Francisco de Sá de Miranda

Os Estrangeiros, 1561





Texto utilizado para esta edição digital:
Sá de Miranda, Francisco. Comédia dos Estrangeiros (1561) [on-line]. En: Camões, José (dir.) Teatro de autores portugueses do Séc. XVI. Base de dados textual Lisboa: Centro de Estudos de Teatro, Universidade de Lisboa. [15 novembro 2023] Disponível em: http://www.cet-e-quinhentos.com/
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  • Camões, José

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Dirigida ao ifante cardeal dom Anrique

No que vossa alteza manda, que se pode dizer mais? A comédia qual é tal vai, aldeã e mal ataviada. Esta só lembrança lhe fiz à partida: que se não desculpasse de querer às vezes arremedar Plauto e Terêncio, porque em outras partes lhe fora grande louvor; e se mais também lhe acoimassem a pessoa de um doutor, como tomada de Ludovico Ariosto, que lhes pusesse diante os três avogados de Terêncio, dos quais um nega, outro afirma, o terceiro duvida, como inda cada dia acontece. Assi que dês aquele tempo vem já o furto, não se enganem c’o nome de doutor, novo, bárbaro e presuntuoso, como são muitos títulos, assi dos escritores como das obras dos nossos tempos, tão diferentes do comedimento dos passados, como foi o de filósofo dado por Pitágoras. Túlio com que ameaçava já seu amigo Trebácio, tamanho jurisconsulto, senão com as graças de Labério? E Horácio com quantas de suas graças passa um sermão c’o mesmo Trebácio? A comédia, tão estimada nos tempos antigos, que al disseram aqueles grandes engenhos que era senão ũa pintura da vida comum? À dos príncipes se repartiu a tragédia. Todos estes e outros muitos inconvenientes eu passava levemente. O mais que arreceava eram más interpretações a cada passo, às quais quem pode fugir, se ‘té os hereges quantos são também trazem a Sagrada Scritura em sua ajuda interpretando mal, e o diabo também? A isto tudo houvera algum remédio, que era o do fogo. Mas ao mandado de vossa alteza que farei, salvo obedecer e pedir-lhe que empare estes Estrangeiros, como fazem os grandes príncipes, e de cujo emparo somente confiam os que vão por terras alheas? Eu não vou pedindo salvo perdão; este pelo provérbio grego é devido no começo das cousas. Nosso senhor, sua vida e real estado, etc.



PESSOAS DA COMÉDIA:

Amente, mancebo
Alda, moça de servir
Dório, casamenteiro
Devorante, truão
Petrónio, doutor
Guido, mercador
Vidal, servidor
Cassiano, aio
Ambrósia, velha
Briobris, soldado
Calídio, mancebo de serviço
Sarjanta, molher de serviço
Galbano, velho
Reinalte, velho
O presentador

Prólogo

A pessoa da Comédia faz o prólogo.

COMÉDIA
1Estranhais-me, que bem o vejo. Que será? Que não será? Que entremez é este? Foi grã dita que não apodais já, mas não há de falecer quem me arremede. Os portugueses sois assi feitos logo pola primeira, despois dareis o sangue dos braços. Agora parece que me estranham ainda mais, parece-vos que não diz a fala c’os trajos? Esperáveis deles alguns triquestroques. Ora me ouvi, dir-vos-ei quem sou, donde venho e ao que venho. Quanto ao primeiro, sou ũa pobre velha estrangeira. O meu nome é Comédia. Mas não cuideis que me haveis, por isso, de comer, porque eu naci em Grécia e lá me foi posto o nome, por outras razões que não pertencem a esta vossa língua. Ali vivi muitos anos a grande meu sabor. Passaram-me despois a Roma, pera onde então, por mandado da fortuna, corria tudo. I cheguei a tanto que me não faleceu um nada de ser deosa. Despois, a grandeza daquele império, que parecia pera nunca acabar, todavia acabou. E, assi como a sua queda foi grande, assi levou tudo consigo. Ali me perdi eu com muitas das boas artes. E aí jouvemos longo tempo como enterradas, que já quasi não havia memória de nós, ‘té que os vezinhos em que duns nos outros ficara algũa lembrança cavaram tanto que nos tornaram à vida, maltratadas, porém, e pouco pera ver. Agora que já íamos, como dizem, ganhando pés, sentiu-nos logo aquela nossa ĩmiga poderosa que nos da outra vez destroíra. Foi-se lá, pôs outra vez tudo por terra, bem entendeis que digo pola guerra, imiga de tod’o bem. Venho fugindo. Aqui neste cabo do mundo acho paz, não sei se acharei assossego. «Já sois no cabo?» e dizeis «Ora não mais, isto é auto!», e desfazeis as carrancas, mas eu o que não fiz até ‘gora, não queria fazer no cabo de meus dias, que é mudar o nome. Este me deixai, por amor da minha natureza, e eu dos vossos versos também vos faço graça, que são forçados daqueles seus consoantes. Eu trato cousas correntes, sou muito clara, folgo de aprazer a todos. Direis vós que não é muito boa manha de dona honrada, direis, que portugueses sois. Finalmente, a mim nunca me aprouveram escuridões, nem falo senão pera que me entendam. Quem al quiser não fale e tirará de trabalho a si e a outrem. Muitas contas vos dou de mi logo de boa entrada, cuidáveis que não havia de trazer de molher senão o trajo? Ora vistes que também trouxe a língua. Agora sabei que inda havemos de fazer um caminho longo. Já ouviríeis falar de Palermo, cidade nobre em Secília. I vos hei de dar a mostra da minha tenda, por que lá sejais também estrangeiros. Cuidais que gracejo. O meu poder é mor do que pola ventura cuidais, não me tenhais em pouco por me verdes assi tão conversável. Não se mova ninguém, assegurai-vos. Vedes-nos em Palermo todos a salvamento. Ora daquelas casas defronte sairá um mancebo valenciano por nome Amente. A este segue um seu aio que o vigia quanto pode. E destes e doutros sabereis o mais, que eu lhes mandei a todos que falassem português. E por que ouçais c’os corações repousados, eu vos tornarei donde vos trouxe. Já sabeis que o posso fazer. Ouvi e favorecei-me.


Acto I

[cena I]

Amente, mancebo; Cassiano, aio.

AMENTE
1Já vens após mim, Cassiano? Que me queres? Por vida se pode haver um tão pesado cativeiro?

CASSIANO
2Cativeiro chamas tu ao teu remédio? Assi fazeis vós outros a tudo, mudais os nomes como quereis e ficais contentes. Eu, Amente, eu sou o cativo, que me trazes sempre após ti por onde queres.

AMENTE
3Ainda os escravos tem horas livres, tem suas festas, eu sempre hei de jazer debaixo deste jugo? Que me queres? Queres-me acabar de matar?

CASSIANO
4Mas tu que queres? Queres-te acabar de perder? Oh, Amente, quão mal te ensinou a minha mansidão.

AMENTE
5Como, sempre hei de ser menino?

CASSIANO
6Agora te é a ti mais necessário o teu aio que nunca.

AMENTE
7Não me dirás que me queres?

CASSIANO
8Guardar-te, que este é o meu cargo, como me encomendou teu pai.

AMENTE
9De que me hás de guardar?

CASSIANO
10Da tua doudice, pois queres que to diga.

AMENTE
11Cuidas que te hei de fugir?

CASSIANO
12Não andas tu nesses tratos? De Palermo não fugirás tu, mas de mim si. Ora já que tu fazes o que não deves, deixa-me a mim fazer o que devo.

AMENTE
13Que desaventura tamanha foi a minha?

CASSIANO
14À boa companhia e bons conselhos de seu aio chama este ora cativeiro ora desaventura. Não suspires, crê-me que te hei de seguir como a tua sombra.

AMENTE
15Essa não me segue polo escuro e tu si. Mas não estemos mais nestes debates, antes me tornarei a casa, i que mal posso fazer? Tu guarda a porta, se quiseres.

[cena II]

Cassiano, só.

[CASSIANO]
1I lá tomar cuidado de filhos alheos! Onde há isto de ir ter? Que se fez do acatamento que estes moços soíam de ter a seus aios, que não somente lhe ousavam de levantar os olhos? Agora vedes em que mundo somos, que, às vezes, vos cumpre fazer que não vedes e outras que não ouvis. A doudice não sabe ter meio. A tanto são chegados que gracejam e dizem que já se não costumam aios, como se fossem trajos curtos ou longos, e dos velhos dizem que cantam por ũa corda e por fabordão. Oh, pois, que música a sua, deles, e que contraponto: muitos escárnios, muitas mentiras, pouca verdade, menos vergonha. Beijam-vos as mãos cem mil contos de vezes, cedo hão de beijar também os pés como ao papa, se ele não acode por seu estado. Entregam-se-vos por escravos c’os ferros nos pés e c’os ferretes nas testas. Então, quando os requereis, foi a mor mofina do mundo, porque aquilo só não podem. Ora da outra parte cotejai o cantochão dos nossos velhos, o seu si polo si, polo não não; o seu rego vai, rego vem; o seu dizer e fazer. Qual haveis por melhor música? Digo-vos em boa verdade que o d’agora tudo parece escárnio quanto vedes, porém não se lancem os pais de culpa, que os criam tanto na vontade. Todos somos enfeitiçados co estes filhos. Despois que os danam, encomendam-no-los. Quanto há que partimos de Valença... íamos pera Rodes, nosso amo quisera encostar este filho àquela religião. Estando aqui esperando passagem, vieram novas do cerco, agora já dizem mais da tomada. Temos gastado muito do tempo e o dinheiro todo. Este moço namorou-se-me aqui e perdeu o siso, eu ando em vésporas de perder também o meu co ele. Tenho escrito a seu pai que acuda, espero sua reposta. Entretanto, ando assi tendo-me ao mar. Esta doudice dos amores nace de ociosidade e nela se mantém. Esta ao menos lhe queria tirar e, por isso, o persigo co a minha presença, ao menos não falará tanto co aquele seu grande privado Calídio.

[cena III]

Alda, moça de servir; Ambrósia, velha; Cassiano.

ALDA
1Assi é como dizes, minha tia Ambrósia, mas andemos mais, que faço já grande detença.

AMBRÓSIA
2Bem dizes, Alda filha, se eu pudesse, mas vou muito carregada.

ALDA
3De quê, tia?

AMBRÓSIA
4D’oitenta anos que trago às costas e pesam muito.

CASSIANO
5À míngua daquela cárrega anda meu criado Amente tão leve.

ALDA
6Mal é esse que todos desejamos.

AMBRÓSIA
7Com muitos outros de companhia, que tu não dizes.

ALDA
8Que tais?

AMBRÓSIA
9Estes homens, filha, principalmente.

ALDA
10Gracejas, tia?

AMBRÓSIA
11Gracejar, dizes? Antes te esconjuro mil vezes que te não ponha ninguém medo com outras almas pecadoras.

ALDA
12Não serão todos tão maus.

CASSIANO
13Já aquela jaz. Medo hei que a velha acuda já tarde ao arroído.

AMBRÓSIA
14Todas queremos fazer essa experiência de novo. Então, filha, quantos queixumes!

ALDA
15Ditosa é logo esta tua Lucrécia, que tantos aqui andam bebendo os ventos por ela.

AMBRÓSIA
16Assi queira Deos que não se solte tudo em ventos.

CASSIANO
17Como? Velha prática e sesuda.

ALDA
18É o doutor Petrónio tão rico.

AMBRÓSIA
19Bem o sei, mas tu dizes tão rico e não dizes tão calvo.

ALDA
20Diz que a tomara em camisa.

CASSIANO
21E, se vierem aos lanços, meu criado Amente a tomará nua.

ALDA
22E a isso cuido que és agora chamada, porque o doutor aperta muito.

CASSIANO
23Que me matem se esta não é a paixão em que agora anda o doudo de meu criado Amente.

AMBRÓSIA
24Aquele dom abade, tio de Lucrécia, religioso como eles soíam de ser, tanto lhe deixou do seu que Betrando a pode casar sem lhe custar nada, e mais com tal ajuda de Deos, como é parecer seu e o siso.

ALDA
25Lá saberás tudo. Não façamos mais detença.

[cena IV]

Cassiano, só.

CASSIANO
1Se esta moça verdade conta, empresto eu a nosso amigo uns poucos de maus dias com suas noites, que o negócio do doutor é de siso, não pera ele mas pera Betrando e pera a moça também, se ela é sesuda, como diz a velha. Falo como se costuma de falar, que todos nos lançamos a este proveito do doutor. Crede, se a colhe às mãos, que ele terá cuidado de fechar suas portas e janelas a tempo. Então, deixai vós ao doudo rodear a casa e sospirar toda a noite. Vós, todavia, não duvideis que, entretanto, o sono não preste mal ao coitado do velho e desconfiado. Ah, que queremos forçar tudo e a natureza também. Velho namorado com moça fermosa e empolada, não há i pera dous dias. Despois, não lhe há de falecer outro melhor empenado com quem logre o que lhe o velho deixar por sua alma, tanto às suas custas. Mas deixemos a cada um fazer suas contas e cuidar que as acerta. Prouvesse a Deos que visse já o casamento feito, o doutor entraria em fadiga, eu pola ventura sairia dela.

[cena V]

Dório, casamenteiro; Cassiano, aio.

DÓRIO
1Até quando traremos nós ao pescoço este jugo dos espanhóis? Até quando jaremos neste sono e neste esquecimento da nossa liberdade?

CASSIANO
2Também este vem bracejando e falando consigo.

DÓRIO
3Quando lhe cantaremos nós outras vésporas secilianas, como fizemos aos franceses? Venha, como dizem, o diabo e escolha. Todavia, o francês rouba-te e convida-te; o espanhol sempre quer senhorear. Como se pode sofrer tanto senhor capitão?

CASSIANO
4Coitados, que neste murmurar nos mantemos.

DÓRIO
5Se a terra destes é como eles dizem, que buscam na nossa? Oh, ilha tão abastada e tão rica por teu mal! Mas vejo quem buscava.

CASSIANO
6A mim se vem, não o conheço, que me quererá?

DÓRIO
7Senhor meu, quando o assi por bem houvesses, releva-me muito ouvires-me duas palavras.

CASSIANO
8Não digo eu duas mas duas mil, se tantas mandares.

DÓRIO
9Pola tua humanidade e cortesia. Ora a mim me chamam Dório, não sei se me conheces, mas sou muito conhecido nesta cidade, por tratar meu ofício, muitos anos há, com grande limpeza e fidelidade.

CASSIANO
10E que ofício é o teu?

DÓRIO
11Grande e de muita confiança.

CASSIANO
12Que tal?

DÓRIO
13Casamenteiro, a serviço de Deos e dos bons.

CASSIANO
14Pera tratar tamanha e tão santa cousa, como é o casamento, não se podia escolher salvo pessoa das calidades que deve d’haver em ti.

DÓRIO
15Não polo eu merecer, mas faço, todavia, polo não desmerecer. E, vindo ao meu caso, digo que vivendo eu aqui em paz e amor de todos, servindo meu ofício como tod’o mundo sabe, agora já no derradeiro quartel da vida, um mancebo de que me dizem que tens carrego anda de todo posto em me matar.

CASSIANO
16Matar, ou como?

DÓRIO
17E mais sobre meu ofício.

CASSIANO
18Quem te disse tal?

DÓRIO
19Muitos e, antre os outros, ele mesmo.

CASSIANO
20Conta-mo.

DÓRIO
21Passando por mim, ameaçou-me, mordendo um dedo da mão e dizendo não sei que palavras.

CASSIANO
22São braburas de Palermo.

DÓRIO
23I vê homem cada dia matar muitos?

CASSIANO
24Inda esse que dizes tem por matar o primeiro.

DÓRIO
25Não queria que começasse em mim.

CASSIANO
26Justiça há na terra.

DÓRIO
27Despois d’eu morto, quer a haja quer não...

CASSIANO
28Não, que a sua pele te guardará a tua.

DÓRIO
29A muitos a não guardou, que sei eu de quais serei?

CASSIANO
30Não cuides somente nesse cachoparrão.

DÓRIO
31Esses, senhor meu, são os que eu arreceo, que não os velhos sesudos, lançadores de contas. Ando assi, como vês, metido neste mantão, ũa mão sobre a outra, que mais é matar-me a mim que a ũa ovelha?

CASSIANO
32E por que há de matar ninguém essa ovelha?

DÓRIO
33Uns pela lã, outros pela pele.

CASSIANO
34Conhece-lo tu bem?

DÓRIO
35Assi o não vira nunca, nem ele a mi.

CASSIANO
36Por te pôr esse medo te ameaçou. Agora, se a ti fosse, andaria eu mais seguro.

DÓRIO
37Amigo, e senhor meu, mais gente mata o descuido que os cuidados. É-me necessário dar mil voltas à cidade de dia e de noite. Digo-te que hei medo aos acontecimentos, quanto mais aos propósitos.

CASSIANO
38Tens-lhe feito algum agravo?

DÓRIO
39Não que eu saiba.

CASSIANO
40Que te diz o coração?

DÓRIO
41Não me sei afirmar, mas pode ser que por ir à casa de Betrando, onde já não vou, no que recebi a perda que Deos sabe.

CASSIANO
42De cujo mandado ias lá?

DÓRIO
43Isso não posso dizer, que são segredos do ofício que tenho.

CASSIANO
44E a esse teu matador, que lhe vai nisso? Que hás, por que cospes?

DÓRIO
45A longe vá mau agouro.

CASSIANO
46Porque lhe chamei teu matador? Cala-te, que não te há por isso de matar.

DÓRIO
47Às vezes se dizem as palavras em tal conjunção...

CASSIANO
48Grandes arreceos trazes a esta tua vida.

DÓRIO
49Tenho necessidade dela pera mim e toda a minha gente.

CASSIANO
50Que lhe vai a esse mancebo nisso?

DÓRIO
51Não sei, ele o saberá.

CASSIANO
52Ora Dório, amigo meu, quanto ao medo não sei que te faça, que não é em mi tirar-to; no mais farei quanto em mi for, não te posso prometer mais.

DÓRIO
53Nem eu pedir-te mais e, porém, isso te peço muitas vezes.

CASSIANO
54E eu muitas to prometo. Descansa, que não será nada.

DÓRIO
55Assi queira Deos.

CASSIANO
56Este doudo em que anda! Cuida que pelas suas ameaças há ele de ficar por casar. Ũa hora do dia que se me furta, logo deixa rasto por onde vai. Que faria se lhe eu tanto não desse em que entender? Houve dó do pecador que se dá por morto e tremiam-lhe os beiços que badalejava. Ora me deixai c’o doudo que, por isso, o hei de perseguir mais, isto ganhará co as suas ameaças. Quero ir ver o que faz.

Fim do primeiro acto.

Acto II

[cena I]

Briobris, soldado; Devorante, truão.

BRIOBRIS
1Assi que me tendes aqui, cativo em Palermo, em tempo de paz e terra de cristãos.

DEVORANTE
2São obras do amor, que já fez a Hércules, conquistador do mundo, fiar e debar.

BRIOBRIS
3E eu, que achando-me na de Ravena, Chirinola, Vicença, Milão, que viesse assi a cair nas mãos dũa moça que te parece?

DEVORANTE
4Assi contam que se toma o alicorne, animal tão bravo.

BRIOBRIS
5E assi aconteceu a Roldão e Reinaldo.

DEVORANTE
6E ontem a el rei Carlos, o da cabeça grande, em Piamonte.

BRIOBRIS
7Não sou acostumado a sofrer desejos.

DEVORANTE
8Acostuma-te por amor de mim, que os amores, de seu natural, são brandos e querem-se por bem.

BRIOBRIS
9Arrenego destas vossas branduras, tenho-me co a guerra, onde se tudo faz por força.

DEVORANTE
10Fala mais sem paixão, que te demudas e fazes-me haver medo.

BRIOBRIS
11Esse mal tenho, sou temeroso.

DEVORANTE
12Oh, que doutra parte és mais gracioso que a mesma graça.

BRIOBRIS
13Porém, quando me vem esta paixão, perdoai. Se me viras no campo...

DEVORANTE
14Aí dão os homens testemunho verdadeiro de quem são.

BRIOBRIS
15Digo que, se me lá viras, andava mais acompanhado que o capitão. Ele morria d’enveja e eu não morria d’abafas. Contei-te já dos toques que lhe dei?

DEVORANTE
16O da Temuda?

BRIOBRIS
17E esse não foi mau, mas primeiro te hei de contar doutros anhos cozidos.

DEVORANTE
18Que aramá lá fui... Cuidei d’atalhar e rodeei, após estes virão os fritos e despois os assados.

BRIOBRIS
19Este capitão tocava no tribo de Judá e, como disse, tinha-me grande enveja, polo qual mastigava e grosava ditos meus que todos traziam na boca; polo qual eu a um propósito, não falando mais com ele que c’os outros, disse um dia «não se há aos súpitos de buscar a escama detrás a orelha»...

DEVORANTE
20Ah, ah, ah!

BRIOBRIS
21Que houveste?

DEVORANTE
22Não é pera ninguém brincar contigo, como dizem do ferro. E os outros?

BRIOBRIS
23Torciam-se todos. Mas quem te disse o da Temuda?

DEVORANTE
24Mil pessoas que o sabem e o contam, entre outras graças tuas. E ele mesmo foi o que mo contou, mas que hei já de fazer?

BRIOBRIS
25Este mesmo capitão trazia amores em parte que me ia nisso algũa cousa. A dama chamava-se Temuda. Mas que havia o diabo de fazer? Viemo-nos ũa só noite a encontrar em um lugar escuso. Ele rebuçou-se, mas eu, ao passar, disse «pera que é andar tão temudo»?

DEVORANTE
26Destruíste-o. Esse homem como se não foi logo lançar num poço?

BRIOBRIS
27E isto em dizendo, fazendo.

DEVORANTE
28São graças naturais que Deos reparte por quem quer bem.

BRIOBRIS
29Não o digo por me gabar, mas quantas vezes me aconteceu não me darem somente vagar com requerimentos de cartas d’amores, uns a um propósito, outros a outro?

DEVORANTE
30Quais havias por mais trabalhosas?

BRIOBRIS
31As primeiras.

DEVORANTE
32Como mestre.

BRIOBRIS
33E, assi dũas como doutras, os começos; que despois ũa palavra leva a outra, por ũa maneira nova que ora descobrimos, que tudo se vai apurando cada vez mais.

DEVORANTE
34Ficar-te-iam os treslados que leremos sobre mesa?

BRIOBRIS
35Nunca as guardo, mas lembra-me um começo, e dizia assi: «nas ondas destas lágrimas, que me levam assi na sua corrente, não tem estes meus olhos outro norte por que se rejam senão os teus».

DEVORANTE
36Ai, ai, que farei? Isso não se sofre.

BRIOBRIS
37Outra...

DEVORANTE
38Dará cento como relógio mal consertado.

BRIOBRIS
39«... Os enganos, senhores da vontade, fazem o que querem de mim. E eu não quero acabar de entender o que entendo e fico assi como em mares encruzilhados, onde a força não esforça nem governa o governalhe.»

DEVORANTE
40Busca quem te aguarde tais pancadas, que eu não posso.

BRIOBRIS
41Pois se quisesses que te esmiuçasse isto pelo meúdo...

DEVORANTE
42Fugirei quanto puder, tão endiabrado és por bem como por mal.

BRIOBRIS
43Assi hão de ser os homens e não como estes frieirões, que não são peixe nem carne. Outra: «no meio dos desejos não acho cabo, no cabo não acho meios, tal aviamento acho pera o meu desaviamento e tal esperança pera o cabo da desesperação».

DEVORANTE
44Finalmente, pera esta tua navegação tudo o mais temos, a moça só nos falece, esta busquemos.

BRIOBRIS
45Não se pode errar que não há outra em Palermo. Como, em Palermo? Como em Palermo? Não há outra no mundo! Aqui achei, aqui perdi, aqui me perdi.

DEVORANTE
46A bom santo te encomendaste, eu te tornarei a achar.

BRIOBRIS
47Os cabelos como fio d’ouro, os olhos verdes que eschamejavam...

DEVORANTE
48Tais que te fartaram os teus?

BRIOBRIS
49Mas tais que mos deixaram famintos pera sempre.

DEVORANTE
50Ora corta-me este pescoço e acaba. Que mais poderá dizer um Mancias?

BRIOBRIS
51Pois ando pera me enforcar, como vês.

DEVORANTE
52Não faças, por amor de mim, que é cousa de que te arrependerás.

BRIOBRIS
53Nunca fiz cousa de que me arrependesse.

DEVORANTE
54E eu cada dia e cada hora. Vamo-nos a jantar, ficar-nos-á tempo pera os negócios.

BRIOBRIS
55Não o hão inda de ter prestes, eu vou a dar pressa e terei cuidado do teu mantimento, tu tem cuidado do meu.

DEVORANTE
56És ũa fonte perenal de eloquência, nunca te acabarão d’esgotar.

BRIOBRIS
57Pois crê-me que não anda aqui um terço de mim.

[cena II]

Devorante, só.

DEVORANTE
1A que tempo me Deos deparou este soldado, que não achava já aqui ũa vez d’água. Neste mundo tudo são começos. Foi-me bem uns dias, agora andava já às moscas. Cada tarde me assentava sobre um penedo a divisar dali o mundo e dando ao papo como francelho manso, olhando pera onde toma ria o voo. Trabalhoso ofício este nosso, que tem sempre o mantimento em mãos alheas. Muito bem me dizem dos galegos, e tem razão, que nunca em al falam, segundo me dizem, senão em comer e beber. Nunca se viu tão roim mundo, o dizer bem das pessoas é cousa fria e ainda desaprazível, o dizer mal é perigoso. Quem quereis que tome um porto tão estreito? E, por inda ser nossa mofina maior, os mancebos, servidores das damas, com quem era tod’o nosso ganho, vieram-se-nos a fazer mais graves que seus pais. Oh, jóias, jóias, quem tivesse bem de comer pera se rir de vós! Como i não houve amores, não houve homens. Com eles se foram as canas, os touros, as justas e, finalmente, a liberalidade. Nós outros ficámos como sinos em castelo despovoado, tangendo às gralhas. E assi já eu era, como digo, na espinha, lembrou-se Deos de mim e acodiu-me com este soldado, apetitoso, convidador, mais vão que a mesma vaidade. Nas armas um Roldão, mais fermoso e mais namorado de si mesmo que Narciso. Mas a mim que se me dá? Vem da guerra e destes seus a que chamam sacos, onde roubam a Deos e aos santos. Vós, porém, vede como falais e não lhes chameis roubos, senão olhai por vós, sacos si, quantas vezes quiserdes. Quem me mete a mim com seus pontos de honra? Venha donde vier, ganhasse-o como quisesse. Sou pola ventura seu confessor? Come, bebe, joga e é de molheres. Aqueles tais são os meus homens. O mal ganhado, mal se há de despender. Vivamos todos. É de louvaminhas? Farto-o delas. Quer contar suas mentiras? Aparelho os ouvidos. Encho-o de vaidade e ele a mi, que não sou tão espiritual, enche-me disso que se vende na praça. Seja nas boas horas. Trato é em que ele põe dinheiro e eu palavras, dure o que durar. É enfadonho? Não há logo de ser tudo como homem quer, e de que me podem melhor servir os meus ouvidos e a minha língua que de me ganharem de comer? A moça não vos há de ser outra senão esta Lucrécia, pera quem agora toda a cidade se embica. Guarda de escandalizar ninguém por ninguém, que as obrigações esquecem logo, as mágoas nunca. Lá se avenham, que eu não me mantenho d’«olhos verdes, quando me veredes». A mor ciência que no mundo há assi é saber conversar c’os homens. Bom rosto, bom barrete, boas palavras não custam nada e valem muito. E assi quem sabe de tudo isto faz bom barato. Os parvos dar-vos-ão antes dinheiro, e eu antes o queria. Isto não se aprende em Paris. Vou-me a comer.

[cena III]

Cassiano, só.

CASSIANO
1Meu criado como me sentiu em casa dissimulou e partiu. Verdadeiramente o mais certo preso é quem guarda o preso. Achei esta carta, parece-me que lhe caiu co a pressa. Letra de molher é, deve ser da moça. Quero ver o que diz. «Não sei por que folgas fazer tanto mal a ti e a mim». Bem me pudera esta moça também aqui meter no começo desta carta. «Que te perdes e não olhas com quanta perda minha, querendo-me obrigar co isso». Milagres são que as fermosas fazem, a que se não pode dar razão. «Em pago de me pesar do teu mal, queres ser causa do meu». Mais pesa a seu aio e mais pesará a seu pai, quando o souber. «Olha que ainda se pode remediar tudo». Não a bolsa que trouvemos, que arqueja e tira quanto pode polo fôlego. «Disseram-me de tua parte que não querias mais que este meu desengano, aí o tens». Que fará agora Amente senão ir-se deitar naquele mar, assi desenganado? Quanto melhor remédio fora não lhe dar nunca olhos nem ouvidos. Mas isto, por boas filhas que elas sejam, não lho mandeis, que lhe manda o seu natural outra cousa. O artifício com que se já tudo diz e faz, e digo em maiores casos. Mas é ele o que lá vem? Esse é. Bem sabia eu que esta carta mo havia de tornar à mão. Quero-lha ir pôr onde a ache, não acabe de sair de seu siso, se isto se pode dizer por quem já não tem nenhum.

[cena IV]

Amente, só.

AMENTE
1Não passa assi o pesar, quão pouco há que saí daquela casa com tanto prazer, vendo-me livre de Cassiano. Eis-me agora torno por mi mesmo à prisão de que fugia, c’o prazer de todo perdido e a carta pouco menos, e mais a que tempo, quando me já não ficava outro bem, outro descanso, outra nenhũa consolação, salvo aquelas poucas regras. Cuidei que a levava no seo sobre o coração, donde a nunca tirava; ele foi o que a achou menos, queria-me saltar fora do peito, fez-me tornar em sua busca. Mas é aquele Calídio? Quero-o esperar, não sei que novas trará. Co a cabeça baixa vem, não é aquele o seu costume, acabem já de me matar os amigos e os imigos.

[cena V]

Calídio; Amente.

CALÍDIO
1Quem concertará tantos desconcertos? Digo-vos que cuido e cuido, e não lhes posso achar saída.

AMENTE
2O que aí não há como se pode achar?

CALÍDIO
3Estes namorados não vivem senão d’esperanças.

AMENTE
4Que assi são elas mui saborosas.

CALÍDIO
5Olhai que peças: doutor honrado e rico, os dedos cheos de anéis...

AMENTE
6Pera mal vai este conto. Calídio, Calídio!

CALÍDIO
7E o negócio está em Betrando, tão sesudo e tão pesado.

AMENTE
8Calídio, ouves-me? Vem cá, soubeste mais algũa nova?

CALÍDIO
9Falei com Alda.

AMENTE
10Com Alda? E que te disse?

CALÍDIO
11Que o doutor apertava muito o negócio.

AMENTE
12E de Lucrécia?

CALÍDIO
13Que não trazia rosto de contente.

AMENTE
14O que farei a estes rostos, que tão asinha se mudam? Que disse Betrando?

CALÍDIO
15Que cala e passea.

AMENTE
16E a molher?

CALÍDIO
17A ambas as mãos polo casamento.

AMENTE
18Não é sua filha.

CALÍDIO
19Nem é ela a que há de casar e dá tantas razões tão sesudas. Já sabes que cousas são molheres.

AMENTE
20E tu já sabes que se não faz em casa senão o que elas mandam.

CALÍDIO
21Mal pecado.

AMENTE
22Disse-te mais algũa cousa?

CALÍDIO
23Que ia em busca de Ambrósia, a velha que criou Lucrécia.

AMENTE
24Pera quê? Triste de mim.

CALÍDIO
25Preguntei-lho, mas deu aos ombros.

AMENTE
26Que sospeitava?

CALÍDIO
27Mal.

AMENTE
28E mal será, que assi acontece as mais das vezes.

CALÍDIO
29Que pressa é esta tua, e mais pera casa donde sempre foges?

AMENTE
30Pera que queres saber mais das minhas desaventuras? Furtei-me de casa com tamanho açodamento que perdi aquela minha carta que sabes. Eu i adiante achei-a menos, foi-me como achar menos o coração. Torno em sua busca, deixa-me ir só.

[cena VI]

Devorante; Calídio.

DEVORANTE
1Então, deixai vós frades bradar do púlpito e bracejar que não há i dias aziagos.

CALÍDIO
2Mau rosto traz, será com fome?

DEVORANTE
3Ditosos homens que se lhes crê quanto dizem.

CALÍDIO
4Ando magoado de lhe já ninguém crer cousa nenhũa.

DEVORANTE
5Que horas estas pera andar inda em jejum, inda que fora dia de jejum...

CALÍDIO
6Bem me parecia que dali vinha a tosse ao gato.

DEVORANTE
7Todos fartos e cheos, então querem gracejar... Que me anda o diabo atentando pera fazer ũa doudice. Então, vereis como logo todos me dão o corro, como dizem do touro.

CALÍDIO
8Pois quanto à míngua da boa cornadura não fique.

DEVORANTE
9Cuidei de achar já o meu soldado à mesa e ia lambendo os beiços d’antemão, senão quando eu vejo que me estava aguardando à sua porta um taverneiro, a que sou em dívida dalguns maravedis. Olhei mais e vejo-lhe um beliguinaz ao lado. Ia-lhe a cair nas mãos. Quanto val um homem acordado, descobri-os dũa légua, desviei-me então por outra rua. Eu lá, alevantava-se um arroído como barborinho em tardes de Verão: lanças, pedras, espadas, não sei como saí vivo.

CALÍDIO
10Vaso mau nunca quebra!

DEVORANTE
11Um jantar que te Deos ministra, quantas cousas te estorvam!

CALÍDIO
12Pois ainda o meu quinhão te está cá guardado.

DEVORANTE
13De que te aproveita ser sesudo antre tantos doudos?

CALÍDIO
14Judeu houveras de dizer que não sesudo.Oh, meu grandíssimo amigo Devorante, quanto ora folgo contigo!

DEVORANTE
15Este me direis vós a mim que não é dia aziago?

CALÍDIO
16Que é isso que assi vens de má graça? Não era esse o teu costume.

DEVORANTE
17Deixa-me passar que não hei contigo nada.

CALÍDIO
18Que te fiz? Algũa agulha ferrugenta se meteu entre nós?

DEVORANTE
19Requeiro-te, da parte de Deos, que me deixes ir em paz. Não sejas aqui hoje o meu pecado.

CALÍDIO
20Espera que logo te aviarei.

DEVORANTE
21Que me queres?

CALÍDIO
22Dous toques de trovas d’improviso que tens nisto gracia gratis data.

DEVORANTE
23Não ia eu ora cuidando em al.

CALÍDIO
24Tanto mais d’improviso. Começo:
-->
Se és quebrado ou se és inteiro
que assi vás aos foles dando
dás à cabeça escornando
se és touro ou velho sindeiro.

DEVORANTE
25Eras pera alfeloeiro
-->
que vai cascavéis tocando
bem sei que foste apalpando
mas não és bom chocarreiro.

CALÍDIO
26Ora o fizeste como quem és e mais pelos consoantes, outr’hora te convidarei. Já podes passar.

[cena VII]

Briobris; Devorante.

BRIOBRIS
1Passam as horas do comer, o jantar dana-se, grão força de negócio detém a Devorante.

DEVORANTE
2Quando me haverei eu dentro naquela casa, que me hoje tantas cousas defendem? Mas vejo o meu soldado.

BRIOBRIS
3Que detença foi esta? Houve quem te fizesse algum desprazer?

DEVORANTE
4Já me conhecem por teu, digo-te que não querem provar como pões as mãos e o ferro.

BRIOBRIS
5E o fogo inda deveras de dizer.

DEVORANTE
6E o fogo também.

BRIOBRIS
7Que não há muito que eu chamusquei uns poucos de vilãos por um desprazer que me fizeram. Nem saberás como eu jogueto d’arcabuz.

DEVORANTE
8Saibam-no teus imigos.

BRIOBRIS
9E dous soldados desta vossa guarda de Palermo.

DEVORANTE
10Si, de como os desbarataste.

BRIOBRIS
11Com ũa só palavra queres tu passar por tamanho feito?

DEVORANTE
12Isso seria se as muitas abastassem.

BRIOBRIS
13Bem disseste, como és avisado.

DEVORANTE
14Vou aprendendo de ti.

BRIOBRIS
15E do usso tamanho e tão medonho que me dizes, pois o viste?

DEVORANTE
16Sabes que então disseram todos?

BRIOBRIS
17Quê, por tua vida?

DEVORANTE
18Que se apalpara o usso com o leão.

BRIOBRIS
19Ah, ah, ah, ora nunca vi melhor dito de povo!

DEVORANTE
20Assi diz o povo que nunca viu milhor feito de um homem só.

BRIOBRIS
21Nem de dez.

DEVORANTE
22Nem de vinte! Oh, senhor Deos, que não fará dizer a fome! Não sei pera que foram mais polés nem mais dados na testa. Aquele é um usso manso, que anda por essas ruas brincando.

BRIOBRIS
23Benzer-te-ias, quando me visses saltar a través tão ligeiro.

DEVORANTE
24E tão airoso. Mas tu não me preguntas por nada?

BRIOBRIS
25Oh, meu amigo grande, como, quem descansa sobre ti?

DEVORANTE
26Não é pera as ruas cousa de tal segredo e preço. Entremos em casa, lá saberás maravilhas.

BRIOBRIS
27E eu também contarei das minhas.

DEVORANTE
28O demo diz a este que hão de ser mentiras por mentiras.


Acto III

[cena I]

Petrónio, doutor:

PETRÓNIO
1Se nós outros passamos tão asinha, que podemos fazer que dure muito? Tempus edax rerum tu que o invidiosa vetustas. Omnia consumitis. Aquela tão antiga e tão nobre cidade de Pisa em que naci é como posta por terra, pois perdeu a sua liberdade, e os seus cidadães espalhados pelo mundo, antes que se verem servir aos florentis seus imigos. Fizemos todos o que pudemos e o que devíamos. Agora que temos de Pisa senão pardieiros e campos ubi Troia fuit, como diz aquele divino poeta? A mim coube-me em sorte este Palermo onde me magoam estas lembranças muitos anos há, mas que farei? Sempre assi hei de andar gemendo? Ora quem viver verá também a Florença a sua pancada, que quanto vai mais crecendo tanto será mais cobiçada. Não se começaram em nós nem acabarão em nós estes jogos da fortuna. Com isto me vou consolando, os homens da minha calidade per si se hão de curar e, se não, embalde embranqueci sobre os livros, Patria est ubicumque bene est. O bom jogador emenda o lanço mau quanto pode c’o saber, por que não farei o mesmo? Fez-me o mau lanço estrangeiro a estes, eu me lhe farei natural co as boas obras, co a mansidão e c’o saber, e mais se acabamos este casamento, como cuido. Cada dia espero por meu irmão, dizem-me que é arribada ũa nau de Poente, assentar-nos-emos aqui ambos. Certo os homens não deviam de falar nas cousas do mundo senão despois de muita infinda experiência, que, segundo o filósofo, est mater rerum. Quantas contas tenho nesta vida feitas que me agora cumpre de riscar. O casamento, a que tantas vezes chamei cativeiro acostumado, torno agora a ver que é cousa santíssima e necessária. Os filhos, de que tantas vezes ri c’os mesmos pais de como não sabem falar salvo nas suas graças, dei de novo volta e acho que são todo o gosto da vida e da fazenda, e bem souberam as leis o que diziam em chamarem seus próprios herdeiros, ponto alto e de apicibus iuris. Quanto a casar por amores, e mais nesta idade, digo: nela me é mais necessário algum contentamento, quando me os outros todos vão desemparando. Que diferenças de costumes! Aqui me deram dote honrado com Lucrécia e logo defronte, em África, compram as molheres quem as quer, parece que não é má razão. Mas vejo eu a minha criada? Si, vejo, novas teremos.

[cena II]

Sargenta; Petrónio.

SARGENTA
1Duas sortes de homens há no mundo que se possam servir: ou muito parvos ou muito namorados. E inda os namorados tem grande ventagem. Quanto tempo há que sirvo meu amo sem medrar um vestido nem ũa boa palavra, que custa menos.

PETRÓNIO
2Que dar de língua, grão caso este das molheres.

SARGENTA
3Vem o velho e namora-se, logo fui vestida e privada.

PETRÓNIO
4Não a posso bem entender.

SARGENTA
5Nunca vistes tão boa gente, nem que assi se vos deixe enganar tão levemente.

PETRÓNIO
6Enganar, ou como? Não hei aquela por boa palavra.

SARGENTA
7E mais Dório fora já do trato.

PETRÓNIO
8Nem tratos tão-pouco.

SARGENTA
9A verdade é apanhar.

PETRÓNIO
10Pior que pior.

SARGENTA
11Muitas mercês à fermosura de Lucrécia.

PETRÓNIO
12Todo estremeci, ouvindo aquele nome. De lá deve de vir. Assi com ele na boca a quero chamar: Sargenta, Sargenta!

SARGENTA
13Ui, aquele é nosso amo. Se me ouviria... Mas ele não ouve já muito bem.

PETRÓNIO
14Vem cá Sargenta, chega-te mais a mim que te quero preguntar donde vens.

SARGENTA
15E logo te o coração disse donde.

PETRÓNIO
16Que maravilha, se ele sempre por lá anda.

SARGENTA
17E a mim me parece que o vi.

PETRÓNIO
18Folgo com isso muito. E pois que anda a minha alma fazendo por lá?

SARGENTA
19Espalhando trovoadas como sino de virtudes.

PETRÓNIO
20E parece-te que fica o céu despejado de todo?

SARGENTA
21Limpo como um espelho.

PETRÓNIO
22Nem lá contra o Poente, não enxergas nada?

SARGENTA
23Ũa pouca de névoa e vento.

PETRÓNIO
24Daí se levantam às vezes grandes trovoadas, mas que entendeste dela?

SARGENTA
25Muitos sisos e muitas virtudes.

PETRÓNIO
26De quem, Sargenta?

SARGENTA
27De Lucrécia.

PETRÓNIO
28Assi faze, nomea-ma muitas vezes.

SARGENTA
29Nunca se tal graça viu, nem tal siso.

PETRÓNIO
30Tal assento nem tal fermosura.

SARGENTA
31O que tod’o mundo vê, pera que é dizer-te mais?

PETRÓNIO
32Ora vem cá Sargenta, que te quero ago ra preguntar por um ponto, cousa em que te nunca falei. Ouviste algũa hora falar num mancebo espanhol que, segundo dizem, anda aqui perdido d’amores por ela?

SARGENTA
33Qual? Um capa em colo que à primeira parecia algũa cousa? Já agora não terá que despender e parece que caiu da forca.

PETRÓNIO
34Ah, ah, ah, como o pintaste tam bem!

SARGENTA
35Cousa é isso pera te somente lembrar?

PETRÓNIO
36A mim não, mas a Lucrécia.

SARGENTA
37Que riso, não é isso senão pera a nomeares muitas vezes.

PETRÓNIO
38Ao homem sesudo tudo há de lembrar, e mais isto das idades releva muito.

SARGENTA
39E bem, que disposição é assi a tua?

PETRÓNIO
40Da disposição, Deos seja louvado, não hei enveja a ninguém. A idade, pola ventura, parecerá mais do que é, c’os nojos e c’os trabalhos com que se as cãs adiantam.

SARGENTA
41Quem não sabe que as cãs não fazem velhice?

PETRÓNIO
42E mais, segundo o filósofo, no casamento, o homem há de ter boa aventagem d’anos à molher.

SARGENTA
43Muito releva o que quer o filósofo pera o que elas querem.

PETRÓNIO
44Ao homem é necessário mais siso e mais experiência como quem há de governar. Mas aqui temos Devorante. Acolhe-te Sargenta, que este sempre anda em espreita pera levar novas duns pera os outros.

SARGENTA
45Que dita tamanha vir quem nos espartisse. Não sei por que dizem tantos males da mentira, digam o que quiserem. Como, e bom siso fora contar eu a nosso amo mui verdadeiramente donde vinha e tudo o que fizera? Oh, que prazer pera ele e pera mi que proveito. E assi, co estoutra mezinha, ele fica doudo de prazer e eu vou em paz.

[cena III]

Devorante; Petrónio.

DEVORANTE
1Não haja i mais tal parvoíce, nem se enforque ninguém por paixão que lhe venha.

PETRÓNIO
2De boa têmpera parece que vem.

DEVORANTE
3Como eu hoje andava jóia, com todos queria haver brigas. Bem dizem que fome e frio... Mas o frio é vento. Esperarei quanto frio há em Alemanha com esta capa safada, não me fale ninguém em fome.

PETRÓNIO
4Fome ou quê? Não é pera o esperar, que se inviaria aos dentes.

DEVORANTE
5Enfim, quis-me Deos dar sofrimento. Quando cheguei, achei tudo prestes. O soldado bebera já à minha revelia, então começou a contar das suas façanhas: matou, venceu, cativou. Eu também, entretanto, por não estar ocioso, dei saco à mesa.

PETRÓNIO
6Bem está, farto deve de vir. Saibamos novas. Onde se vai o grande meu amigo Devorante?

DEVORANTE
7Onde mais cumprir aos seus senhores e amigos.

PETRÓNIO
8Que novas correm?

DEVORANTE
9Muitas e pouco certas, como em Palermo acontece cada dia, salvante se é verdade ũas que me deram pouco há.

PETRÓNIO
10Que tais, Devorante?

DEVORANTE
11Que és já dos nossos.

PETRÓNIO
12E isso hás por cousa nova?

DEVORANTE
13Si, que dantes tínhamos-te como emprestado.

PETRÓNIO
14E agora como?

DEVORANTE
15Por mais que nosso.

PETRÓNIO
16Assi quis a fortuna.

DEVORANTE
17E o amor também.

PETRÓNIO
18Ah, já te entendo, e nisso haverá mil sentenças.

DEVORANTE
19Antes a todos ouço falar por ũa boca, deixemos alguns dedos queimados fora.

PETRÓNIO
20Ah, ah, ah, e esses farão a mim inda mais velho e a ela inda mais moça!

DEVORANTE
21Como que não víssemos por aqui moças sesudas e velhas doudas que farte. E, se muito te cumprirem, de minha casa podes ser servido.

PETRÓNIO
22Eu to agradeço muito, mas, por agora, na praça estão às moscas.

DEVORANTE
23Tomai lá, assi fazem, pagam ũa graça com outra.

PETRÓNIO
24Que dizes?

DEVORANTE
25Que tudo se acha em ti: sisos, graças e galantarias.

PETRÓNIO
26De ti me vem, que me alevantas os espíritos. Mas, falando de siso, grandes privilégios tem as molheres dos doutores, se os elas entendessem.

DEVORANTE
27Que negra consolação, principalmente pera as belas mal maridadas. E assi os outros homens, em vosso respeito, certo que se podem chamar corpos sem almas.

PETRÓNIO
28Donde singularmente vão inferindo os nossos doutores que se não pode doutorar um homem morto.

DEVORANTE
29Isso é certo?

PETRÓNIO
30Certíssimo.

DEVORANTE
31Que mais queres? Eis o que se diz de cabra morta não diz mé.

PETRÓNIO
32Espantas-te? Pois nota mais que cabendo nas molheres tão altos títulos como é condessas, duquesas, rainhas, emperatrizes, etc., mas doutoras isso não, por mais letras que tenham.

DEVORANTE
33E essas não tem espírito?

PETRÓNIO
34Subtiliter Devorante, mas, respondendo breviter, declaro-me que o do spírito que disse procede negative, non afirmative.

DEVORANTE
35Todavia, a molher do cavaleiro tampouco se chama cavaleira, nem escudeira a do escudeiro.

PETRÓNIO
36Porque não são amazonas, que tragam armas e escudo. E, por isso, logo das nossas disse «por mais letras que saibam». Que te parece?

DEVORANTE
37Não sei, lá vos entendeis, grande vida levas.

PETRÓNIO
38Assi podemos dizer co aquele nosso grande Justiniano, noctes ducimus insomnes, etc.

DEVORANTE
39Pois desse vosso Justiniano não sei quê eu já ouvi dizer.

PETRÓNIO
40E quê?

DEVORANTE
41Que não fora ele dos mais católicos.

PETRÓNIO
42Oh, línguas de serpentes, escrevendo ele tão altamente De Summa Trinitate e Fide Catholica!

DEVORANTE
43Tão enfadonho é este e tão vão como o meu soldado, e não convida tam bém. Que faço aqui? Mandas de mi algũa cousa mais?

PETRÓNIO
44Não al senão que sou teu, eu e quanto tenho.

DEVORANTE
45Eis-me rico e bem-aventurado. Assi viva ele e assi medre. E despois sabeis que vos respondem por suas leis? Que palavras de cortesia não obrigam. Nunca tais direitos vistes. Acham que ũa só palavra obriga e muitas não. Não hajais vós medo que co estes tais eu faça muita farinha.

[cena IV]

Petrónio, doutor, só.

PETRÓNIO
1Dês que homem nasce ‘té que morre não trata cousa de mor peso que a do seu casamento, que cada dia rematamos tão levemente. Grande feito, que se te vendem um rocim manco ou ũa mula maliciosa, logo i são mil leis a te ajudar e tem procuradores tanto que dizer e alegar; e na tua molher, por quem deixamos os pais e as mães, ali nos desempara tudo e só a morte pode ser boa, pelo qual estive tanto tempo solteiro. Vim aqui com sós as letras, de que me a fortuna não pode roubar. Co elas me remediei, que a estes nossos direitos não se lhes pode negar o senhorio de todas as outras ciências. Os teólogos jazem por todos esses mosteiros mendicantes, como se eles chamam. Filósofos já passaram mal avindos uns c’os outros, com suas barbas e gravidade. Poetas tudo põem em flores, polo fruito não espereis. Os oradores, nós os tiramos das suas vezes. Os astrólogos sempre tratam do porvir, de que eles nem ninguém sabe pouco nem muito. Físicos ganham bem de comer, porém é c’o ourinol na mão. Artistas debatem sempre sobre a lã da porca e antre todos estes não há um homem de negócio. Somente o jurisconsulto é que pode tratar e rematar dúvidas de substância. Todavia, frades entremeter-se queriam, mas não tem asas com que voem, que a vontade não lhes falece. Só o jurista pode andar co peito alto e satisfeito do seu saber, quer seja pera concertar as cousas desta vida quer da outra. Isto é o que te releva. E crê-me que te não busca ninguém senão o que te há mister.

[cena V]

Guido e Petrónio, irmãos.

GUIDO
1Ainda me não parece que ponho os pés em cousa firme.

PETRÓNIO
2Um estrangeiro vejo, quero ver se traz novas.

GUIDO
3Este mar tamanho, tão bravo, tão mudável, tão espantoso, quem ousou primeiramente de acometer?

PETRÓNIO
4Não sei se me engana o desejo, mas este me parece Guido, meu irmão, por qu’esperava.

GUIDO
5E mais neste tempo em que homem que no mar entra o menos que teme é o mesmo mar.

PETRÓNIO
6Sem dúvida, este me parece.

GUIDO
7Quem sempre anda coberto de nossos imigos e da fé.

PETRÓNIO
8Sem dúvida algũa este é. Oh, meu irmão Guido, boa seja a tua vinda!

GUIDO
9Meu irmão e pai, és tu este?

PETRÓNIO
10Pois tu és vindo a salvamento, este sou e tudo é salvo.

GUIDO
11Se inda o bem soubesses, segundo se os tempos tornaram aos navegantes. Ah, pecador de mim, que bem deveram de abastar os seus males próprios do mar.

PETRÓNIO
12Qui ascendunt mare, in navibus, viderunt opera eius e, por isso, as nossas leis seis meses do ano defendem a navegação.

GUIDO
13Tod’os doze a deveram de defender.

PETRÓNIO
14Inda agora vens. Como estiveres em terra dous dias, tornarás outra vez a bradar polo mar.

GUIDO
15Bem sei que assi somos feitos.

PETRÓNIO
16E, todavia, eu bem folgo de vires assi aborrescido destes caminhos, se não é com grande perda da fazenda.

GUIDO
17Tudo passou tormenta e, porém, somos em Palermo e acho-te vivo e são.

PETRÓNIO
18E daquela nossa minina descobriste nova algũa?

GUIDO
19Dir-t’-ei o que pude saber. Em Serdenha achei um nosso paisano e conhecente. Este me contou que a vira despois em Florença e despois em Roma.

PETRÓNIO
20Em Roma? Ora a dá por perdida de todo.

GUIDO
21Não sabes que as duas partes de Florença são passadas com este seu papa a Roma?

PETRÓNIO
22Não me fales naqueles clérigos tão ricos e tão ociosos, que eu não cuido que Deos, com tod’a sua paciência, os possa sofrer muito tempo.

GUIDO
23Inda então pola idade era cousa impossível.

PETRÓNIO
24Tanto mais feito romão.

GUIDO
25Contava mais que dera em Roma a peste em casa daquele mercador florentino, onde a menina estava, e que um dom abade, seu irmão dele, homem religioso e bom, a trouxera pera esta terra, onde ele tinha renda; agora com estes sinais não se pode errar.

PETRÓNIO
26Daqui por diante, busque-a quem quiser.

GUIDO
27Porquê?

PETRÓNIO
28Porque as molheres não hão de andar muito caminho, que são ũa perigosa mercaderia, quebram como vidro.

GUIDO
29Em tempo de tantos trabalhos e tamanhas mudanças que menos se podia acontecer?

PETRÓNIO
30Eu to direi, perder-se de todo, que nunca dela mais soubéramos.

GUIDO
31Tu mo encomendaste.

PETRÓNIO
32Desejava de ter novas que escrever a seu pai, e essas quem lhas escreverá?

GUIDO
33Iremos por estes sinais mais avante, pola ventura não será o mal tanto. Tenho necessidade de repousar que inda me a cabeça dá voltas.

PETRÓNIO
34Vamos, e lá te darei muitas outras contas.


Acto IV

[cena I]

Cassiano, só.

CASSIANO
1De me não poder mais ter as lágrimas, me saio cá pera fora. Não sei que faça a este moço. Entrou desatinadamente em casa em busca de sua carta, eu dissimulei, fazendo que entendia em outras cousas. Ele, como a achou, tornou em sua cor e acordo, falou, riu, finalmente, jantámos em paz. Mas despois que passeou e cuidou, recolheu-se à câmara. Ali fez suas lamentações, eu que o espreitava e que o criei não no pude sofrer mais. Venho fugindo à minha fraqueza, chore à sua vontade e desabafará, que a sangria destes males tais são lágrimas. Despois que chorar muito tornará a rir. Mas que doudo é o que vem correndo? Não lhe errava eu ora muito o nome, que este é Calídio. Que cabeça!

[cena II]

Calídio; Cassiano.

CALÍDIO
1Aparta, aparta, que provo estes meus pés pera quanto são. Quero ver o que tenho neles, nas pressas se conhecem os amigos. Guarda de diante, guarda, que vai sobre a posta.

CASSIANO
2Isto passa já de doudice e deve ser vinho.

CALÍDIO
3Não se me ponha ninguém diante, se não quer saber com’o encontro.

CASSIANO
4Ora nunca vi bêbado tão desenvolto dos pés, quero-o chamar. Calídio, Calídio!

CALÍDIO
5Aquele é Cassiano, assi somos neste mundo, e eu buscava Amente.

CASSIANO
6Oh, doudo, que te mingua pera tirares pedras à gente?

CALÍDIO
7E disso que me mingua me pesa.

CASSIANO
8Porquê?

CALÍDIO
9Não sabes tu aquele dito tão verdadeiro que o homem ou havia de ser rei ou doudo?

CASSIANO
10Pois quant’a de doudo eu te asseguro. Mas por que corrias assi?

CALÍDIO
11Dos doudos todos se rim e não se espanta ninguém.

CASSIANO
12Mal se podem rir os a que eles fazem mal.

CALÍDIO
13E eu, que mal te fiz?

CASSIANO
14Quantos passámos em Palermo, que são muitos.

CALÍDIO
15E assi o dizes a tod’o mundo.

CASSIANO
16E ainda essa má vingança não queres que tome?

CALÍDIO
17E assi o hás de dizer a nosso amo.

CASSIANO
18Quando será isso?

CALÍDIO
19Cedo.

CASSIANO
20Onde?

CALÍDIO
21Nesse mesmo Palermo.

CASSIANO
22Doudo, que nunca homem sabe quando fala de verdade.

CALÍDIO
23Agora.

CASSIANO
24Quem to disse?

CALÍDIO
25Estes meus olhos belos.

CASSIANO
26Em que lugar?

CALÍDIO
27Na Ribeira.

CASSIANO
28Por que o não acompanhavas?

CALÍDIO
29Vim diante a dar recado.

CASSIANO
30Torna após mim.

CALÍDIO
31Vai por agora só. Folguei de me despejar deste por buscar Amente, pera lhe dar estas boas novas, com que haja seu conselho, que eu havido tenho o meu d’apanhar os pés. Andava o triste pera perder o siso c’o negro casamento, agora que fará com tal ajuda? Ai, mimosos, criados em vossos apetites, que, enfim, vem a ser o que não quereis crer, nem ouvir, então esmorecer. Mas pai e filho são. A mim só cumpre buscar meu remédio e mais com tal valedor como tenho no aio. Mas eu esta conta faço, que tão pouco tenho aqui como em Valença, bons pés tenho e arrezoada língua; do mais, como dizem, sobre a terra anda o haver. Quem sai de nossa casa?

[Cena III]

Amente; Calídio.

AMENTE
1Cassiano não aparece, nem Calídio. Onde fugirei dum e onde acharei o outro?

CALÍDIO
2No pior não falas que é teu pai.

AMENTE
3Hoje co a pressa da carta não tivemos tempo.

CALÍDIO
4Cada vez se ele vai encurtando mais. Amente!

AMENTE
5Quem me chama? Oh, meu Calídio, que a ti buscava eu.

CALÍDIO
6E eu a ti.

AMENTE
7Desviemo-nos, e vamos buscar algum lugar em que falemos à nossa vontade.

CALÍDIO
8Oh, Amente, à nossa vontade não podemos nós falar.

AMENTE
9Porquê Calídio?

CALÍDIO
10Despois que me deixaste, dei comigo na Ribeira, que me temia muito do mar e velava-me dele. Enfim, tantas vezes fui lá até que arrecadei.

AMENTE
11E quê, Calídio?

CALÍDIO
12Achei novas de teu pai.

AMENTE
13Triste de mim, é ele morto, que assi te demudaste?

CALÍDIO
14Tu e eu, Amente, somos os mortos, que ele vivo é e são.

AMENTE
15Isso é bem.

CALÍDIO
16E dentro em Palermo.

AMENTE
17Isso é mal.

CALÍDIO
18Não vês quão perto estava o mal do bem?

AMENTE
19Contas-me tu verdade, Calídio?

CALÍDIO
20Muito contra minha vontade.

AMENTE
21Que te parece desta sua vinda a tal tempo?

CALÍDIO
22A meu parecer o aio o mandou chamar e, assi, quando lhe agora dei a nova, não duvidou dela muito.

AMENTE
23Falaste-lhe?

CALÍDIO
24Falar, dizes? Valeu-me que o vi primeiro que ele a mi. Doutra maneira, como dizem do lobo, tolhera-me a fala de todo.

AMENTE
25Que conselho, amigo meu Calídio?

CALÍDIO
26Amente, o espaço é pouco, as palavras não podem ser muitas. Teu pai bem o conheces, há de trazer suas contas repartidas em duas partes não iguais: a ti reprender-te e a mim castigar-me. Bem sabes que se criou em galés; aquele amor de pai que o cá traz te há de valer. Não te encomendes a outro santo, a mi é necessário encomendar-me aos meus pés. Oulá, quem é aquele? Tod’o homem me agora paresce valenciano.

AMENTE
27Assi me deixarias em tal desemparo?

CALÍDIO
28Tu mesmo me devias de aconselhar que fugisse, se te lembrasse o perigo em que me vês, pois é tanto mor que o teu.

AMENTE
29Lembra, mas não vês em que tempo me este mal toma?

CALÍDIO
30Se visse em que te pudesse ser bom, tudo o mais me esqueceria.

[Cena IV]

Devorante; Amente; Calídio.

DEVORANTE
1Em doutor me falais em tempo de paz? Bem me parescia a mim que havia o negócio de dar a través.

AMENTE
2Aquele é Devorante, que já também foi dos meus em mais bonança. Todos me vos is um e um.

DEVORANTE
3Quando ele aqui veo ter de Pisa, não trazia aquela barriga, porque naquela sua terra acostumava-se então o ferro e aqui agora costuma-se mais a pena.

AMENTE
4Que diz?

CALÍDIO
5Mil sentidos que tivesse, todos traria ocupados com teu pai.

DEVORANTE
6Enfim, que houve de levar a moça, agora enforcar servidores.

AMENTE
7Entendeste?

DEVORANTE
8Mancebos barbipoentes, bem despostos... Vem um doutor velho, com seus hábitos longos, e derriba-lhes a lebre diante.

AMENTE
9Parece que fala no doutor.

DEVORANTE
10E o meu soldado mui posto em sair domingo com ũa invenção de laberintos por Lucrécia.

AMENTE
11Oh, meu coração!

DEVORANTE
12Esta noite teremos festas e cea.

AMENTE
13Que te parece?

CALÍDIO
14Calaceiro, que nunca sonha em al salvo em convites.

DEVORANTE
15Fortemente atalharam a minha negociação, que eu andava por alongar e encurtaram-ma. Agora, quero buscar o dos laberintos e tirá-lo-ei daquele trabalho em que anda.

[Cena V]

Amente; Calídio.

AMENTE
1Tu vês a que termo eu sou chegado, segundo as novas que tu dũa parte, e Devorante doutra, me dais? Cuidei que tinha de ti algũa necessidade mas, pois as cousas assi vão, ‘té a vida me sobeja, procura pola tua.

CALÍDIO
2Vós outros, mimosos, logo quereis morrer.

AMENTE
3Não se ajuntaram embalde tantos males a um tempo.

CALÍDIO
4Tão pouca confiança tens em Lucrécia?

AMENTE
5Ah, Calídio!

CALÍDIO
6Que «ah, Calídio!»?

AMENTE
7Que esperança tão fraca.

CALÍDIO
8Queres dizer como de foão?

AMENTE
9E de foã e de foã.

CALÍDIO
10Naquilo tem razão, e mais nesta terra, em que o poerão mui asinha em cantar seciliano, como dizem. Vem cá Amente, serás homem pera me ajudares a um feito?

AMENTE
11Em tal desesperação, que posso eu arrecear?

CALÍDIO
12Ora bem vês que esta vinda de teu pai embaraça tudo, pelo qual aqui cumpre de acudir, se queres remédio.

AMENTE
13A maneira é a que não vejo.

CALÍDIO
14Dir-to-ei: façamos que não conhecemos teu pai, por mais valenciano que fale.

AMENTE
15E em tamanha agonia podes estar gracejando?

CALÍDIO
16Não gracejo, mas antes te dou um cavalo na batalha, se tu fores pera o tomar.

AMENTE
17E a meu aio, que lhe faremos?

CALÍDIO
18Como quê? Diremos que esse é o que faz todas estas calabreadas e que traz este velho falso aqui com nome de teu pai, e assi não recolheremos em casa um nem outro.

AMENTE
19Nisso bem vejo eu o erro, o remédio não o vejo.

CALÍDIO
20Eu to direi: podemos acudir ao negócio do casamento, como dantes, e, se cumprir, diremos duas palavras ao doutor, que não sejam de libelos dar nem lides contestar.

AMENTE
21Chamar-se-ão à justiça? Que fraco remédio uns e os outros.

CALÍDIO
22E, quanto ao doutor, deixá-lo revolver seus Bártolos.

AMENTE
23Assi que também queres que erre a Lucrécia?

CALÍDIO
24Por amor da mesma Lucrécia.

AMENTE
25Al quisera eu fazer por ela.

CALÍDIO
26Não podes por agora. És moço... Ensina-te a acudir sempre ao mor perigo.

AMENTE
27Não tenho rosto contra a verdade.

CALÍDIO
28Acharás logo muitos que o tenham e ficar-te-ão com grande aventagem in agibilibus, como dizem estes práticos.

AMENTE
29Logo a mentira se extrema da verdade.

CALÍDIO
30Antes se vieram a parecer tanto que cada dia ũa se passa por outra.

AMENTE
31Triste de mi, que farei?

CALÍDIO
32Se queres conselho, nega, e, senão, entrega-te.

AMENTE
33Como hei de negar cousa tão sem dúvida?

CALÍDIO
34Negando, dizem eles, se faz tudo duvidoso.

AMENTE
35Mas não se faz, por isso, torto do direito, nem direito do torto.

CALÍDIO
36Antes que isso se declare, um juiz é sospeito, outro ocupado, outro vagaroso. Isto não é tempo de mimos, teu pai não pode tardar.

AMENTE
37De que me velarei em tamanho aperto?

CALÍDIO
38Do desavergonhamento, sobre todas as cousas: brada, jura, esbravea, queixa-te, chama por justiça, olha pera o céu.

AMENTE
39Morreu-me o coração de todo.

CALÍDIO
40A mau tempo te deixou, mal o fez contigo.

AMENTE
41Não me ficou outra cousa, senão mãos pera me matar.

CALÍDIO
42E a mi pés pera fugir, e vê-lo que aparece!

AMENTE
43Aquele é, não o posso esperar.

CALÍDIO
44Que fazes? Onde te vás? Torna, que eu era o que havia de fugir.

AMENTE
45Perdoa-me, Calídio, e lembra-te de mi, que se não pode sofrer o rosto do pai a que tens errado.

CALÍDIO
46Foi-se, e deixa-me a mi c’os combates. Que farei? Que hei assi de fazer, senão ter-lhe companhia com fugir? Estes moços fouveiros são muito moles dos cascos. O homem há de ser calejado pera correr o mole e o duro. Quanto folgara de nos vermos c’o velho aos itens. Que nos houvera assi de fazer? Pôr justiça? Teria procurador, e nós procurador; diria o seu e nós o nosso. Pois inda hei d’espreitar mais deste negócio, que não estamos agora em Valença pera havermos tamanho medo a este velho, que virá enojado.

[Cena VI]

Galbano, velho; Vidal, seu criado; Calídio; [Grifão]; [Feramonte].

GALBANO
1Em que idade estava eu j’agora pera tornar a sofrer o mar e os marinheiros!

VIDAL
2Certo regeste-te nisso polo amor de pai e não por razão.

CALÍDIO
3Aquele é Vidal, homem de bem, criado seu antigo, os outros não conheço, roim gente me parece, ũa por ũa. Não vem com ele Cassiano, de que muito folgo.

GALBANO
4Isso assi é, mas que remédio?

VIDAL
5Deixá-lo lutar um pouco co a fome e frio, que eles to castigarão.

GALBANO
6Houve medo a algum mau recado, que nesta terra aposentaram os poetas as suas sereas.

VIDAL
7Já é algũa maneira de desculpa.

GALBANO
8Naquela idade tão cega e, sobretudo, tais conselheiros...

CALÍDIO
9Aqui somos.

VIDAL
10Quais conselheiros?

GALBANO
11Os que aqui tal vida levam às minhas custas.

VIDAL
12Coitados dos servidores, que inda hão de fazer mais que servir.

CALÍDIO
13Oh, que homem, sempre assi foi desenganado.

GALBANO
14A mi eram obrigados a servir, que não a ele.

VIDAL
15Teu filho é já homem e, afora Cassiano, seu aio, o ofício dos outros era servir, que não aconselhar.

CALÍDIO
16Oh, bom procurador, e mais sem dinheiro, é um milagre! Aqueles outros carrancudos não hajais vós medo que ajudem, nem c’ũa só palavra nunca os ajude Deos.

GALBANO
17Ao doente não se lhe há de fazer a vontade, e que ele por então o não conheça, despois o conhecerá e agradecerá.

CALÍDIO
18Aquele é forte ponto. Vejamos que ali responde o nosso procurador.

VIDAL
19Nesse caso que dizes, o que jaz doente jaz fraco e não pode fazer mais que ameaçar. Nestoutro, põem-te logo as mãos e vingam-se.

CALÍDIO
20Isto não é já procurador, mas um pai.

GALBANO
21Já te disse que a mi houveram eles de ter respeito.

VIDAL
22Estavas longe, acudirias tarde. Entretanto, o espancado andara espancado, o roto roto, o agravado agravado.

CALÍDIO
23E mais, que peça é andar agravado, que fogem de ti ũa légua, como de cão doente.

GALBANO
24Mas foi bem feito deitar assi a perder um moço tão bem principiado?

CALÍDIO
25Já se o velho assanha. Assi fazem quando os atalham per razão.

VIDAL
26Estamos em tempo em que ninguém quer ouvir conselho. Ora achas Amente vivo e são, tudo o mais se fará bem.

GALBANO
27Assi o queira Deos.

CALÍDIO
28Digo-vos que este Vidal me curou de todo do meu medo. A razão o velho a conhece já, do mais que me pode fazer? Sei que não estamos em Valença d’Aragão.

VIDAL
29Por aqui me disseram que pousava. Não vejo a quem preguntar.

CALÍDIO
30Quero acometer o velho, que pode ser mais?

GALBANO
31Cá vem um, e é ora este o bom de Calídio?

CALÍDIO
32Que é isto, milagre ou sonho?

GALBANO
33De que te espantas?

CALÍDIO
34De não saber se estou em Valença se em Palermo.

GALBANO
35Quero dissimular co este roim. Estais cá todos de saúde?

CALÍDIO
36Todos por agora.

GALBANO
37Guia pera a pousada, que venho cansado, queria repousar.

CALÍDIO
38Aqui é. Oulá, abri. Esta gente não ouve? Abri, digo.

GALBANO
39Enquanto este fala c’os de casa, falo eu com vós outros. Trazei-me este raposo diante de vós, e, se revelar, entre por força.

VIDAL
40Ah, senhor...

GALBANO
41Cala-te. Boa parece a casa, e em bom lugar.

CALÍDIO
42Dizem-me que não são cá Amente nem Cassiano, vou-me em sua busca.

GALBANO
43Agasalha os hóspedes primeiro.

CALÍDIO
44Não tenho com quê.

GALBANO
45Co a boa vontade.

CALÍDIO
46Oulá, que quer isso dizer? Quereis provar forças comigo? Olhai que chamarei por justiça: oh, oh!

GALBANO
47Tapa-lhe essa boca, Grifão. E tu, Feramonte, desapega-lhe essa mão da porta e fecha sobre ti.


Acto V

[Cena I]

Reinaldo, só.

REINALDO
1No cabo desta minha tão longa e trabalhosa jornada, quando os outros descansam, começa o mor cansaço meu, co a dúvida que tenho se acharei aqui ũa filha em cuja busca venho. ‘Té ‘gora na minha esperança ia passando meus males, sem ela como passarei isso que fica da vida? O mor bem que neste mundo tive, que foi a mãe desta moça, a morte mo levou; o da filha, que me em seu lugar ficava, se mo também tem levado, fê-lo cruelmente comigo, que me não deixou nesta vida a que possa alevantar somente os olhos. Aquele foi o meu primeiro amor, aquele será o derradeiro. A grande dor da sua morte me lançou então de tod’a Itália; o desejo da filha me torna agora cá. Deixei-a encomendada a um doutor, grande amigo meu, em Pisa, onde então estudava. Entretanto que aquela nobre cidade esteve em pé sempre tinha novas; dês que ela caiu fiquei às cegas, ‘té ‘gora que venho a Palermo, onde me disseram que acharia o amigo em cuja busca ando há dias. Assi venho com tão pouca certeza e, quanto mais me vou chegando a esta minha esperança, tanto se me faz ela mais pequena. Hoje é o dia da sentença, eu apercebido venho pera tudo; todavia, ao abaixar do golpe, a carne é fraca e estremece toda. Achasse já o amigo, vê-lo-ia e saberia da filha em que parte ma come a terra, se já lá é; e, então, determinarei de mi e do meu o que me parecer. Que fortes brados vem aquele homem dando; os pés pera cá o trazem, os olhos parece que lhe ficam atrás, naquela casa pera onde olha.

[Cena II]

Calídio; Reinaldo.

CALÍDIO
1Regedores, cidadães, homens de bem, os grandes e os pequenos, todos me acodi, todos me valei que a todos releva, se aqui há algũa lembrança de liberdade e justiça!

REINALDO
2Tamanhas duas cousas cuidavas tu d’achar assi polas ruas?!

CALÍDIO
3No meio do dia, no meio de Palermo, não me ouve ninguém, não me acode ninguém.

REINALDO
4Cala-te ora com teu mal.

CALÍDIO
5Que fazem aqui tantas varas de justiça?

REINALDO
6Que riso!

CALÍDIO
7Todo o mundo dorme?

REINALDO
8Dormes? Tu sonhas, tu tresvalias.

CALÍDIO
9Ah, cidadães, que todos somos escravos.

REINALDO
10Já vai entrando em seu acordo.

CALÍDIO
11Assi há isto de passar? Esfolou-me, açoutou-me, matou-me, se me a justiça não acode, acabarei de entender que faz cada um nesta terra o que lhe vem à vontade, e farei também o que me à minha mais der que faça.

REINALDO
12Olha, não vás, como dizem, de mal em pior.

CALÍDIO
13Velho falso, dissimulado, como me acolheu, bem empregado foi em mi. Mas vejo vir Devorante com seu soldado. A que tempo, quando eu buscava quem houvesse de mi dó e me aconselhasse! Outra gente me cumpre de buscar.

[Cena III]

Briobris, soldado; Devorante; Reinaldo.

BRIOBRIS
1Não acharemos hoje este doutor? E faremos esta demanda mais curta que a das suas audiências.

DEVORANTE
2Nunca homem acha o que busca.

REINALDO
3Mande Deos não seja eu assi.

BRIOBRIS
4Não acabaremos com este doutor, co este Petrónio?

REINALDO
5Assi se chamava aquele amigo que aqui busco.

BRIOBRIS
6Já revolvi toda a cidade.

DEVORANTE
7Aprenderia quando era escolar a se fazer invisível.

BRIOBRIS
8Cumpre-lhe logo andar sempre metido na sua serpente.

DEVORANTE
9Ah, ah, ah!

BRIOBRIS
10Tu ris-te?

DEVORANTE
11Quem se terá às tuas graças? Mas dar-t’-ia um conselho d’amigo.

BRIOBRIS
12Que tal?

DEVORANTE
13Pois não podes alcançar o que desejavas de Lucrécia, que desejes o que podes.

BRIOBRIS
14Como me enfadam estes sisos que todos trazem na boca e ninguém por obra.

REINALDO
15E Lucrécia havia a minha filha nome.

BRIOBRIS
16E se não nunca mais cingiria espada. Onde tem este doutor a pousada?

DEVORANTE
17Junto daquela igreja alta.

BRIOBRIS
18Bem está, perto tem logo outra pousada pera mais dias.

DEVORANTE
19Não no hás agora d’achar em casa.

BRIOBRIS
20Esperarei até noite, não tem onde se me acolha. Sete braças entrarei depós ele pola terra dentro, como pedra de corisco.

DEVORANTE
21Santa Bárbora virgem, cuidei que era morto; Pater Noster, pola alma do doutor.

REINALDO
22Estou em Palermo, ouço falar em Petrónio doutor, ouço falar em Lucrécia, que cuidarei? Quero falar ao que fica só no terreiro. Amigo, Deos te salve.

DEVORANTE
23Sejas vindo nas muitas das boas horas.

REINALDO
24Por cortesia, que Petrónio é um em que faláveis?

DEVORANTE
25Por que o preguntas?

REINALDO
26Por bem.

DEVORANTE
27Não é natural desta terra.

REINALDO
28Donde veio aqui ter?

DEVORANTE
29De Pisa, nobre cidade de Toscana.

REINALDO
30De que idade, pouco mais ou menos?

DEVORANTE
31D’arredor dos sessenta.

REINALDO
32Casado ou solteiro?

DEVORANTE
33Antre ũa cousa e a outra.

REINALDO
34Pois a idade não é já muito pera esposado. Também faláveis em ũa Lucrécia...

DEVORANTE
35Muitas cousas quer este saber de mi; que sei eu onde isto irá ter?

REINALDO
36Não me respondes?

DEVORANTE
37O outro foi que falou em Lucrécia.

REINALDO
38Si, mas falava em tom como que a conhecias.

DEVORANTE
39Não sei mais que ouvi-la por aí gabar de fermosa.

REINALDO
40Natural ou estrangeira?

DEVORANTE
41Muito anda este após as naturezas. Amigo e senhor meu, tudo saberemos, se nisso te vai algũa cousa.

REINALDO
42E aquele teu amigo, por que ameaçava tanto o doutor?

DEVORANTE
43Amigo, ou como? Nunca outro tanto com ele falei como agora.

REINALDO
44Parecia que tinha dele algũa paixão.

DEVORANTE
45Lá se avenham co as paixões; dos prazeres queria parte, das paixões lá se avenham.

REINALDO
46E este teu amigo é tão merencório como parece?

DEVORANTE
47Que forte preguntador, cuida que me tem alugado. Por pouco que me peites, eu to segurarei desta vez.

REINALDO
48Este me parece duns truães que sempre há nos lugares grandes. Vou-me em busca de Petrónio.

DEVORANTE
49Vistes o grande preguntador donde me agora saía de través? Que sei eu quem este é, nem que por aqui andará espreitando. Ũa por ũa, muitas cousas queria saber de mi. Outro vejo dos mesmos trajos, vejamos se é outro tal. Mas eu vos direi, o meu cabedal tudo é palavras, isso aventuro.

[Cena IV]

Galbano; Devorante.

GALBANO
1O bom Calídio partiu, não pola fria, como dizem, mas pela quente, como cuido que ele vai. Vá e leve novas aos outros.

DEVORANTE
2Velhos, e mais de má graça, não está aqui muito certo o ganho.

GALBANO
3De quanto bom tempo tem aqui levado descontem.

DEVORANTE
4E, sobretudo, contas e descontas não me apraz.

GALBANO
5Servidores todos se tem uns c’os outros, não mo açoutaram bem, mas já é começo de paga.

DEVORANTE
6Dai-o ao demo, em pagas anda e não me deve nada, que sei se lhe deverei eu, e andará arrecadando... Mas tudo é provar. Deos te salve, senhor meu, pareces-me estrangeiro e eu sei que cousa é andar por terras alheas, ofresço-te a meu serviço.

GALBANO
7Muito to agradeço.

DEVORANTE
8Tens negócio na terra?

GALBANO
9Não de mercadorias, como, pola ventura, cuidarás, mas busco um filho mancebo, que se me perdeu por aqui.

DEVORANTE
10Terra é pera isso, mas os sinais?

GALBANO
11Um mancebo valenciano, que já lhe começará de vir a barba, soía de ser gentil homem.

DEVORANTE
12O nome?

GALBANO
13Amente, se o ele cá não mudou, como fez a outras cousas.

DEVORANTE
14Como, e tu és Galbano, seu pai, em que tantas vezes ouvi falar?

GALBANO
15Eu, por meus pecados.

DEVORANTE
16Aqui pousa, e por sinal que tem um aio que se chama Cassiano, e um servidor por nome Calídio.

GALBANO
17Conheces bem toda essa gente?

DEVORANTE
18Como minhas mãos, mas como não estão aqui contigo?

GALBANO
19Estamos desavindos.

DEVORANTE
20Asinha isso foi.

GALBANO
21Não por minha culpa, que, em chegando, logo convidei Calídio de boa entrada.

DEVORANTE
22Trarias fruitas de Valença, que está homem pasmado de tanta gentileza e perfeição.

GALBANO
23Tempo foi, já tudo isso é passado a Portugal.

DEVORANTE
24Tão convidador vinhas?

GALBANO
25Havia muito que nos não víramos.

DEVORANTE
26Assi hão de ser os homens da tua calidade. Ora dize-me, que iguarias haveis lá entre vós por mais saborosas?

GALBANO
27A vingança.

DEVORANTE
28Eu falo em iguarias, não em alegorias.

GALBANO
29Queres que te diga o claro: vinguei-me, em chegando, desse ladrão, que mandei açoutar. Nunca me cousa assi soube, entendeste-me?

DEVORANTE
30Agora si, isso chamo eu falar ao pé da letra.

GALBANO
31Ora já aquele pagou, os outros pagarão.

DEVORANTE
32Outros, ou como?

GALBANO
33Truães malvados, que tanto do meu aqui tem comido e bebido.

DEVORANTE
34Comigo o há.

GALBANO
35Mas eu vo-lo farei amargar.

DEVORANTE
36Já me a mi começa o mau sabor da boca.

GALBANO
37Comer, beber, jogar, franquear.

DEVORANTE
38Que mais claro quereis que um homem fale? Com que negros convidadores vou topar hoje? Quero-me acolher com minha honra, se puder.

GALBANO
39É aquele Cassiano?

DEVORANTE
40Aquele é, um bom homem. Ora me contai c’os convidados, se mais aqui espero. Quantas cousas tereis ambos de falar, pois vos inda não vistes. Quero despejar.

GALBANO
41Espera, cearemos todos.

DEVORANTE
42Não curo de convites.

GALBANO
43Que é isso, por que corres? Deve de ser algum desassisado e deu-lhe o vento na corda. Vou-me esperar Cassiano em casa e assentar-m’-ei, que inda não tive vagar.

[Cena V]

Cassiano, só.

CASSIANO
1Venho pasmado dos acontecimentos. Andando em busca de nosso amo, fui dar com Reinaldo, nosso natural, que agora também chegou. A um trouxe cá um filho perdido, ao outro ũa filha que perdera muito há. Oh, filhos desejados, e estes são os vossos descansos?! Doutra parte, tendo o doutor concertado seu casamento, chega Reinaldo e acha neste próprio dia, nesta hora, neste ponto, que Lucrécia, aquela que a todos nos tem dado tanto trabalho, é a sua própria filha que andava buscando por mar e por terra. E, sobretudo, que é afilhada do mesmo doutor. Assi lhe podera ser inda mais e não se saber a tempo. O coitado, que não via já o dia nem a hora, e que estava co a boca aberta pera papar a moça, ficará assi co ela às moscas. E, polo contrário, meu criado Amente, que lhe era lá posto o cutelo na garganta, esperando só pelo pregão, vê a fortuna melhor casamenteira muito que Dório e negocea-lho tudo a pedir de boca. Que diremos às cousas deste mundo? Ũas parece que se alcançam a poder de negociação e viva diligência, outras por só dita e bom acerto. Já acharei nosso amo em casa, vou-me lá dar-lhe estas novas [40] e passarão as paixões e tormentas, que tão armadas estavam.

[Cena VI]

Devorante, só:

DEVORANTE
1Venho espreitando o aio por ver se o convidará também o velho em chegando, como fez a Calídio e quisera fazer a mi, mas Devorante não dorme. Como me quisera acolher aquele velho falso, nunca se outro tal viu. Cuida que é senhor de Palermo, assi ameaça e assi assopra. Custado me houvesse do meu muito, e pegasse outras poucas ao aio, com tod’a sua gravidade. Ou! Quem vem lá? Cuidei que me atalhavam por estoutra parte. Estes são Amente e Calídio, e inda não sei o que será, que este malvado tem já o seu quinhão e andará ajuntando mais convidados. Mas que me não vingo eu do truão que me assi hoje queimou o sangue!... Vejamos que trovas agora faz de improviso.

[Cena VII]

Amente; Calídio; Devorante.

AMENTE
1Tais novas me trazes tu, Calídio, com tal rosto? Não te pude ser bom no teu mal, perdoa-me. Ajuda-me a sofrer tanto bem, que não tenho outrem com quem o parta.

CALÍDIO
2Do mal partiste comigo bem, do bem partirás mal.

AMENTE
3Não me doeu nada menos que a ti.

CALÍDIO
4Não sei, mas bem te punhas em salvo.

AMENTE
5Lá me coube o meu quinhão.

CALÍDIO
6Mostra-me ora em ti algum sinal dos meus açoutes por este corpo.

AMENTE
7Não teriam menos os meus se os pudesses ver.

CALÍDIO
8Pois eu não recebo pagas invisíveis.

DEVORANTE
9Quanto que sabe este malvado, co ele me tenho.

AMENTE
10Assi me contas de Reinaldo, e que é Lucrécia sua filha, e filha também espiritual do doutor?

CALÍDIO
11Assi passa.

DEVORANTE
12Um destes anda fora de si com dor, outro com ceúmes, não lhes creo nada.

AMENTE
13Oh, Calídio, amigo da minha alma! Que te direi? Que te darei? Que te farei, por tais novas e a tal tempo?

CALÍDIO
14Outras tais alvíssaras como as de teu pai, que, enfim, estes são os vossos galardões.

DEVORANTE
15Oh, falso, como os conheces bem!

AMENTE
16Hei medo que me dê o miolo volta c’o prazer.

CALÍDIO
17E a mim c’o pesar.

AMENTE
18Prometo-te que eu te agalardoe, como tal obrigação merece.

CALÍDIO
19A vós outros mais vos lembra um serviço por fazer que cento feitos.

DEVORANTE
20Dai-o ao diabo, que inda fala a propósito.

AMENTE
21Como se pôde desempeçar tal meada em tão pouco tempo?

CALÍDIO
22A verdade logo vai por diante e foi grande ajuda a velha que hoje achei com Alda.

AMENTE
23O doutor estaria finado.

CALÍDIO
24Todavia, ele falava.

AMENTE
25E quê?

CALÍDIO
26Uns poucos dos seus latins.

AMENTE
27Que tais?

CALÍDIO
28Alevantou dous dedos nos quais repartiu seus direitos naturais e espirituais, concruindo, todavia, que naquele caso cabia dispensação.

AMENTE
29Como dispensação?

CALÍDIO
30E ainda te digo que soltou ũa má palavra.

AMENTE
31Que tal? Triste de mim.

CALÍDIO
32Disse que por dinheiro não ficasse, e bateu na bolsa.

AMENTE
33A essa não chamas tu mais que má palavra? Chamo-lhe eu mortal.

CALÍDIO
34Mas sabes quem desatou todos aqueles empeços e razões doutorais?

AMENTE
35Quem, Calídio?

CALÍDIO
36Lucrécia.

AMENTE
37Como?

CALÍDIO
38Disse que não queria, que tod’a sua vida fora órfã e estrangeira, agora que lhe deixassem ir a servir aquele pai a que tanto devia e lográ-lo algum tempo.

AMENTE
39Oh, feito de Lucrécia!

DEVORANTE
40Estava recolhendo novas pera o meu soldado, agora ei-las todas entornadas, que deixará logo o doutor e há de querer pôr toda Valença à espada.

AMENTE
41Como pudeste saber tanta cousa em tão pouco tempo?

CALÍDIO
42Tive cuidado.

AMENTE
43E eu terei lembrança.

CALÍDIO
44Pera quando?

AMENTE
45Bem vês tu que eu agora não posso.

CALÍDIO
46E despois não quererás.

DEVORANTE
47Evangelho, mas por que me não vingo eu deste roim de Calídio e que lhe tardo mais? Deos vos salve, e a ti, Calídio, prol faça.

CALÍDIO
48Passo, que falamos segredo.

DEVORANTE
49Não ias tu hoje de tão má graça, quando trovavas de improviso.

CALÍDIO
50Nem tu de tão boa, serão milagres do vinho.

DEVORANTE
51Isso se poderá dizer mais por ti, pois te convidaram em chegando.

CALÍDIO
52E tu em convites.

DEVORANTE
53Dura-te ainda aquela vea de trovar? Romperemos aqui um par de lanças por festa diante de Amente.

AMENTE
54Deixa-o pera outra hora Devorante, que temos al em que entender.

DEVORANTE
55Já hei de ver pera quanto é, que não me valeu co ele ereita nem sopé:
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Calídio, j’eu vi outro homem
mais são das costas que ti
por que te torces assi?
Pulgas sei que te não comem,
vergões pode ser que si.

CALÍDIO
56
Devorante, que se tanja,
que se cante em paraíso,
não é aquela a tua granja,
pois se lá fala de siso
e não é terra de manja.

DEVORANTE
57Não valha, que não foi polos consoantes.

AMENTE
58Não seja mais, ambos o fizestes bem.

DEVORANTE
59Tudo se faça hoje à tua vontade e tudo seja festa.

CALÍDIO
60Donde aventou este corvo carniçal a carniça?

DEVORANTE
61Farejei hoje a tua, que foi arrezoada.

AMENTE
62Não lhe respondas, Calídio. E tu, Devorante, não fales mais sob pena de te ser aquela porta cerrada enquanto aqui estivermos.

DEVORANTE
63Não me verás mais boquejar.

AMENTE
64Ora nos vamos cear com meu pai.

DEVORANTE
65Ele mesmo me convidava pouco há.

CALÍDIO
66Eu não vou, por agora, a essa casa, perdoar-me-ás.

AMENTE
67Como, e tu só me hás de falecer, em quem eu tinha tod’a minha esperança?

DEVORANTE
68Vem cá, Calídio, dá-me essa mão, sejamos amigos e dir-t’-ei como façamos, que eu também não me fio ora muito de ninguém: acompanhemos Amente até à porta, daí espreitaremos e, assi como virmos, assi haveremos nosso acordo. Já sabes o que se diz: não te fies e não te enganarão.

AMENTE
69Ditos de gente baixa e desconfiada. I comigo seguramente.

O REPRESENTADOR
70Não foram necessários rogadores nem arengas. O filho lançou-se por terra aos pés do pai. Ele, c’os olhos cobertos d’água, alevantou-o de ũa parte e da outra as lágrimas sopriram por palavras. A cea faz-se prestes. Ao doutor e ao soldado não falecerão outros amores. As outras festas hão-se de fazer em Valença de Aragão.

Laus Deo.