Texto utilizado para esta edição digital:
Vicente, Gil. Farsa de Inês Pereria (1523). [on-line] En: Camões, José (dir.) Teatro de autores portugueses do Séc. XVI. Base de dados textual Lisboa: Centro de Estudos de Teatro, Universidade de Lisboa. [15 janeiro 2023] Disponível em: http://www.cet-e-quinhentos.com/
Codificação de texto digital para EMOTHE:
- Camões, José
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Esta publicação faz parte do projeto de I+D+i «Teatro español y europeo de los siglos XVI y XVII: patrimonio y bases de datos», referência PID2019-104045GB-C54 (acrónimo EMOTHE), financiado pelo MICIN/AEI/10.13039/501100011033.
Feito por Gil Vicente, representado ao muito alto e mui poderoso rei dom João o terceiro, no seu convento de Tomar. Era do Senhor de 1523.
O seu argumento é um exemplo comum que dizem: mais quero asno que me leve que cavalo que me derrube. As figuras são as seguintes: Inês Pereira, sua Mãe, Lianor Vaz, Pero Marques, dous judeus, um chamado Latão e outro Vidal, um Escudeiro com um seu Moço, um Ermitão.
Entra logo Inês Pereira e finge que está lavrando só em casa, e canta esta cantiga:
Canta Inês:
[INÊS PEREIRA]
1
Quien con veros pena y muere
2
qué hará cuando no os viere?
Falado:
3
Renego deste lavrar
4
e do primeiro que o usou,
5
ao diabo que o eu dou
6
que tam mau é d’aturar.
7
Oh Jesu, que enfadamento
8
e que raiva e que tormento,
9
que cegueira e que canseira.
10
Eu hei de buscar maneira
11
dalgum outro aviamento.
-->
12
Coitada, assi hei d’estar
13
encerrada nesta casa
14
como panela sem asa
15
que sempre está num lugar.
16
E assi hão de ser logrados
17
dous dias amargurados
18
que eu posso durar viva,
19
e assi hei d’estar cativa
20
em poder de desfiados.
-->
21
Antes o darei ao diabo
22
que lavrar mais nem pontada,
23
já tenho a vida cansada
24
de jazer sempre dum cabo.
25
Todas folgam e eu não,
26
todas vem e todas vão
27
onde querem, senam eu.
28
Ui, que pecado é o meu
29
ou que dor de coração?
-->
30
Esta vida é mais que morta.
31
Sam eu coruja ou corujo
32
ou sam algum caramujo
33
que nam sai senão à porta?
34
E quando me dão algum dia
35
licença, como a bugia,
36
que possa estar à janela
37
é já mais que a Madanela
38
quando achou a aleluia.
Vem a Mãe da igreja e não na achando lavrando diz:
[MÃE]
-->
39
Logo eu adevinhei,
40
lá na missa onde eu estava,
41
como a minha Inês lavrava
42
a tarefa que lhe eu dei.
43
Acaba esse travesseiro.
44
Ui, naceu-te algum unheiro
45
ou cuidas que é dia santo?
INÊS PEREIRA
46
Praza a Deos que algum quebranto
47
me tire de cativeiro.
MÃE
-->
48
Toda tu estás aquela.
49
Choram-te os filhos por pão?
INÊS PEREIRA
50
Prouvesse a Deos, que já é rezão
51
de nam estar tam singela.
MÃE
52
Olhade lá o mau pesar.
53
Como queres tu casar
54
com fama de preguiçosa?
INÊS PEREIRA
55
Mas eu, mãe, sam aguçosa,
56
e vós dais-vos de vagar.
MÃE
-->
57
Ora espera assi, vejamos.
INÊS PEREIRA
58
Quem já visse esse prazer.
MÃE
59
Cal-te, que poderá ser,
60
que ante Páscoa vem os Ramos.
61
Nam te apresses tu Inês,
62
maior é o ano que o mês.
63
Quando te nam percatares
64
virão maridos a pares
65
e filhos de três em três.
INÊS PEREIRA
-->
66
Quero-m’ora alevantar.
67
Folgo mais de falar nisso,
68
assi Deos me dê o paraíso
69
mil vezes que nam lavrar.
70
Isto nam sei que o faz.
MÃE
71
Aqui vem Lianor Vaz.
INÊS PEREIRA
72
E ela vem-se benzendo.
LIANOR VAZ
73
Jesu que me eu encomendo,
74
quanta cousa que se faz.
MÃE
-->
75
Lianor Vaz, que é isso?
LIANOR VAZ
76
Venho eu, mana, amarela?
MÃE
77
Mais ruiva que ũa panela.
LIANOR VAZ
78
Nam sei como tenho siso.
79
Jesu, Jesu, que farei?
80
Não sei se me vá a el rei,
81
se me vá ao cardeal.
MÃE
82
E como? Tamanho é o mal?
LIANOR VAZ
83
Tamanho, eu to direi.
-->
84
Vinha agora por ali
85
ò redor da minha vinha
86
e um clérigo, mana minha,
87
pardeos, lançou mão de mi.
88
Nam me podia valer.
89
Diz que havia de saber
90
se era eu fêmea se macho.
MÃE
91
Ui, seria algum mochacho
92
que brincava por prazer.
LIANOR VAZ
-->
93
Si, mochacho sobejava.
94
Era um zote tamanhouço,
95
e eu andava no retouço
96
tam rouca que nam falava.
97
Quando o vi pegar comigo
98
que me achei naquele perigo:
99
assolverei! Nam assolverás!
100
Tomarei! Nam tomarás!
101
Jesu, homem, que hás contigo?
-->
102
Irmã, eu te assolverei
103
c’o breviairo de Braga.
104
Que breviairo ou que praga,
105
que nam quero! Áque del rei!
106
Quando viu revolta a voda
107
foi e esfarrapou-me toda
108
o cabeção da camisa.
MÃE
109
Assi me fez dessa guisa
110
outro no tempo da poda.
-->
111
Eu cuidei que era jogo
112
e ele dai-o vós ò fogo.
113
Tomou-me tamanho riso,
114
riso em todo meu siso,
115
e ele deixou-me logo.
LIANOR VAZ
116
Si, agora ieramá,
117
também eu me ria cá
118
das cousas que me dizia:
119
chamava-me luz do dia.
120
Nunca teu olho verá.
-->
121
Se estivera de maneira
122
sem ser rouca bradara eu,
123
mas logo o demo me deu
124
cadarrão e peitogueira,
125
cócegas e cor de rir
126
e coxa pera fugir
127
e fraca pera vencer.
128
Porém pude-me valer
129
sem me ninguém acudir.
-->
130
O demo, e não pode al ser,
131
se meteu no corpo dele.
MÃE
132
Mana, conhecia-t’ele?
LIANOR VAZ
133
Mas queria-me conhecer.
MÃE
134
Vistes vós tamanho mal.
LIANOR VAZ
135
Eu me irei ao cardeal
136
e far-lh’-ei assi mesura
137
e contar-lh’-ei a aventura
138
que achei no meu olival.
MÃE
-->
139
Nam estás tu arranhada
140
de te carpir nas queixadas.
LIANOR VAZ
141
Eu tenho as unhas cortadas
142
e mais estou trosquiada
143
e mais pera que era isso?
144
E mais pera que é o siso
145
E mais no meo da requesta
146
veo um homem de ũa besta
147
que em vê-lo vi o paraíso.
-->
148
E soltou-me porque vinha
149
bem contra sua vontade.
150
Porém, a falar verdade,
151
já eu andava cansadinha.
152
Nam me valia rogar
153
nem me valia chamar:
154
áque de Vasco de Fóis,
155
acudi-me como sóis.
156
E ele senam pegar:
-->
157
mais mansa Lianor Vaz,
158
assi Deos te faça santa.
159
Trama te dê na garganta.
160
Como isso assi se faz?
161
Isto nam releva nada,
162
tu nam vês que sam casada?
MÃE
163
Deras-lhe má hora boa
164
e mordera-lo na coroa.
LIANOR VAZ
165
Assi fora escomungada.
-->
166
Nam lhe dera um empuxão
167
porque sou tam maviosa
168
que é cousa maravilhosa
169
e esta é a concrusão.
170
Leixemos isto. Eu venho
171
com grande amor que vos tenho,
172
porque diz o exemplo antigo
173
que amiga e bom amigo
174
mais aquenta que o bom lenho.
-->
175
Inês está concertada
176
pera casar com alguém?
MÃE
177
Até ‘gora com ninguém
178
nam é ela embaraçada.
LIANOR VAZ
179
Em nome do anjo bento
180
eu vos trago um casamento.
181
Filha, nam sei se vos praz.
INÊS PEREIRA
182
E quando, Lianor Vaz?
LIANOR VAZ
183
Já vos trago aviamento.
INÊS PEREIRA
-->
184
Porém, nam hei de casar
185
senam com homem avisado,
186
inda que pobre e pelado
187
seja discreto em falar,
188
que assi o tenho assentado.
LIANOR VAZ
189
Eu vos trago um bom marido,
190
rico, honrado, conhecido.
191
Diz que em camisa vos quer.
INÊS PEREIRA
192
Primeiro eu hei de saber
193
se é parvo se é sabido.
LIANOR VAZ
-->
194
Nesta carta que aqui vem
195
pera vós, filha, d’amores
196
veredes vós, minhas flores,
197
a discrição que ele tem.
INÊS PEREIRA
198
Mostrai-ma cá, quero ver.
LIANOR VAZ
199
Tomai. E sabeis vós ler?
MÃE
200
Ui, e ela sabe latim
201
e gramáteca e alfaqui
202
e sabe quanto ela quer.
Lê Inês Pereira a carta, a qual diz assi:
[INÊS PEREIRA]
203
Senhora amiga Inês Pereira:
204
Pero Marques vosso amigo
205
que ora estou na nossa aldea,
206
mesmo na vossa mercea,
207
me encomendo, e mais digo:
208
digo que benza-vos Deos
209
que vos fez de tam bom jeito,
210
bom prazer e bom proveito
211
veja vossa mãe de vós.
-->
212
E de mi também assi.
213
Ainda que eu vos vi
214
estoutro dia de folgar
215
e nam quisestes bailar
216
nem cantar presente mi...
217
Na voda de seu avô
218
ou donde me viu ora ele?
219
Lianor Vaz, este é ele?
LIANOR VAZ
220
Lede a carta sem dó
221
que inda eu sam contente dele.
Torna Inês Pereira a prosseguir com a carta:
[INÊS PEREIRA]
-->
222
...Nem cantar presente mi
223
pois Deos sabe a rebentinha
224
que me fizestes então.
225
Ora Inês que hajais benção
226
de vosso pai e a minha
227
que venha isto a concrusão.
-->
228
E rogo-vos como amiga,
229
que samicas vós sereis,
230
que de parte me faleis
231
antes que outrem vo-lo diga.
232
E se nam fiais de mi
233
esteja vossa mãe aí
234
e Lianor Vaz de presente.
235
Veremos se sois contente
-->
236
que casemos na boa hora.
237
Dês que nasci até agora
238
nam vi tal vilão com’este
239
nem tanto fora de mão.
LIANOR VAZ
240
Nam queiras ser tam senhora,
241
casa filha que te preste
242
nam percas a ocasião.
-->
243
Queres casar a prazer
244
no tempo d’agora, Inês?
245
Antes casa em que te pês
246
que não é tempo d’escolher.
247
Sempre eu ouvi dizer:
248
ou seja sapo ou sapinho
249
ou marido ou maridinho
250
tenha o que houver mister,
251
este é o certo caminho.
MÃE
-->
252
Pardeos, amiga, essa é ela:
253
mata o cavalo de sela
254
e bô é o asno que me leva.
LIANOR VAZ
255
Filha, no Chão do Couce
256
quem nam puder andar choute,
257
e mais quero quem me adore
258
que quem faça com que chore.
259
Chamá-lo-ei?
INÊS PEREIRA
Si,
260
venha e veja-me a mi.
261
Quero ver quando me vir
262
se perderá o presumir
263
logo em chegando aqui
264
pera me fartar de rir.
MÃE
-->
265
Touca-te bem se vier
266
pois que pera casar anda.
INÊS PEREIRA
267
Essa é boa demanda.
268
Cerimónias há mister
269
homem que tal carta manda?
270
Eu o estou cá pintando,
271
sabeis, mãe, que eu adevinho?
272
Deve ser um vilanzinho.
273
Ei-lo se vem penteando,
274
será com algum ancinho.
Aqui vem Pero Marques, vestido como filho de lavrador rico, com um gabão azul deitado ao ombro, com o capelo por diante, e vem dizendo:
[PERO MARQUES]
-->
275
Homem que vai onde eu vou
276
nam se deve de correr,
277
ria embora quem quiser
278
que eu em meu siso estou.
279
Nam sei onde mora. Aqui?
280
Olhai que me esquece a mi.
281
Eu creo que nesta rua...
282
Esta parreira é sua,
283
já conheço que é aqui.
Chega Pero Marques aonde elas estão e diz:
-->
284
Digo que esteis muit’embora.
285
Folguei ora de vir cá,
286
eu vos escrevi de lá
287
ũa cartinha, senhora,
288
assi que... e de maneira...
MÃE
289
Tomai aquela cadeira.
PERO MARQUES
290
E que val aqui ũa destas?
INÊS PEREIRA
291
Oh Jesu, que Jão das Bestas,
292
olhai aquela canseira.
Assentou-se com as costas pera elas e diz:
-->
293
Eu cuido que não estou bem.
MÃE
294
Como vos chamam, amigo?
PERO MARQUES
295
Eu Pero Marques me digo
296
como meu pai que Deos tem.
297
Faleceu, perdoe-lhe Deos,
298
que fora bem escusado,
299
e ficámos dous heréus,
300
perém, meu é o morgado.
MÃE
301
De morgado é vosso estado?
302
Isso veria dos céus.
PERO MARQUES
-->
303
Mais gado tenho eu já quanto
304
e o mor de todo o gado,
305
digo maior algum tanto
306
e desejo ser casado,
307
prouguesse ao spírito santo,
308
com Inês, que eu me espanto
309
quem me fez seu namorado.
310
Parece moça de bem
311
e eu de bem er também.
312
Ora vós ide lá vendo
313
se lhe vem milhor ninguém,
314
a segundo o que eu entendo.
-->
315
Cuido que lhe trago aqui
316
peras da minha pereira,
317
hão d’estar na derradeira.
318
Tende ora, Inês, por i.
INÊS PEREIRA
319
E isso hei de ter na mão?
PERO MARQUES
320
Deitai as peas no chão.
INÊS PEREIRA
321
As perlas pera enfiar,
322
três chocalhos e um novelo,
323
e as peas no capelo,
324
e as peras onde estão?
PERO MARQUES
-->
325
Nunca tal me aconteceu.
326
Algum rapaz mas comeu,
327
que as meti no capelo
328
e ficou aqui o novelo
329
e o pentem nam se perdeu.
330
Pois trazi’-as de boa mente.
INÊS PEREIRA
331
Fresco vinha o presente
332
com folhinhas borrifadas.
PERO MARQUES
333
Nam, qu’elas vinham chentadas
334
cá no fundo, no mais quente.
-->
335
Vossa mãe foi-se, ora bem.
336
Sós nos deixou ela assi,
337
quant’eu quero-me ir daqui
338
não diga algum demo alguém.
INÊS PEREIRA
339
E vós que havíeis de fazer,
340
nem ninguém que há de dizer?
341
O galante despejado.
PERO MARQUES
342
Se eu fora já casado
343
doutra arte havia de ser,
344
como homem de bom recado.
INÊS PEREIRA
-->
345
Quam desviado este está.
346
Todos andam por caçar
347
suas damas sem casar
348
e este tomade-o lá.
PERO MARQUES
349
Vossa mãe é lá no muro?
INÊS PEREIRA
350
Minha mãe eu vos seguro
351
que ela venha cá dormir.
PERO MARQUES
352
Pois senhora quero-m’ir
353
antes que venha o escuro.
INÊS PEREIRA
354
E nam cureis mais de vir.
PERO MARQUES
-->
355
Virá cá Lianor Vaz,
356
veremos que lhe dizeis.
INÊS PEREIRA
357
Homem nam aporfieis
358
que nam quero nem me praz.
359
Ide casar a Cascais.
PERO MARQUES
360
Nam vos anojarei mais
361
inda que saiba estalar
362
e prometo nam casar
363
até que vós nam queirais.
-->
364
Estas vos são elas a vós,
365
anda homem a gastar calçado
366
e quando cuida que é aviado
367
escarnefucham de vós.
368
Nam sei se fica lá a pea,
369
pardeos, bô ia eu à aldea.
370
Senhora, cá fica o fato?
INÊS PEREIRA
371
Olhai se o levou o gato.
PERO MARQUES
372
Inda nam tendes candea?
-->
373
Ponho per cajo que alguém
374
vem, como eu vim agora,
375
e vos acha só a tal hora,
376
parece-vos que será bem?
377
Ficai-vos ora com Deos,
378
çarrai a porta sobre vós
379
com vossa candeazinha
380
e sicais sereis vós minha,
381
entonces veremos nós.
INÊS PEREIRA
-->
382
Pessoa conheço eu
383
que levará outro caminho.
384
Casai lá com um vilanzinho
385
mais covarde que um judeu.
386
Se fora outro homem agora
387
e me topara a tal hora,
388
estando assi às escuras,
389
falara-me mil doçuras,
390
ainda que mais nam fora.
Vem a Mãe e diz:
[MÃE]
-->
391
Pero Marques foi-se já?
INÊS PEREIRA
392
Pera que era ele aqui?
MÃE
393
Nam te agrada ele a ti?
INÊS PEREIRA
394
Vá-se muit’ieramá,
395
que sempre disse e direi:
396
mãe, eu me nam casarei
397
senam com homem discreto.
398
E assi vo-lo prometo,
399
ou antes o leixarei.
-->
400
Que seja homem mal feito,
401
feo, pobre, sem feição,
402
como tiver descrição
403
nam lhe quero mais proveito.
404
E saiba tanger viola
405
e coma eu pão e cebola,
406
siquer ũa cantiguinha,
407
discreto, feito em farinha,
408
porque isto me degola.
MÃE
-->
409
Sempre tu hás de bailar
410
e sempre ele há de tanger?
411
Se nam tiveres que comer
412
o tanger te há de fartar.
INÊS PEREIRA
413
Cada louco com sua teima,
414
com ũa borda de boleima
415
e ũa vez d’água fria
416
nam quero mais cada dia.
MÃE
417
Como às vezes isso queima.
-->
418
E que é desses escudeiros?
INÊS PEREIRA
419
Eu falei ontem ali,
420
que passaram por aqui
421
os judeus casamenteiros
422
e hão de vir logo aqui.
Aqui entram os judeus casamenteiros, chamados um Latão e o outro Vidal, e diz Vidal:
[VIDAL]
423
Ou de cá.
INÊS PEREIRA
Quem está lá?
VIDAL
424
Nome del Deu, aqui somos.
LATÃO
425
Nam sabeis quam longe fomos.
VIDAL
426
Corremos a ira má.
-->
427
Este e eu.
LATÃO
Eu e este,
428
pola lama e polo pó,
429
que era pera haver dó,
430
com chuiva, sol e nordeste.
431
Foi a coisa de maneira,
432
tal friúra e tal canseira
433
que trago as tripas maçadas,
434
assi me fadem boas fadas
435
que me saltou caganeira.
-->
436
Pera vossa mercê ver
437
o que nos encomendou.
438
O que nos encomendou
439
será se hoiver de ser.
440
Todo este mundo é fadiga,
441
vós dissestes, filha amiga,
442
que vos buscássemos logo...
VIDAL
443
E logo pusemos fogo.
LATÃO
444
Cal-te.
VIDAL
Nam queres que diga,
445
nam sou eu também do jogo?
LATÃO
-->
446
Nam fui eu também contigo,
447
tu e eu nam somos eu?
448
Tu judeu e eu judeu,
449
nam somos massa dum trigo?
VIDAL
450
Si, somos, juro al Deu.
LATÃO
451
Deixa-me falar.
VIDAL
Já calo.
452
Senhora há já três dias...
LATÃO
453
Falas-lhe tu ou eu falo?
454
Ora dize. O que dizias?
455
Que foste, que fomos, que ias
456
buscá-lo, esgaravatá-lo.
VIDAL
-->
457
Vós, amor, quereis marido
458
discreto e de viola.
LATÃO
459
Esta moça nam é tola,
460
que quer casar por sentido.
VIDAL
461
Judeu, queres-me leixar?
LATÃO
462
Deixo, não quero falar.
VIDAL
463
Buscámo-lo.
LATÃO
Demo foi logo.
464
Crede que o vosso rogo
465
vencera o Tejo e o mar.
-->
466
Eu cuido que falo e calo,
467
calo eu agora ou não?
468
Ou falo se vem à mão?
469
Nam digas que nam te falo.
INÊS PEREIRA
470
Jesu, guarde-me ora Deos,
471
nam falará um de vós?
472
Já queria saber isso.
MÃE
473
Que siso, Inês, que siso
474
tens debaixo desses véus.
INÊS PEREIRA
-->
475
Diz o exemplo da velha:
476
o que nam haveis de comer
477
dexai-o a outrem mexer.
MÃE
478
Eu nam sei quem t’aconselha.
INÊS PEREIRA
479
Enfim, que novas trazeis?
VIDAL
480
O marido que quereis,
481
de viola e dessa sorte,
482
nam no há senam na corte,
483
que cá não no achareis.
-->
484
Falámos a Badajoz,
485
músico discreto, solteiro,
486
este fora o verdadeiro,
487
mas soltou-se-nos da noz.
488
Fomos a Villacastim
489
e falou-nos em latim:
490
vinde cá daqui a ũa hora
491
e trazei-me essa senhora.
INÊS PEREIRA
492
Tudo é nada, enfim.
VIDAL
-->
493
Esperai, aguardai ora.
494
Soubemos dum escudeiro
495
de feição de atafoneiro
496
que virá logo ess’hora.
497
Que fala, e com’ora fala,
498
estrogirá esta sala,
499
e tange, e com’ora tange,
500
alcança quanto abrange,
501
e se preza bem da gala.
Vem o Escudeiro com seu Moço, que lhe traz ũa viola, e diz falando só:
[ESCUDEIRO]
-->
502
Se esta senhora é tal
503
como os judeus ma gabaram
504
certo os anjos a pintaram
505
e nam pode ser i al.
506
Diz que os olhos com que via
507
eram de santa Luzia,
508
cabelos da Madanela.
509
Se ela fosse donzela
510
tudo essoutro passaria.
-->
511
Moça de vila será ela
512
com sinalzinho postiço
513
e sarnosa no toutiço
514
como burra de Castela.
515
Eu assi como chegar
516
cumpre-me bem atentar
517
se é garrida se é honesta,
518
porque o milhor da festa
519
é achar siso e calar.
MÃE
-->
520
Se este escudeiro há de vir
521
e é homem de discrição
522
hás-te de pôr em feição,
523
e falar pouco e nam rir.
524
E mais, Inês, nam muito olhar
525
e muito chão o menear
526
por que te julguem por muda,
527
porque a moça sesuda
528
é ũa perla pera amar.
ESCUDEIRO
-->
529
Olha cá Fernando, eu vou
530
ver a com que hei de casar,
531
visa-te que hás de estar
532
sem barrete onde eu estou.
MOÇO
533
Como a rei, corpo de mi,
534
mui bem vai isso assi.
ESCUDEIRO
535
E se cuspir, pola ventura,
536
põe-lhe o pé e faze mesura.
MOÇO
537
Ainda eu isso nam vi.
ESCUDEIRO
-->
538
E se me vires mintir
539
gabando-me de privado
540
está tu dissimulado
541
ou sai-te lá fora a rir.
542
Isto te aviso daqui,
543
faze-o por amor de mi.
MOÇO
544
Porém, senhor, digo eu
545
que mau calçado é o meu
546
pera estas vistas assi.
ESCUDEIRO
-->
547
Que farei, que o sapateiro
548
nam tem solas nem tem pele?
MOÇO
549
Sapatos me daria ele
550
se me vós désseis dinheiro.
ESCUDEIRO
551
Eu o haverei agora,
552
e mais calças te prometo.
MOÇO
553
Homem que nam tem nem preto
554
casa muito na má hora.
Chega o Escudeiro onde está Inês Pereira e alevantam-se todos e fazem suas mesuras, e diz o Escudeiro:
[ESCUDEIRO]
-->
555
Antes que mais diga agora,
556
Deos vos salve fresca rosa
557
e vos dê por minha esposa,
558
por molher e por senhora.
559
Que bem vejo
560
nesse ar, nesse despejo,
561
mui graciosa donzela,
562
que vós sois minh’alma, aquela
563
que eu busco e que desejo.
-->
564
Obrou bem a natureza
565
em vos dar tal condição,
566
que amais a discrição
567
muito mais que a riqueza.
568
Bem parece
569
que só discrição merece
570
gozar vossa fermosura
571
que é tal que de ventura
572
outra tal nam se acontece.
-->
573
Senhora, eu me contento
574
receber-vos como estais,
575
se vós vos não contentais
576
o vosso contentamento
577
pode falecer, nô mais.
LATÃO
578
Como fala.
VIDAL
579
Mas ela como se cala.
580
Tem atento o ouvido.
LATÃO
581
Este há de ser seu marido
582
segundo a cousa s’abala.
ESCUDEIRO
-->
583
Eu nam tenho mais de meu
584
somente ser comprador
585
do marichal meu senhor
586
e sam escudeiro seu.
587
Sei bem ler
588
e muito bem escrever
589
e bom jogador de bola,
590
e quanto a tanger viola
591
logo me ouvireis tanger.
-->
592
Moço, que estás lá olhando?
MOÇO
593
Que manda vossa mercê?
ESCUDEIRO
594
Que venhas cá.
MOÇO
Pera quê?
ESCUDEIRO
595
Pera fazeres o que mando.
MOÇO
596
Logo vou.
597
O diabo me tomou
598
tirar-me de João Montês
599
por servir um tavanês
600
mor doudo que Deos criou.
ESCUDEIRO
-->
601
Fui despedir um rapaz,
602
por tomar este ladrão,
603
que valia Perpinhão.
604
Moço.
MOÇO
Que vos praz?
ESCUDEIRO
605
A viola.
MOÇO
606
Oh como ficará tola,
607
se nam fosse casar ante
608
c’o mais sáfio bargante
609
que coma pão e cebola.
-->
610
Ei-la aqui bem temperada,
611
nam tendes que temperar.
ESCUDEIRO
612
Faria bem de ta quebrar
613
na cabeça bem migada.
MOÇO
614
E se ela é emprestada
615
quem na havia de pagar?
616
Meu amo, eu quero-m’ir.
ESCUDEIRO
617
E quando queres partir?
MOÇO
618
Antes que venha o Inverno
619
porque vós não dais governo
620
pera vos ninguém servir.
ESCUDEIRO
-->
621
Nam dormes tu que te farte?
MOÇO
622
No chão e o telhado por manta,
623
e çarra-se-m’a garganta
624
com fome.
ESCUDEIRO
Isso tem arte.
MOÇO
625
Vós sempre zombais assi.
ESCUDEIRO
626
Oh que boas vozes tem
627
esta viola aqui.
628
Deixa-me casar a mi,
629
depois eu te farei bem.
MÃE
-->
630
Agora vos digo eu
631
que Inês está no paraíso.
INÊS PEREIRA
632
Que tendes de ver com isso?
633
Todo o mal há de ser meu.
MÃE
634
Quanta doudice.
INÊS PEREIRA
635
Como é seca a velhice.
636
Leixai-me ouvir e folgar
637
que nam me hei de contentar
638
de casar com parvoíce.
-->
639
Pode ser maior riqueza
640
que um homem avisado?
MÃE
641
Muitas vezes, mal pecado,
642
é milhor boa simpreza.
LATÃO
643
Ora ouvi e ouvireis.
644
Escudeiro cantareis
645
algũa boa cantadela,
646
namorai esta donzela,
647
esta cantiga direis:
Canta o Judeu:
-->
648
Canas do amor canas
649
canas do amor
650
polo longo de um rio
651
canaval vi florido
652
canas do amor.
Canta o Escudeiro o romance de Mal me quieren en Castilla, e diz Vidal:
[VIDAL]
-->
653
Latão, já o sono é comigo
654
como oivo cantar guaiado
655
que nam vai esfandegado.
LATÃO
656
Esse é o demo qu’eu digo.
657
Viste cantar dona Sol
658
Pelo mar vai a vela,
659
vela vai polo mar?
VIDAL
-->
660
Filha Inês, assi vivais,
661
que tomeis esse senhor,
662
escudeiro cantador
663
e caçador de pardais,
664
sabedor, rebolvedor,
665
falador, gracejador,
666
afoitado pela mão
667
e sabe de gavião.
668
Tomai-o por meu amor.
-->
669
Podeis topar um rabugento,
670
desmazalado, baboso,
671
descancarrado, brigoso,
672
medroso, carrapatento.
673
Este escudeiro, aosadas,
674
onde se derem pancadas
675
ele as há de levar
676
boas, senam apanhar.
677
Nele tendes boas fadas.
MÃE
-->
678
Quero rir com toda a mágoa
679
destes teus casamenteiros,
680
nunca vi judeus ferreiros
681
aturar tam bem a frágua.
682
Não te é milhor, mal por mal,
683
Inês, um bom oficial
684
que te ganhe nessa praça,
685
que é um escravo de graça
686
e casarás com teu igual?
LATÃO
-->
687
Senhora, perdei cuidado.
688
O que há de ser há de ser
689
e ninguém pode tolher
690
o que está determinado.
VIDAL
691
Assi diz rabi Zarão.
MÃE
692
Inês guar-te de rascão.
693
Escudeiro queres tu?
INÊS PEREIRA
694
Jesu, nome de Jesu,
695
quam fora sois de feição.
-->
696
Já minha mãe adevinha.
697
Houvestes por vaidade
698
casar à vossa vontade,
699
eu quero casar à minha.
MÃE
700
Casa filha muito embora.
ESCUDEIRO
701
Dai-me essa mão, senhora.
INÊS PEREIRA
702
Senhor, de mui boa mente.
ESCUDEIRO
703
Por palavras de presente
704
vos recebo desd’agora.
-->
705
Nome de Deos, assi seja.
706
Eu, Brás da Mata, escudeiro,
707
recebo a vós, Inês Pereira,
708
por molher e por parceira
709
como manda a santa igreja.
INÊS PEREIRA
710
Eu, aqui diante Deos,
711
Inês Pereira, recebo a vós,
712
Brás da Mata, sem demanda,
713
como a santa igreja manda.
LATÃO
714
Juro al Deu, aí somos nós.
OS JUDEUS AMBOS
-->
715
Alça manim, dona o dono há,
716
arrea espeçulá,
717
bento o Deu de Jacob,
718
bento o Deu que a faraó
719
espantou e espantará,
720
bento o Deu de Abraão,
721
benta a terra de Canão,
722
pera bem sejais casados.
VIDAL
723
Dai-nos cá senhos ducados.
MÃE
724
Amenhã vo-los darão.
-->
725
Pois assi é bem será
726
que nam passe isto assi,
727
eu quero chegar ali
728
chamar meus amigos cá
729
e cantarão de terreiro.
ESCUDEIRO
730
Oh quem me fora solteiro.
INÊS PEREIRA
731
Já vos vós arrependeis?
ESCUDEIRO
732
Ó esposa nam faleis
733
que casar é cativeiro.
Aqui vem a Mãe com certas moças e mancebos pera fazerem a festa, e diz ũa delas per nome Luzia:
[LUZIA]
-->
734
Inês, por teu bem te seja.
735
Oh que esposo e que alegria.
INÊS PEREIRA
736
Venhas embora Luzia
737
e cedo te eu assi veja.
MÃE
738
Ora vai tu ali, Inês,
739
e bailareis três por três.
FERNANDO
740
Tu connosco, Luzia, aqui
741
e a desposada ali.
742
Ora vede qual direis.
Cantam todos a cantiga que se segue:
[TODOS]
-->
743
Mal ferida va la garza,
744
enamorada,
745
sola va y gritos daba.
746
A las orillas de un río
747
la garza tenía el nido,
748
ballestero la ha herido
749
en el alma.
750
Sola va y gritos daba.
FERNANDO
-->
751
Ora, senhores honrados,
752
ficai com vossa mercê
753
e nosso senhor vos dê
754
com que vivais descansados.
755
Isto foi assi agora
756
mas melhor será outr’hora,
757
perdoai pelo presente,
758
foi pouco e de boa mente.
759
Com vossa mercê, senhora.
LUZIA
-->
760
Ficai com Deos, desposados,
761
com prazer e com saúde,
762
e sempre ele vos ajude
763
com que sejais bem logrados.
MÃE
764
Ficai com Deos, filha minha,
765
nam virei cá tam asinha.
766
A minha benção hajais,
767
esta casa em que ficais
768
vos dou e vou-me à casinha.
-->
769
Senhor filho e senhor meu,
770
pois que já Inês é vossa,
771
vossa molher e esposa,
772
encomendo-vo-la eu.
773
E pois que dês que nasceu
774
a outrem nam conheceu
775
senam a vós por senhor,
776
que lhe tenhais muito amor,
777
que amado sejais no céu.
Ida a Mãe, fica Inês Pereira e o Escudeiro, e senta-se Inês Pereiraa lavrar e canta esta cantiga:
[INÊS PEREIRA]
-->
778
Si no os hubiera mirado
779
no penara
780
pero tan poco os mirara.
O Escudeiro vendo cantar a Inês Pereira, mui agastado lhe diz:
[ESCUDEIRO]
-->
781
Vós cantais, Inês Pereira,
782
em bodas me andáveis vós?
783
Juro ao corpo de Deos
784
que esta seja a derradeira.
785
Se vos eu vejo cantar
786
eu vos farei assoviar.
INÊS PEREIRA
787
Bofé, senhor meu marido,
788
se vós disso sois servido
789
bem o posso eu escusar.
ESCUDEIRO
-->
790
Mas é bem que o escuseis
791
e outras cousas que não digo.
INÊS PEREIRA
792
Por que bradais vós comigo?
ESCUDEIRO
793
Será bem que vos caleis.
794
E mais, sereis avisada
795
que não me respondais nada
796
em que ponha fogo a tudo,
797
porque o homem sesudo
798
traz a molher sopeada.
-->
799
Vós não haveis de falar
800
com homem nem molher que seja,
801
nem somente ir à igreja
802
nam vos quero eu leixar.
803
Já vos preguei as janelas
804
por que vos não ponhais nelas,
805
estareis aqui encerrada
806
nesta casa, tam fechada
807
como freira d’Oudivelas.
INÊS PEREIRA
-->
808
Que pecado foi o meu?
809
Por que me dais tal prisão?
ESCUDEIRO
810
Vós buscais discrição
811
que culpa vos tenho eu?
812
Pode ser maior aviso,
813
maior discrição e siso,
814
que guardar eu meu tisouro?
815
Nam sois vós, molher, meu ouro?
816
Que mal faço em guardar isso?
-->
817
Vós não haveis de mandar
818
em casa somente um pêlo,
819
se eu disser isto é novelo
820
havei-lo de confirmar.
821
E mais, quando eu vier
822
de fora haveis de tremer
823
e cousa que vós digais
824
nam vos há de valer mais
825
que aquilo que eu quiser.
-->
826
Moço, às partes dalém
827
me vou fazer cavaleiro.
MOÇO
828
Se vós tivésseis dinheiro
829
nam seria senam bem.
ESCUDEIRO
830
Tu hás de ficar aqui,
831
olha, por amor de mi,
832
o que faz tua senhora.
833
Fechá-la-ás sempre de fora.
834
Vós lavrai, ficai per i.
MOÇO
-->
835
Com o que me vós deixais
836
nam comerei eu galinhas.
ESCUDEIRO
837
Vai-te tu por essas vinhas,
838
que diabo queres mais?
MOÇO
839
Olhai, olhai como rima,
840
e depois de ida a vendima?
ESCUDEIRO
841
Apanha desse rabisco.
MOÇO
842
Pesar ora de sam Pisco,
843
convidarei minha prima.
-->
844
E o rabisco acabado
845
ir-m’-ei espojar às eiras.
ESCUDEIRO
846
Vai-te por essas figueiras
847
e farta-te, desmazelado.
MOÇO
848
Assi.
ESCUDEIRO
Pois que cuidavas?
849
E depois virão as favas.
850
Conheces túbaras da terra?
MOÇO
851
I-vos vós embora à guerra
852
que eu vos guardarei oitavas.
Ido o Escudeiro, diz o Moço:
[MOÇO]
-->
853
Senhora, o que ele mandou
854
nam posso menos fazer.
INÊS PEREIRA
855
Pois que te dá de comer
856
faze o que te encomendou.
MOÇO
857
Vós fartai-vos de lavrar,
858
eu me vou desenfadar
859
com essas moças lá fora.
860
Vós perdoai-me, senhora,
861
porque vos hei de fechar.
Aqui fica Inês Pereirasó, fechada, lavrando e cantando esta cantiga:
[INÊS PEREIRA]
-->
862
Quem bem tem e mal escolhe
863
por mal que lhe venha nam s’anoje.
Falado:
864
Renego da discrição,
865
comendo ao demo o aviso,
866
que sempre cuidei que nisso
867
estava a boa condição.
868
Cuidei que fossem cavaleiros,
869
fidalgos e escudeiros,
870
nam cheos de desvarios,
871
e em suas casas macios
872
e na guerra lastimeiros.
-->
873
Vede que cavalaria,
874
vede já que mouros mata
875
quem sua molher maltrata
876
sem lhe dar de paz um dia.
877
E sempre ouvi dizer
878
que homem que isto fizer
879
nunca mata drago em vale
880
nem mouro que chamem Ale,
881
e assi deve de ser.
-->
882
Juro em todo meu sentido
883
que se solteira me vejo,
884
assi como eu desejo,
885
que eu saiba escolher marido,
886
à boa fé, sem mal engano,
887
pacífico todo o ano,
888
que ande a meu mandar.
889
Havia-me eu de vingar
890
deste mal e deste dano.
Entra o Moço com ũa carta de Arzila e diz:
[MOÇO]
-->
891
Esta carta vem dalém,
892
creo que é de meu senhor.
INÊS PEREIRA
893
Mostrai cá, meu guarda mor,
894
veremos o que aí vem.
Lê o sobrescrito:
895
À mui prezada senhora
896
Inês Pereira da Grã,
897
a senhora minha irmã.
898
De meu irmão. Venha embora.
MOÇO
-->
899
Vosso irmão está em Arzila,
900
apostarei que i vem
901
nova de meu senhor também.
INÊS PEREIRA
902
Já ele partiu de Tavila?
MOÇO
903
Há três meses que é passado.
INÊS PEREIRA
904
Aqui virá logo recado
905
se lhe vai bem ou que faz.
MOÇO
906
Bem pequena é a carta assaz.
INÊS PEREIRA
907
Carta de homem avisado.
Lê Inês Pereira a carta, a qual diz:
-->
908
Muito honrada irmã,
909
esforçai o coração
910
e tomai por devação
911
de querer o que Deos quer.
912
E isto que quer dizer?
Prossegue:
-->
913
E nam vos maravilheis
914
de cousa que o mundo faça,
915
que sempre nos embaraça
916
com cousas. Sabei que indo
917
vosso marido fogindo
918
da batalha pera a vila,
919
a mea légua de Arzila
920
o matou um mouro pastor.
MOÇO
921
Oh meu amo e meu senhor.
INÊS PEREIRA
-->
922
Dai-me vós cá essa chave
923
e i buscar vossa vida.
MOÇO
924
Oh que triste despedida.
INÊS PEREIRA
925
Mas que nova tam suave.
926
Desatado é o nó.
927
Se eu por ele ponho dó
928
o diabo m’arrebente.
929
Pera mi era valente
930
e matou-o um mouro só.
-->
931
Guardar de cavaleirão,
932
barbudo, repetenado,
933
que em figura d’avisado
934
é malino e sotrancão.
935
Agora quero tomar,
936
pera boa vida gozar,
937
um muito manso marido.
938
Nam no quero já sabido
939
pois tam caro há de custar.
Aqui vem Lianor Vaz e finge Inês Pereira estar chorando, e diz Lianor Vaz:
[LIANOR VAZ]
-->
940
Como estais, Inês Pereira?
INÊS PEREIRA
941
Muito triste, Lianor Vaz.
LIANOR VAZ
942
Que fareis ao que Deos faz?
INÊS PEREIRA
943
Casei por minha canseira.
LIANOR VAZ
944
Se ficastes prenhe basta.
INÊS PEREIRA
945
Bem quisera eu dele casta
946
mas nam quis minha ventura.
LIANOR VAZ
947
Filha, nam tomeis tristura
948
que a morte a todos gasta.
-->
949
O que havedes de fazer?
950
Casade-vos, filha minha.
INÊS PEREIRA
951
Jesu, Jesu, tam asinha
952
isso me haveis de dizer?
953
Quem perdeu um tal marido,
954
tam discreto e tam sabido
955
e tam amigo de minha vida...
LIANOR VAZ
956
Dai isso por esquecido
957
e buscai outra guarida.
-->
958
Pero Marques tem que herdou
959
fazenda de mil cruzados,
960
mas vós quereis avisados.
INÊS PEREIRA
961
Nam, já esse tempo passou.
962
Sobre quantos mestres são
963
a experiência dá lição.
LIANOR VAZ
964
Pois tendes esse saber,
965
querei ora quem vos quer,
966
dai ò demo a openião.
Vai Lianor Vaz por Pero Marques e fica Inês Pereira só, dizendo:
[INÊS PEREIRA]
-->
967
Andar. Pero Marques seja.
968
Quero tomar por esposo
969
quem se tenha por ditoso
970
de cada vez que me veja.
971
Por usar de siso mero
972
asno que me leve quero
973
e nam cavalo folão,
974
antes lebre que leão,
975
antes lavrador que Nero.
Vem Lianor Vaz com Pero Marques, e diz Lianor Vaz:
[LIANOR VAZ]
-->
976
Nô mais cerimónias agora,
977
abraçai Inês Pereira
978
por molher e por parceira.
PERO MARQUES
979
Há homem empacho má hora.
980
Quanta a dizer abraçar,
981
depois que a eu usar
982
entonces poderá ser.
INÊS PEREIRA
983
Nam lhe quero mais saber,
984
já me quero contentar.
LIANOR VAZ
-->
985
Ora dai-me essa mão cá.
986
Sabeis as palavras, si?
PERO MARQUES
987
Ensinaram-mas a mi
988
porém esquecem-me já.
LIANOR VAZ
989
Ora dizei como digo.
PERO MARQUES
990
E tendes vós aqui trigo
991
pera nos jeitar por cima?
LIANOR VAZ
992
Inda é cedo, como rima.
PERO MARQUES
993
Soma vós casais comigo
-->
994
e eu convosco. Pardelhas.
995
nam compre aqui mais falar,
996
e quando vos eu negar
997
que me cortem as orelhas.
LIANOR VAZ
998
Vou-me, ficai-vos embora.
Vai-se e diz Inês Pereira:
[INÊS PEREIRA]
-->
999
Marido, sairei eu agora
1000
que há muito que nam saí?
PERO MARQUES
1001
Si, Molher, saí vós i
1002
que eu me irei para fora.
INÊS PEREIRA
-->
1003
Marido, nam digo disso.
PERO MARQUES
1004
Pois que dizeis vós, molher?
INÊS PEREIRA
1005
Ir folgar onde eu quiser.
PERO MARQUES
1006
I onde quiserdes ir,
1007
vinde quando quiserdes vir,
1008
estai quando quiserdes estar.
1009
Com que podeis vós folgar
1010
que eu nam deva consentir?
Vem um Ermitão a pedir esmola, que em moço lhe quis bem, e diz:
[ERMITÃO]
-->
1011
Señores, por caridad,
1012
dad limosna al dolorido
1013
ermitaño de Cupido
1014
para siempre en soledad,
1015
pues su siervo soy nascido.
1016
Por exemplo
1017
me metí en su santo templo,
1018
ermitaño en pobre ermita
1019
fabricada de infinita
1020
tristeza en quien contemplo,
-->
1021
adonde rezo mis horas
1022
y mis días y mis años,
1023
mis servicios y mis daños,
1024
donde tú, mi alma, lloras
1025
el fin de tantos engaños.
1026
Y acabando
1027
las horas todas, llorando,
1028
tomo las cuentas una a una
1029
con que tomo a la fortuna
1030
cuenta del mal en que ando
1031
sin esperar paga alguna.
-->
1032
Y ansí, sin esperanza
1033
de cobrar lo merescido,
1034
sirvo allí mis días Copido,
1035
con tanto amor sin mudanza
1036
que soy su santo escogido.
1037
Oh señores,
1038
los que bien os va d’amores
1039
dad limosna al sin holgura
1040
que habita en sierra escura,
1041
uno de los amadores
1042
que tuvo menos ventura.
-->
1043
Yo rogaré al dios de mí,
1044
en que mis sentidos traigo,
1045
que recibáis mejor pago
1046
de lo que yo recebí
1047
en esta vida que hago.
1048
Y rezaré
1049
con gran devoción y fe
1050
que Dios os libre d’engaño,
1051
que eso me hizo ermitaño
1052
y para siempre seré
1053
pues para siempre es mi daño.
INÊS PEREIRA
-->
1054
Olhai cá, marido amigo,
1055
eu tenho por devação
1056
dar esmola a um ermitão,
1057
e nam vades vós comigo.
PERO MARQUES
1058
I-vos embora, molher,
1059
nam tenho lá que fazer.
INÊS PEREIRA
1060
Tomai a esmola padre lá,
1061
pois que Deos vos trouxe aqui.
ERMITÃO
1062
Sea por amor de mí
1063
vuestra buena caridad.
-->
1064
Deo gracias mi señora.
1065
La limosna mata el pecado
1066
pero vos tenéis cuidado
1067
de matarme cada hora.
1068
Debéis saber,
1069
para merced me hacer,
1070
que por vos soy ermitaño,
1071
y aún más os desengaño
1072
que esperanzas de os ver
1073
me hicieron vestir tal paño.
INÊS PEREIRA
-->
1074
Jesu, Jesu, manas minhas,
1075
sois vós aquele que um dia
1076
em casa de minha tia
1077
me mandastes camarinhas.
1078
E quando aprendia a lavrar
1079
mandáveis-me tanta cousinha,
1080
eu era ainda Inesinha
1081
nam vos queria falar.
ERMITÃO
-->
1082
Señora, téngoos servido
1083
y vos a mí despreciado.
1084
Haced que el tiempo pasado
1085
no se cuente por perdido.
INÊS PEREIRA
1086
Padre, mui bem vos entendo,
1087
ò demo vos encomendo
1088
que bem sabeis vós pedir.
1089
Eu determino lá d´ir
1090
à ermida, Deos querendo.
ERMITÃO
-->
1091
Y cuándo?
INÊS PEREIRA
I-vos, meu santo,
1092
que eu irei um dia destes,
1093
muito cedo, muito prestes.
ERMITÃO
1094
Señora, yo me voy en tanto.
INÊS PEREIRA
1095
Em tudo é boa a concrusão.
1096
Marido, aquele ermitão
1097
é um anjinho de Deos.
PERO MARQUES
1098
Corregê vós esses véus
1099
e ponde-vos em feição.
INÊS PEREIRA
-->
1100
Sabeis vós o que eu queria?
PERO MARQUES
1101
Que quereis minha molher?
INÊS PEREIRA
1102
Que houvésseis por prazer
1103
de irmos lá em romaria.
PERO MARQUES
-->
1104
Seja logo sem deter.
INÊS PEREIRA
1105
Este caminho é comprido,
1106
contai ũa estória, marido.
PERO MARQUES
1107
Bofá que me praz, molher.
INÊS PEREIRA
1108
Passemos primeiro o rio.
1109
Descalçai-vos.
PERO MARQUES
E pois como?
INÊS PEREIRA
1110
E levar-me-eis ao ombro,
1111
não me corte a madre o frio.
Põe-se Inês Pereira às costas do marido e diz:
-->
1112
Marido, assi me levade.
PERO MARQUES
1113
Ides à vossa vontade?
INÊS PEREIRA
1114
Como estar no paraíso.
PERO MARQUES
1115
Muito folgo eu com isso.
INÊS PEREIRA
1116
Esperade, ora esperade,
1117
olhai que lousas aquelas
1118
pera poer as talhas nelas.
PERO MARQUES
1119
Quereis que as leve?
INÊS PEREIRA
Si.
1120
Ũa aqui e outra aqui.
1121
Oh como folgo com elas.
-->
1122
Cantemos marido, quereis?
PERO MARQUES
1123
Eu nam saberei entoar.
INÊS PEREIRA
1124
Pois eu hei só de cantar
1125
e vós me respondereis
1126
cada vez que eu acabar:
1127
pois assi se fazem as cousas.
Canta Inês Pereira:
-->
1128
Marido cuco me levades
1129
e mais duas lousas.
PERO MARQUES
1130
Pois assi se fazem as cousas.
INÊS PEREIRA
-->
1131
Bem sabedes vós marido
1132
quanto vos amo,
1133
sempre fostes percebido
1134
pera gamo.
1135
Carregado ides noss’amo
1136
com duas lousas.
PERO MARQUES
1137
Pois assi se fazem as cousas.
INÊS PEREIRA
-->
1138
Bem sabedes vós marido
1139
quanto vos quero,
1140
sempre fostes percebido
1141
pera cervo.
1142
Agora vos tomou o demo
1143
com duas lousas.
PERO MARQUES
1144
Pois assi se fazem as cousas.
E assi se vão e se acaba o dito auto.
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