[cena I]
Briobris, soldado; Devorante, truão.
BRIOBRIS
1Assi que me tendes aqui, cativo em Palermo, em tempo de paz e terra de cristãos.
DEVORANTE
2São obras do amor, que já fez a Hércules, conquistador do mundo, fiar e debar.
BRIOBRIS
3E eu, que achando-me na de Ravena, Chirinola, Vicença, Milão, que viesse assi a cair nas mãos dũa moça que te parece?
DEVORANTE
4Assi contam que se toma o alicorne, animal tão bravo.
BRIOBRIS
5E assi aconteceu a Roldão e Reinaldo.
DEVORANTE
6E ontem a el rei Carlos, o da cabeça grande, em Piamonte.
BRIOBRIS
7Não sou acostumado a sofrer desejos.
DEVORANTE
8Acostuma-te por amor de mim, que os amores, de seu natural, são brandos e querem-se por bem.
BRIOBRIS
9Arrenego destas vossas branduras, tenho-me co a guerra, onde se tudo faz por força.
DEVORANTE
10Fala mais sem paixão, que te demudas e fazes-me haver medo.
BRIOBRIS
11Esse mal tenho, sou temeroso.
DEVORANTE
12Oh, que doutra parte és mais gracioso que a mesma graça.
BRIOBRIS
13Porém, quando me vem esta paixão, perdoai. Se me viras no campo...
DEVORANTE
14Aí dão os homens testemunho verdadeiro de quem são.
BRIOBRIS
15Digo que, se me lá viras, andava mais acompanhado que o capitão. Ele morria d’enveja e eu não morria d’abafas. Contei-te já dos toques que lhe dei?
BRIOBRIS
17E esse não foi mau, mas primeiro te hei de contar doutros anhos cozidos.
DEVORANTE
18Que aramá lá fui... Cuidei d’atalhar e rodeei, após estes virão os fritos e despois os assados.
BRIOBRIS
19Este capitão tocava no tribo de Judá e, como disse, tinha-me grande enveja, polo qual mastigava e grosava ditos meus que todos traziam na boca; polo qual eu a um propósito, não falando mais com ele que c’os outros, disse um dia «não se há aos súpitos de buscar a escama detrás a orelha»...
DEVORANTE
22Não é pera ninguém brincar contigo, como dizem do ferro. E os outros?
BRIOBRIS
23Torciam-se todos. Mas quem te disse o da Temuda?
DEVORANTE
24Mil pessoas que o sabem e o contam, entre outras graças tuas. E ele mesmo foi o que mo contou, mas que hei já de fazer?
BRIOBRIS
25Este mesmo capitão trazia amores em parte que me ia nisso algũa cousa. A dama chamava-se Temuda. Mas que havia o diabo de fazer? Viemo-nos ũa só noite a encontrar em um lugar escuso. Ele rebuçou-se, mas eu, ao passar, disse «pera que é andar tão temudo»?
DEVORANTE
26Destruíste-o. Esse homem como se não foi logo lançar num poço?
BRIOBRIS
27E isto em dizendo, fazendo.
DEVORANTE
28São graças naturais que Deos reparte por quem quer bem.
BRIOBRIS
29Não o digo por me gabar, mas quantas vezes me aconteceu não me darem somente vagar com requerimentos de cartas d’amores, uns a um propósito, outros a outro?
DEVORANTE
30Quais havias por mais trabalhosas?
BRIOBRIS
33E, assi dũas como doutras, os começos; que despois ũa palavra leva a outra, por ũa maneira nova que ora descobrimos, que tudo se vai apurando cada vez mais.
DEVORANTE
34Ficar-te-iam os treslados que leremos sobre mesa?
BRIOBRIS
35Nunca as guardo, mas lembra-me um começo, e dizia assi: «nas ondas destas lágrimas, que me levam assi na sua corrente, não tem estes meus olhos outro norte por que se rejam senão os teus».
DEVORANTE
36Ai, ai, que farei? Isso não se sofre.
DEVORANTE
38Dará cento como relógio mal consertado.
BRIOBRIS
39«... Os enganos, senhores da vontade, fazem o que querem de mim. E eu não quero acabar de entender o que entendo e fico assi como em mares encruzilhados, onde a força não esforça nem governa o governalhe.»
DEVORANTE
40Busca quem te aguarde tais pancadas, que eu não posso.
BRIOBRIS
41Pois se quisesses que te esmiuçasse isto pelo meúdo...
DEVORANTE
42Fugirei quanto puder, tão endiabrado és por bem como por mal.
BRIOBRIS
43Assi hão de ser os homens e não como estes frieirões, que não são peixe nem carne. Outra: «no meio dos desejos não acho cabo, no cabo não acho meios, tal aviamento acho pera o meu desaviamento e tal esperança pera o cabo da desesperação».
DEVORANTE
44Finalmente, pera esta tua navegação tudo o mais temos, a moça só nos falece, esta busquemos.
BRIOBRIS
45Não se pode errar que não há outra em Palermo. Como, em Palermo? Como em Palermo? Não há outra no mundo! Aqui achei, aqui perdi, aqui me perdi.
DEVORANTE
46A bom santo te encomendaste, eu te tornarei a achar.
BRIOBRIS
47Os cabelos como fio d’ouro, os olhos verdes que eschamejavam...
DEVORANTE
48Tais que te fartaram os teus?
BRIOBRIS
49Mas tais que mos deixaram famintos pera sempre.
DEVORANTE
50Ora corta-me este pescoço e acaba. Que mais poderá dizer um Mancias?
BRIOBRIS
51Pois ando pera me enforcar, como vês.
DEVORANTE
52Não faças, por amor de mim, que é cousa de que te arrependerás.
BRIOBRIS
53Nunca fiz cousa de que me arrependesse.
DEVORANTE
54E eu cada dia e cada hora. Vamo-nos a jantar, ficar-nos-á tempo pera os negócios.
BRIOBRIS
55Não o hão inda de ter prestes, eu vou a dar pressa e terei cuidado do teu mantimento, tu tem cuidado do meu.
DEVORANTE
56És ũa fonte perenal de eloquência, nunca te acabarão d’esgotar.
BRIOBRIS
57Pois crê-me que não anda aqui um terço de mim.
[cena II]
Devorante, só.
DEVORANTE
1A que tempo me Deos deparou este soldado, que não achava já aqui ũa vez d’água. Neste mundo tudo são começos. Foi-me bem uns dias, agora andava já às moscas. Cada tarde me assentava sobre um penedo a divisar dali o mundo e dando ao papo como francelho manso, olhando pera onde toma ria o voo. Trabalhoso ofício este nosso, que tem sempre o mantimento em mãos alheas. Muito bem me dizem dos galegos, e tem razão, que nunca em al falam, segundo me dizem, senão em comer e beber. Nunca se viu tão roim mundo, o dizer bem das pessoas é cousa fria e ainda desaprazível, o dizer mal é perigoso. Quem quereis que tome um porto tão estreito? E, por inda ser nossa mofina maior, os mancebos, servidores das damas, com quem era tod’o nosso ganho, vieram-se-nos a fazer mais graves que seus pais. Oh, jóias, jóias, quem tivesse bem de comer pera se rir de vós! Como i não houve amores, não houve homens. Com eles se foram as canas, os touros, as justas e, finalmente, a liberalidade. Nós outros ficámos como sinos em castelo despovoado, tangendo às gralhas. E assi já eu era, como digo, na espinha, lembrou-se Deos de mim e acodiu-me com este soldado, apetitoso, convidador, mais vão que a mesma vaidade. Nas armas um Roldão, mais fermoso e mais namorado de si mesmo que Narciso. Mas a mim que se me dá? Vem da guerra e destes seus a que chamam sacos, onde roubam a Deos e aos santos. Vós, porém, vede como falais e não lhes chameis roubos, senão olhai por vós, sacos si, quantas vezes quiserdes. Quem me mete a mim com seus pontos de honra? Venha donde vier, ganhasse-o como quisesse. Sou pola ventura seu confessor? Come, bebe, joga e é de molheres. Aqueles tais são os meus homens. O mal ganhado, mal se há de despender. Vivamos todos. É de louvaminhas? Farto-o delas. Quer contar suas mentiras? Aparelho os ouvidos. Encho-o de vaidade e ele a mi, que não sou tão espiritual, enche-me disso que se vende na praça. Seja nas boas horas. Trato é em que ele põe dinheiro e eu palavras, dure o que durar. É enfadonho? Não há logo de ser tudo como homem quer, e de que me podem melhor servir os meus ouvidos e a minha língua que de me ganharem de comer? A moça não vos há de ser outra senão esta Lucrécia, pera quem agora toda a cidade se embica. Guarda de escandalizar ninguém por ninguém, que as obrigações esquecem logo, as mágoas nunca. Lá se avenham, que eu não me mantenho d’«olhos verdes, quando me veredes». A mor ciência que no mundo há assi é saber conversar c’os homens. Bom rosto, bom barrete, boas palavras não custam nada e valem muito. E assi quem sabe de tudo isto faz bom barato. Os parvos dar-vos-ão antes dinheiro, e eu antes o queria. Isto não se aprende em Paris. Vou-me a comer.
[cena V]
Calídio; Amente.
CALÍDIO
1Quem concertará tantos desconcertos? Digo-vos que cuido e cuido, e não lhes posso achar saída.
AMENTE
2O que aí não há como se pode achar?
CALÍDIO
3Estes namorados não vivem senão d’esperanças.
AMENTE
4Que assi são elas mui saborosas.
CALÍDIO
5Olhai que peças: doutor honrado e rico, os dedos cheos de anéis...
AMENTE
6Pera mal vai este conto. Calídio, Calídio!
CALÍDIO
7E o negócio está em Betrando, tão sesudo e tão pesado.
AMENTE
8Calídio, ouves-me? Vem cá, soubeste mais algũa nova?
AMENTE
10Com Alda? E que te disse?
CALÍDIO
11Que o doutor apertava muito o negócio.
CALÍDIO
13Que não trazia rosto de contente.
AMENTE
14O que farei a estes rostos, que tão asinha se mudam? Que disse Betrando?
CALÍDIO
15Que cala e passea.
CALÍDIO
17A ambas as mãos polo casamento.
AMENTE
18Não é sua filha.
CALÍDIO
19Nem é ela a que há de casar e dá tantas razões tão sesudas. Já sabes que cousas são molheres.
AMENTE
20E tu já sabes que se não faz em casa senão o que elas mandam.
AMENTE
22Disse-te mais algũa cousa?
CALÍDIO
23Que ia em busca de Ambrósia, a velha que criou Lucrécia.
AMENTE
24Pera quê? Triste de mim.
CALÍDIO
25Preguntei-lho, mas deu aos ombros.
AMENTE
28E mal será, que assi acontece as mais das vezes.
CALÍDIO
29Que pressa é esta tua, e mais pera casa donde sempre foges?
AMENTE
30Pera que queres saber mais das minhas desaventuras? Furtei-me de casa com tamanho açodamento que perdi aquela minha carta que sabes. Eu i adiante achei-a menos, foi-me como achar menos o coração. Torno em sua busca, deixa-me ir só.
[cena VI]
Devorante; Calídio.
DEVORANTE
1Então, deixai vós frades bradar do púlpito e bracejar que não há i dias aziagos.
CALÍDIO
2Mau rosto traz, será com fome?
DEVORANTE
3Ditosos homens que se lhes crê quanto dizem.
CALÍDIO
4Ando magoado de lhe já ninguém crer cousa nenhũa.
DEVORANTE
5Que horas estas pera andar inda em jejum, inda que fora dia de jejum...
CALÍDIO
6Bem me parecia que dali vinha a tosse ao gato.
DEVORANTE
7Todos fartos e cheos, então querem gracejar... Que me anda o diabo atentando pera fazer ũa doudice. Então, vereis como logo todos me dão o corro, como dizem do touro.
CALÍDIO
8Pois quanto à míngua da boa cornadura não fique.
DEVORANTE
9Cuidei de achar já o meu soldado à mesa e ia lambendo os beiços d’antemão, senão quando eu vejo que me estava aguardando à sua porta um taverneiro, a que sou em dívida dalguns maravedis. Olhei mais e vejo-lhe um beliguinaz ao lado. Ia-lhe a cair nas mãos. Quanto val um homem acordado, descobri-os dũa légua, desviei-me então por outra rua. Eu lá, alevantava-se um arroído como barborinho em tardes de Verão: lanças, pedras, espadas, não sei como saí vivo.
CALÍDIO
10Vaso mau nunca quebra!
DEVORANTE
11Um jantar que te Deos ministra, quantas cousas te estorvam!
CALÍDIO
12Pois ainda o meu quinhão te está cá guardado.
DEVORANTE
13De que te aproveita ser sesudo antre tantos doudos?
CALÍDIO
14Judeu houveras de dizer que não sesudo.Oh, meu grandíssimo amigo Devorante, quanto ora folgo contigo!
DEVORANTE
15Este me direis vós a mim que não é dia aziago?
CALÍDIO
16Que é isso que assi vens de má graça? Não era esse o teu costume.
DEVORANTE
17Deixa-me passar que não hei contigo nada.
CALÍDIO
18Que te fiz? Algũa agulha ferrugenta se meteu entre nós?
DEVORANTE
19Requeiro-te, da parte de Deos, que me deixes ir em paz. Não sejas aqui hoje o meu pecado.
CALÍDIO
20Espera que logo te aviarei.
DEVORANTE
21Que me queres?
CALÍDIO
22Dous toques de trovas d’improviso que tens nisto gracia gratis data.
DEVORANTE
23Não ia eu ora cuidando em al.
CALÍDIO
24Tanto mais d’improviso. Começo:
-->
Se és quebrado ou se és inteiro
que assi vás aos foles dando
dás à cabeça escornando
se és touro ou velho sindeiro.
DEVORANTE
25Eras pera alfeloeiro
-->
que vai cascavéis tocando
bem sei que foste apalpando
mas não és bom chocarreiro.
CALÍDIO
26Ora o fizeste como quem és e mais pelos consoantes, outr’hora te convidarei. Já podes passar.
[cena VII]
Briobris; Devorante.
BRIOBRIS
1Passam as horas do comer, o jantar dana-se, grão força de negócio detém a Devorante.
DEVORANTE
2Quando me haverei eu dentro naquela casa, que me hoje tantas cousas defendem? Mas vejo o meu soldado.
BRIOBRIS
3Que detença foi esta? Houve quem te fizesse algum desprazer?
DEVORANTE
4Já me conhecem por teu, digo-te que não querem provar como pões as mãos e o ferro.
BRIOBRIS
5E o fogo inda deveras de dizer.
DEVORANTE
6E o fogo também.
BRIOBRIS
7Que não há muito que eu chamusquei uns poucos de vilãos por um desprazer que me fizeram. Nem saberás como eu jogueto d’arcabuz.
DEVORANTE
8Saibam-no teus imigos.
BRIOBRIS
9E dous soldados desta vossa guarda de Palermo.
DEVORANTE
10Si, de como os desbarataste.
BRIOBRIS
11Com ũa só palavra queres tu passar por tamanho feito?
DEVORANTE
12Isso seria se as muitas abastassem.
BRIOBRIS
13Bem disseste, como és avisado.
DEVORANTE
14Vou aprendendo de ti.
BRIOBRIS
15E do usso tamanho e tão medonho que me dizes, pois o viste?
DEVORANTE
16Sabes que então disseram todos?
BRIOBRIS
17Quê, por tua vida?
DEVORANTE
18Que se apalpara o usso com o leão.
BRIOBRIS
19Ah, ah, ah, ora nunca vi melhor dito de povo!
DEVORANTE
20Assi diz o povo que nunca viu milhor feito de um homem só.
DEVORANTE
22Nem de vinte! Oh, senhor Deos, que não fará dizer a fome! Não sei pera que foram mais polés nem mais dados na testa. Aquele é um usso manso, que anda por essas ruas brincando.
BRIOBRIS
23Benzer-te-ias, quando me visses saltar a través tão ligeiro.
DEVORANTE
24E tão airoso. Mas tu não me preguntas por nada?
BRIOBRIS
25Oh, meu amigo grande, como, quem descansa sobre ti?
DEVORANTE
26Não é pera as ruas cousa de tal segredo e preço. Entremos em casa, lá saberás maravilhas.
BRIOBRIS
27E eu também contarei das minhas.
DEVORANTE
28O demo diz a este que hão de ser mentiras por mentiras.