771
com que vosso amor me obriga
3772
me fez, piadosa, admitir-vos
3773
e aceitar-vos compassiva.
3774
Que quem sabe amar tam bem
3775
que um negado bem conquista
3776
tanto obriga porfiando
3777
tanto obrigando porfia.

Sai o Infante com Garcia Afonso e Diogo Afonso.

Fadrique
3778
Se a conrespondência falta
3779
a quem, senhora, é devida
3780
tem-se amor por necedade
3781
e por loucura a porfia.

Infante
3782
(à parte)
Se tal vejo, o coração
3783
me pedaços lhe devida.

Diogo
3784
Neste mesmo lugar juntos
3785
a tais horas (não te afliga)
3786
costumam ambos falar.

Garcia
3787
Daqui podes como espia
3788
ser Argos desta maldade.

Diogo
3789
Pois se não me engana a vista
3790
esses dous são que ali vês.
3791
(à parte)
Que te parece Garcia?

Garcia
3792
Que a ponto estava o engano.
3793
Foi grande acerto por vida.

Infante
3794
No vestido, viva o céu
3795
que aquela é Dona Maria.

Rosa
3796
(à parte)
Já não corresponde, ingrata,
3797
que Fadrique vos estima
3798
que na estimação que faço
3799
amor seu crédito estriba.

Fadrique
3800
Conresponder com amor
3801
é pagar de amor a dívida
3802
que em doce conrespondência
3803
amor com amor se cria.

Rosa
3804
Pagar amor com amor
3805
é de amor usança antiga
3806
e mais livre vos pagara
3807
estando menos cativa.
3808
Trocar desdéns em favores
3809
é satisfação devida
3810
e tal vês: amor que mata
3811
premea quando castiga.
3812
Do vosso estou satisfeita
3813
e me confesso rendida
3814
que mais que se Infante fôreis
3815
vos tenho em maior estima
3816
que quem persevera amando
3817
impossíveis facelita.

Diogo
3818
(à parte)
Ouves aquilo senhor?
3819
Que te parece, é mentira?

Infante
3820
Possível é que cometa
3821
tal baxeza esta inimiga?
3822
Ah fementida molher!

Fadrique
3823
Atar da fortuna minha
3824
a roda esta vez quisera
3825
por que jamais me persiga
3826
dando mais voltas comigo,
3827
que sempre teme a caída
3828
quem por fortuna subiu.

Rosa
3829
Se a temeis como inimiga
3830
prende-a com esta prenda
3831
porque não falta quem diga
3832
que por ser de meus cabelos
3833
vossa sorte e vossa vida
3834
pendente está de um cabelo
3835
nesta ocasião tão precisa.
3836
E se vem pelos cabelos
3837
será bem que vos advirta
3838
que os guardeis como Sansão
3839
de alguma Dalila iníqua.

Dá-lhe uns cabelos.

Fadrique
3840
Estes dourados cabelos
3841
sempre do sol envejados
3842
tanto vencem por dourados
3843
quanto cativam por belos.
3844
Mas ai, que em chegando a vê-los
3845
cego de amor e afeição
3846
tanto anela o coração
3847
por ver-me enredado neles
3848
que por morrer preso deles
3849
quisera ser Absalão.
3850
Com rezão se admire a gente
3851
do ouro destes cabelos
3852
tendo junto a esses sóis belos
3853
mina e crisol juntamente,
3854
e se deste ouro excelente
3855
fazer jóias pretendeis
3856
seus quilates não trateis
3857
apurar em pedras finas
3858
porque já das próprias minas
3859
todo vem feito em anéis.
3860
Neste dourado desvelo
3861
conheci, senhora, que
3862
quem vossos cabelos vê
3863
traz a vida em um cabelo,
3864
mas vós com piadoso zelo
3865
mostrais que sem isenção
3866
aceitais a adoração
3867
dos que vem esse tesouro
3868
pois não tendes anel d’ouro
3869
que não tenha um coração.
3870
De que sois sol nam duvido
3871
nacido neste horizonte
3872
porque esse dourado monte
3873
me diz que o sol é nacido,
3874
nele amor tem conhecido
3875
d’ouro fino os luzimentos
3876
e com vários instrumentos
3877
lavra com mil sutilezas
3878
anéis, cadeas, firmezas,
3879
lembranças e pensamentos.
3880
Destes anéis dos cabelos
3881
tenho formado na idea
3882
fazer d’ouro ũa cadea
3883
(prisão de quem chegue a vê-los
3884
de fuzis ricos e belos
3885
me servirão os anéis
3886
donde, infanta, me vereis
3887
preso em tam rico tesouro,
3888
que se a muitos livra o ouro
3889
vós com ouro me prendeis.
3890
Livrar-me desta prisão
3891
já não pertendo algum hora
3892
pois me lançastes, senhora,
3893
prisões d’ouro por grilhão
3894
e se estas o nome dão
3895
de forçado a meus desvelos
3896
por vossos cabelos belos
3897
tão livremente me empenho
3898
que de forçado nam tenho
3899
mais que o estar pelos cabelos.
3900
Com dourada seta amor
3901
matar de amores procura
3902
porque a ferida assegura
3903
com lhe dourar o rigor.
3904
Mas já perdeu seu valor
3905
a seta que em vós retrata
3906
os poderes que recata
3907
pois amor, bela senhora,
3908
dizem que já desde agora
3909
com vossos cabelos mata.

Rosa
3910
Sobre um fio que lançado
3911
tinha um pintor sutilmente
3912
deu Apeles excelente
3913
outro mais fino e delgado;
3914
em vós contemplo cifrado
3915
este mesmo paralelo
3916
pois se eu dei um fio belo
3917
destes outro tão gentil
3918
que por discreto e sutil
3919
podeis partir um cabelo.

Infante
3920
Há tal cousa, ó fementida,
3921
falsa, ingrata e, al fim, molher?
3922
Viva Deus, que hás de perder
3923
a punhaladas a vida.
3924
Aguarda, infame atrevida.

Garcia
3925
Senhor.

Rosa
(à parte)
Gente vem.

Garcia
                 Detém-te.

Rosa
3926
(à parte)
Fadrique, como prudente
3927
ao jardim vos retirai.

Fadrique
3928
Adeus, adeus.

Rosa
       Presto, entrai,
3929
que é conhecida esta gente.

Entram-se Rosa e Fadrique.

Garcia
3930
Com que amoroso desvelo
3931
os cabelos celebrou.

Diogo
3932
Imagino que levou,
3933
desta vez, couro e cabelo.

Infante
3934
Por minha honra atropelo
3935
se a não mato, pois que a vi.
3936
Ide-vos ambos daqui
3937
e nada digais.

Garcia
        Adeus.

Diogo
3938
Guardem-te, senhor, os céus.

Garcia
3939
Bem nos sucedeu assi.

Vão-se os dous.

Infante
3940
Quem havia de cuidar
3941
que isto pudesse caber
3942
em peito de uma molher
3943
despois de casada estar?
3944
Porém, não há que espantar
3945
achar em molher tal paga.
3946
Mas com esta própria adaga
3947
quero, tirando-lhe a vida,
3948
cobrar a honra perdida
3949
que assi paga quem mal paga.

Entra-se por ũa porta e logo pela outra sai Dona Maria, em fraldelim, como que vem da cama alvorotada com medo.

Dona Maria
3950
Gente! Criados! Ouvi-me!
3951
Há quem aqui me socorra?

Infante
3952
Morra esta traidora, morra.

Isto vai dizendo de dentro o Infante batendo na porta.

Dona Maria
3953
Valei-me céu, acudi-me!
3954
Ai Deus, que o temor me oprime!

Infante
3955
Abre esta porta, traidora,
3956
se a nam queres ver agora
3957
em mil pedaços desfeita.

Dona Maria
3958
Quer-me matar desta feita!
3959
Oh, quem nacida nam fora!

Dá o Infante na porta, e entra com o punhal na mão.

Dona Maria
3960
Que é isto, Infante e senhor?
3961
Vós com adaga empunhada
3962
contra mim desembainhada
3963
cheo de ira e rigor?
3964
Como vindes? Que furor
3965
vos obriga a entrar assi?
3966
Há inimigos aqui?
3967
Mas já na reposta vejo
3968
que vos tem dito sem pejo
3969
algũa cousa de mi.
3970
Esposo, Infante, meu bem,
3971
vós contra mim indinado?
3972
Estais de mim agravado
3973
ou agravou-vos alguém?
3974
Em que ofendido vos tem
3975
este amor tam singular?
3976
Quereis acaso matar
3977
quem n’alma vos reconcentra?
3978
Que há homem que a matar entra
3979
e despois tudo é chorar.

Infante
3980
Molher pouco afortunada
3981
em triste ponto nacida
3982
mais que amada fementida
3983
com ser em extremo amada
3984
pois que foste tam malvada
3985
que ofendes a quem te adora
3986
vingar-me em teu sangue agora
3987
é tomar vingança justa.
3988
Mas ai, quanto que me custa
3989
matar-te sendo traidora.

Dona Maria
3990
Aguarda. Deixa-me, tem-te!

Infante
3991
Nam te canses, desta sorte
3992
te deixo com dar-te morte.

Dona Maria
3993
Contra meu sangue inocente
3994
ah, traidor, que injustamente
3995
me matas com tal desonra.

Infante
3996
Morre, que o matar-te me honra.

Dona Maria
3997
Ai Jesus que morta sou!
3998
Ai de mim!

Vai-se retirando até que cai morta.

Infante
  Vingado estou,
3999
que assim ressucita a honra.
4000
Entra o Infante por ũa porta e sai logo pela outra trás Fadrique, que vem retirando-se do Infante só com adaga e o Infante o comete com espada.

Fadrique
4001
Tem-te, Infante.

Infante
             Meu valor
4002
não sabe deter-se a nada.

Fadrique
4003
Deixa-me cobrar a espada,
4004
cobarde.

Infante
Dá-te, traidor.

Fadrique
4005
Nunca me vence o temor.

Infante
4006
Viva o céu de atravessar-te
4007
por ver-te aqui nesta parte
4008
falar com Dona Maria.

Fadrique
4009
Não há tal. Foi fantesia.

Infante
4010
Nam trates de desculpar-te.

Sai a Rainha, Infanta, Diogo Afonso, Garcia Afonso, Rosa.

Rainha
4011
Que é isto? Armas donde estou?

Fadrique
4012
Matar-me o infante queria
4013
porque com Dona Maria
4014
diz que falando me achou
4015
e por Deos que se enganou
4016
em presumir tal de mim
4017
porque é tam falso isto assim
4018
que ao tempo que o infante entrava
4019
porque com a infanta estava
4020
me retirei do jardim.

Infanta
4021
Nam há tal. É falsidade!

Fadrique
4022
Pois senhora!

Infanta
        Vós comigo?

Fadrique
4023
Podeis negar o que digo?

Infanta
4024
Digo que nam é verdade!

Rosa
4025
Senhores, esta maldade
4026
é justo que aqui publique
4027
por que culpado não fique
4028
ninguém no que eu cometi
4029
pois ser a infanta fingi
4030
por burlar-me de Fadrique.

Infante
4031
Falai vós outros.

Diogo
              Cuidei
4032
no vestido que trazia
4033
que era al fim Dona Maria.

Garcia
4034
Também nisso me enganei.

Rosa
4035
Esse vistido tomei
4036
com que melhor me enfeitasse.
4037
(à parte)
(Que isto a Rainha traçasse
4038
e que me obrigue a calar?)

Infante
4039
(à parte)
(Estes, só por não reinar,
4040
fizeram com que a matasse.)

Sai Medronho.

Medronho
4041
Saiba vossa majestade
4042
que é morta minha senhora.

Infante
4043
A morte lhe dei agora
4044
cuidando que falsidade
4045
me fazia.

Rainha
 Há tal maldade?
4046
A vê-la é razão que acuda.

Medronho
4047
Pois, senhor, por ti direi
4048
contra si faz quem mal cuida.

Estará no teatro, a uma parte, Dona Maria que aparece morta toda ensanguentada.

Rainha
4049
Mal lograda fermosura.
4050
Culpa foi nacer tão bela
4051
debaixo de alguma estrela
4052
que influi tal desventura.
4053
Levem logo à sepultura
4054
esse cadáver a quem
4055
honroso túmulo dem.
4056
E vós, infante, ide preso
4057
que de castigar me prezo
4058
delitos como convém.

Infante
4059
Todos al fim me enganaram.
4060
Em falsos não há fiar
4061
pois por não vir a reinar
4062
estes enredos traçaram.

Medronho
4063
De ti, senhor, se burlaram
4064
com que tudo se te muda.
4065
E aqui o senado me acuda
4066
com um vítor, por que assim
4067
tenha a comédia aqui fim
4068
contra si faz quem mal cuida.

Fim.