Anónimo

Auto dos Sátiros





Autoría: Probable
Texto utilizado para esta edición digital:
Auto dos Sátiros. [on-line] En: Camões, José (dir.) Teatro de autores portugueses do Séc. XVI. Base de dados textual Lisboa: Centro de Estudos de Teatro, Universidade de Lisboa. [15 janeiro 2023] Disponível em: http://www.cet-e-quinhentos.com/
Codificação de texto digital para EMOTHE:
  • Camões, José

Nota sobre esta ediçao digital

Esta publicação faz parte do projeto de I+D+i «Teatro español y europeo de los siglos XVI y XVII: patrimonio y bases de datos», referência PID2019-104045GB-C54 (acrónimo EMOTHE), financiado pelo MICIN/AEI/10.13039/501100011033.



Auto novamente feito em que entram as figuras seguintes: um Mordomo com um seu moço Vicente, dous escudeiros, Pero d’Abreu e Luís de Sá, e a Ventura com três Sátiros que representa a obra, Flerisel, filho do Príncipe d’Áustria, com um seu paje Melibeo, um Porteiro, Ulinea, dama, com um seu Amo, um Pomareiro por nome Brás Flores, Gil ratinho, Belisa e Floriana, moças, Polinardo e Costantino, rascões, um Bobo castelhano, o Príncipe d’ Áustria, pai de Flerisel, e o Conde, pai de Ulinea.
E entra logo o Mordomo com o Moço, e agastado de ver tanta gente em sua casa, que é donde se há de fazer o auto, brada com ele e diz:

-->
1
Tanta gente se soporta?
2
Dize, filho da cadela,
3
por onde entrou?

MOÇO
Pela porta.

MORDOMO
4
Cuidei que pela janela.

MOÇO
5
Não, essa estava eu guardando.

MORDOMO
6
Olhai que exelente graça.
7
Que fazias nela estando?

MOÇO
8
Senhor, estava-os contando
9
por nenhum ficar em casa.

MORDOMO
-->
10
Não há i mais discrição!
11
Acho-te discreto em cabo.
12
Logo saberás quantos são.

MOÇO
13
Não há mister mais rezão,
14
como onde a bogia tem o rabo.

MORDOMO
15
Ora este erro vai na vela
16
com a casa certamente
17
pois a tal rapaz dou trela.
18
Por que está aqui tanta gente?

MOÇO
19
Porque toda cabe nela.
-->
20
Veja, senhor, quanta é,
21
não faça tamanho espanto
22
corra-a de canto a canto.

MORDOMO
23
Perdoe-me vossa mercê,
24
não lho dizia por tanto.
25
Nem isso não vem nem vai.
26
Tornai em vós que estais morto,
27
abri as portas, chamai
28
vossa mãe e vosso pai
29
que tragam vosso avô torto.
-->
30
Venham quantos há na terra,
31
entrem também abegões,
32
tragam o gado, os lizirões.

MOÇO
33
Senhor, pera menos guerra
34
devia escusar rezões
35
e o que há pera aviar,
36
já que eu fazê-lo nam posso,
37
devia de se concertar.

MORDOMO
38
Pois mandai-me, que sam vosso,
39
não haja que arrecear.
-->
40
Já que sois meu superior,
41
eu vosso mais que cativo.

MOÇO
42
Eu sou esse servidor,
43
porém eu serei senhor
44
ainda algũa hora se eu vivo,
45
mandar-m’-eis mais mansamente
46
e com primores mais cautos.

MORDOMO
47
Que hei de fazer, dom Vicente?

MOÇO
48
Quê? Arrumar essa gente
49
que há casa para mil autos.

MORDOMO
-->
50
Ora, arrumai-vos, senhores,
51
que o manda o senhor meu moço.

MOÇO
52
Heis de remoer esse osso,
53
suar um par de suores,
54
não levar o auto em sosso.

MORDOMO
55
Quem ser mordomo deseja
56
por que saiba o mal que é
57
praza a Deos que inda o seja.

MOÇO
58
Oh, senhor, que esta sobeja,
59
sente-se vossa mercê.

MORDOMO
-->
60
Digo, senhor, que se faça,
61
já que por vosso me vendo.

MOÇO
62
Quer que lhe diga o que entendo?
63
Faça-se o auto na praça
64
e nam no estará temendo.

MORDOMO
65
Isso está assi santamente.
66
Zombais de mi, está bem.

MOÇO
67
Queria, pelo ver contente,
68
que se saísse esta gente
69
e nam ficasse ninguém.

MORDOMO
-->
70
Essa é mui viva rezão,
71
tendes-m’a corola já morta,
72
não sejais tam cortesão.
73
Vê quem bate àquela porta,
74
anda depressa, vilão.

MOÇO
75
Ora, passo, batedor.
76
Ou é privado ou sandeu.

PERO D’ABREU
77
Dizei a vosso senhor
78
que está aqui Pero d’Abreu
79
e outro seu servidor.

MORDOMO
-->
80
Abre depressa rapaz
81
que muito bem sei quem é.
82
Ora entre vossa mercê.

PERO D’ABREU
83
As do senhor, que se faz
84
mordomo na obra e na fé.

LUÍS DE SÁ
85
Quem há de tomar coroa
86
não há d’andar pela rama,
87
como de vós não se soa.

MORDOMO
88
Dond’é a vinda?

PERO D’ABREU
De Lisboa,
89
à festa de vossa fama.

MORDOMO
-->
90
Muito bom está o zombar.
91
A minha festa é trabalho,
92
só disto pode soar.

LUÍS DE SÁ
93
O que se não pode escusar
94
sofra-se sem dar atalho.

MOÇO
95
O autor está aviado,
96
diz se poderá entrar.

MORDOMO
97
Isso é ponto delicado.
98
Dize que se está nesse estado
99
que bem pode começar.
-->
100
Alto, senhores, silêncio,
101
nam haja nenhum rumor.

PERO D’ABREU
102
Quem é deste auto autor?

MORDOMO
103
É comédia de Terêncio,
104
cousa de muito primor.

Entra a Ventura vestida a modo de ninfa a representar o auto com três Sátiros presos com três cadeas, e vem cantando o que se segue.

SÁTIROS
-->
105
Quem com tão baixa Ventura
106
vem preso de sua estrela
107
que bem pode esperar dela?
108
Este tormento crescido
109
nunca o tal teve ninguém,
110
nam estima pouco o bem
111
quem o mal tem conhecido.
112
Já que esta nos tem vencido
113
e presos de sua estrela
114
que bem nos pode vir dela?

Fala a Ventura:

-->
115
Cessai, Sátiros, que cantais
116
queixosos do mal que dura.
117
Dizei, por que vos queixais
118
vindo presos da Ventura,
119
por que mais mal não façais?
120
Pagais o merecimento
121
dessa vontade danosa
122
com mui piqueno tormento,
123
agrestes no entendimento
124
da condição virtuosa.
-->
125
Mas por que hajais por segura
126
esta comprida prisão
127
eu sam a vossa Ventura,
128
se vos for ingrata e dura
129
sabei que tenho rezão.
130
Se vos fizer isto dano
131
a vosso brutal engenho
132
sois tão cobertos d’engano
133
que é forçado desengano
134
dizer-vos eu a que venho.
-->
135
Mas pois não há de praguentos
136
quem seguro se defenda,
137
limai os entendimentos,
138
ouvi esta obra atentos.
139
Pragueje quem não entenda
140
que a vós, que sois os roazes
141
do bem que está conhecido,
142
todo o danar é devido,
143
porém nos que são capazes
144
o saber é ser sofrido.
-->
145
Sois exemplo de maldade,
146
do bem perdeis a memória.
147
Mas em quem busco eu bondade?
148
Praguentos falar verdade
149
não o diz nenhũa história.
150
E só isto me contenta
151
como já disse outra vez,
152
se eu a nécios for isenta
153
a obra que se representa
154
pera os discretos se fez.
-->
155
Mas em os casos d’amor
156
só a Ventura é terceira,
157
quero arredar o temor
158
neste em cujo favor
159
eu hei de ser a primeira.
160
Achar-me quero presente
161
pera o que me mais deseja.
162
Sátiros, daquele lugar potente
163
a quem eu fizer contente
164
veremos sem que nos veja.

Vai-se assentar num assento que pera ela estará feito, cantando os Sátiros, e assentada falam os escudeiros:

LUÍS DE SÁ
-->
165
Eu nunca vi tal entrada
166
nem representar tão galante.

PERO D’ABREU
167
Que prática tam delicada
168
e tam nova e desusada.

MORDOMO
169
Mas como vem elegante.

LUÍS DE SÁ
170
Este autor será lido
171
e mais muito bom latino.

PERO D’ABREU
172
O estilo está divino,
173
é mui discreto e polido,
174
que eu nam perdi dele o tino.

Entra Flerisel com Melibeo e finge chegar aos aposentos do Conde, e diz:

-->
175
El fausto y recibimiento
176
del palacio y el asiento
177
todo es de mucho primor.

MELIBEO
178
No lo he visto mejor
179
ni de mejor fundamiento.

FLERISEL
180
Mirad qué lindo portal,
181
qué labrada pedrería,
182
es la obra toda igual.

MELIBEO
183
No hay en todo Portogal
184
otro de más ofanía.

FLERISEL
-->
185
Qué majestad, qué presencia
186
tiene el trono del terrero.
187
Melibeo.

MELIBEO
188
Qué manda su exelencia?

FLERISEL
189
Que vayas pedir licencia
190
para lo más al Portero.

MELIBEO
191
Que me place de lo hacer
192
y la repuesta traer.
193
Sois vos, señor, el Portero?

PORTEIRO
194
Yo si sou.

MELIBEO
195
Pues un hidalgo extranjero
196
quiere el palacio ver.
-->
197
Demándaos por mí licencia.

PORTEIRO
198
É frumengo ou ‘taliano?

MELIBEO
199
No es sino castellano.

PORTEIRO
200
Pues entre su revelencia
201
que yo le daré la mano.

MELIBEO
202
Ya, señor, puede entrar.

FLERISEL
203
Señor, beso vuestras manos
204
por la merced singular.

PORTEIRO
205
As suas dos castellanos.
206
Quer los palacios mirar?

FLERISEL
-->
207
Sí, los palacios ver quiero,
208
porque su fama es tal
209
que de la obra es igual
210
y sin vellos no espero
211
partirme de Portogal.

PORTEIRO
212
Digo, senhor, que m’apraz.
213
E em Castela nam se faz
214
esta cousa assi tam forte?

FLERISEL
215
No es Castilla capaz
216
de aposientos desta suerte.

PORTEIRO
-->
217
Que lhe paresce esta casa?

FLERISEL
218
Es muy linda.

PORTEIRO
219
Que é?

FLERISEL
Es muy linda.

PORTEIRO
220
Pois não vistes nada ainda.
221
Ora olhai destoutra a graça.
222
Que vos parece, é relinda?

FLERISEL
223
Mejor es, por vida mía.

PORTEIRO
224
Vem a senhora Ulinea.

FLERISEL
225
Es hija de su señoría?

PORTEIRO
226
Si.

FLERISEL
227
Ser mayor señor debía
228
quien tal hija señorea.

Entra Ulinea com o Amo e Pomareiro, e diz:

-->
229
Oh que singular cuidado
230
tendes das portas, Porteiro.
231
Isto é o encomendado?
232
Quem é o que entrou no vedado?

PORTEIRO
233
É, senhora, um estrangeiro
234
que estes paços quis ver
235
depois de lh’eu dar licença.

ULINEA
236
Passe esta por assi ser,
237
mas se outra acontescer
238
já tenho dada a sentença.
-->
239
Nem vos aconteça mais
240
nenhũa cousa como esta.

AMO
241
Ah, senhora, que é ũa besta.

PORTEIRO
242
Bem assi me desonrais?

AMO
243
Falo bem.

PORTEIRO
Não falais.

POMAREIRO
244
Paz vobis seja na festa.

ULINEA
245
Ora nam haja mais dano,
246
cesse isto, nam venha a mal.
247
Que homem sois?

FLERISEL
Castellano
248
que vine a ver Portogal.

ULINEA
249
Bem, se puder ver sem dano.

FLERISEL
-->
250
Sin daño no puede ser
251
la pena que ya resisto.

ULINEA
252
Sabeis por que digo isto?
253
Porque o que é pouco de ver
254
esquece depois de visto.

FLERISEL
255
Es verdad, mas el reposo
256
no quita el trabajo dél.

ULINEA
257
Não é Portugal fragoso.

FLERISEL
258
Mas hállole tan amoroso
259
que lo tengo por cruel.

ULINEA
-->
260
Sereis ao trabalho usado
261
pois com descanso vos pesa,
262
está isto bem situado.

FLERISEL
263
Alabar tan rico estado
264
será dañar su grandeza.

POMAREIRO
265
Só a ver as terras de cá
266
vem os castelões de Castela.
267
Ouciosa gente há lá.
268
Ou castelão, vistes já
269
a cidade d’Agruela?

FLERISEL
-->
270
No, que su nombre es tan sordo
271
que debe ser cosa poca.

POMAREIRO
272
Já veríeis Monte Gordo?

FLERISEL
273
Tampoco.

PORTEIRO
Olhai o acordo,
274
inda nam vistes a Forca?
275
Pois não vistes nemigalha,
276
nem o que é para ver mais.

POMAREIRO
277
Nam veríeis os Cadafais?

FLERISEL
278
No, que su nombre se calla.

PORTEIRO
279
Oulá, ou, que não é calha,
280
atentai como falais.

ULINEA
-->
281
Vou-me ao jardim agora.
282
Porteiro, despejai breve.
283
Estrangeiro, ficai embora.

FLERISEL
284
Plega a Dios, alta señora,
285
que se os dé lo que se os debe.

PORTEIRO
286
Castelão, fostes ditoso
287
em topardes tal entrada.

FLERISEL
288
Nadie fue tan venturoso,
289
pues se guardó el reposo
290
para el fin de la jornada.

PORTEIRO
-->
291
Pois a senhora Ulinea
292
é já ida, quereis ver
293
tudo o que há para correr?

FLERISEL
294
Qué puedo más ver que vea
295
que bien pueda parescer?
296
Todo es poco a lo que vengo
297
según lo que amor ordena.
298
Entré libre y estoy en cadena,
299
basta lo que visto tengo
300
para recelar mi pena.
-->
301
Por eso quedáos a Dios,
302
no estoy para más agora.

PORTEIRO
303
Castelãos, andar embora,
304
pois vos desarmais de nós
305
não entrareis cá outra hora.

Vão-se e falam os escudeiros.

PERO D’ABREU
-->
306
Inda me não descontenta
307
toda esta obra até qui.

LUÍS DE SÁ
308
Senhor, nem tão-pouco a mim.

MORDOMO
309
O que se bem representa
310
traz mesmo o gosto de si,
311
que no trovar com primor
312
acho-lhe pouca bondade.

PERO D’ABREU
313
Quereis que vos diga, senhor?
314
Os d’Alhandra e o autor
315
não vos fazem a vontade.

MORDOMO
-->
316
Zombarias verdadeiras
317
trazem muito mau caminho.

LUÍS DE SÁ
318
Sabeis que eu adevinho?
319
Que hão de vir as Cachoeiras
320
rapar-vos o pilourinho.

MORDOMO
321
Será cousa graciosa,
322
sem ele nos ficaremos.

PERO D’ABREU
323
Nam será por culpa nossa.

MORDOMO
324
Ora, senhor, não zombemos.
325
Ouçamos esta fermosa.

Entra Ulinea no jardim com o Amo e o Pomareiro, e diz o Pomareiro:

-->
326
Per cá, senhora, per cá
327
digo que melhor será
328
que vá o esguicho à áugua,
329
porque por lá será mágoa
330
o que se esperdiçará.

ULINEA
331
Assi que melhor vos parece
332
que deve d’ir por aqui.

POMAREIRO
333
É danar todo o jardim,
334
porque o rosal que cresce
335
nam pode ficar ali.

ULINEA
-->
336
Dais-lhe muito bom sentido,
337
mas por cá vinha o atalho.

POMAREIRO
338
Em que o caminho é comprido
339
far-se-á sem muito trabalho.

AMO
340
Não, está bem entendido
341
e nam há que duvidar.
342
Brás Flores, não dizeis nada?

POMAREIRO
343
Porquê?

AMO
344
Porque tão longa jornada
345
quando água lá chegar
346
já deve chegar cansada.
-->
347
Então, porque vai a pé,
348
será mui grande entervalo
349
subir pera onde ela é.

POMAREIRO
350
Tal parvoíce se crê?
351
Há d’ir a água a cavalo?
352
De rezão tam manifesta
353
tira-se muito primor
354
que dissera mais ũa besta.

AMO
355
Eu besta?

POMAREIRO
Vós, doutor.

AMO
356
Eu doutor?

POMAREIRO
Não, senão besta.

ULINEA
-->
357
Ora, sus, nam haja mais,
358
escusemos as paixões.

AMO
359
Senhora, vós me desonrais.

ULINEA
360
Eu, em quê?

AMO
Porque onde estais
361
nam hão de falar vilões.

POMAREIRO
362
Amo, vós a mim vilão?

AMO
363
Eu a vós e mais por mal,
364
vilão roim, bestial.

POMAREIRO
365
Andai cá fora, capuzão,
366
veremos o que vos val.

ULINEA
-->
367
Nam basta pedir-vos eu
368
que nam pelejeis agora?

AMO
369
Jesu, sobeja, senhora.

POMAREIRO
370
Ora haver medo, judeu,
371
nam mo negareis cá fora.

ULINEA
372
Fazei vós o que vos digo,
373
palavras são escusadas.

AMO
374
Senhora, eu sam seu amigo.

POMAREIRO
375
Pois sabeis que era o perigo?
376
Duas cargas de pancadas.

ULINEA
-->
377
Ora sus, falemos manso.
378
Está isto mal barrido.
379
Pomareiro, onde trazeis o sentido?

POMAREIRO
380
A culpa é de Gil Descanso,
381
mandar-lho é tempo perdido,
382
que não sei como o não faz
383
que a cada passo lho mando.
384
Jesu, que roim rapaz.
385
Gil Descanso.

GIL
Praz.

POMAREIRO
386
Qués vir cá?

GIL
Estou almorçando.
-->
387
Mas eis-me lá vou correndo
388
a ver o que me mandais.

POMAREIRO
389
Ratinho, por que folgais?
390
Nam vos deixei eu barrendo?

GIL
391
Si.

POMAREIRO
Por que estas folhas deixais?

GIL
392
Pois o vento tem a culpa
393
que buliu c’o arvoredo.

POMAREIRO
394
Ah, ratinho.

GIL
Estai quedo.

ULINEA
395
Não lhe deis, que deu desculpa,
396
basta que vos houve medo.

POMAREIRO
-->
397
Gil, vai catar a bassoura,
398
barrerás isto ao redor.

ULINEA
399
Pomareiro.

POMAREIRO
Senhora.

ULINEA
400
Sabeis que cousa é amor?

POMAREIRO
401
O meu coração se doura
402
d’entender nesse primor.

ULINEA
403
Assi pois, por vida vossa,
404
dizei-mo, que nam no sei.

POMAREIRO
405
Senhora eu lho direi:
406
o amor é cousa fermosa,
407
um ser perfeito de rei.
-->
408
Tem estas costelações
409
o amor, em seus meneos
410
baixa as altas presunções
411
e aos baixos corações
412
vai-os encher de receos.
413
A nenhum homem humano
414
senhor é que não se esconde,
415
é piadoso e desumano,
416
porém, ao fazer do dano,
417
entra, mas não sei por donde.
-->
418
Dizem que é o amor possante
419
de grandeza poderoso.

AMO
420
Será como um alifante.

POMAREIRO
421
Isso, tirai-vos diante,
422
pera vós é perigoso.

ULINEA
423
Isto é cousa soberana,
424
nem sei como possa ser.

POMAREIRO
425
A culpa é de Floriana,
426
que mo deu a conhecer.

ULINEA
-->
427
Sem licença, namorado
428
andais da minha donzela?

POMAREIRO
429
Muito há que esperdiçado
430
ando, quasi enfeitiçado,
431
d’amor perdido por ela.

ULINEA
432
Não lhe quereis bem de siso,
433
segundo agora em vós vejo.

POMAREIRO
434
Ah, que a moça é pera isso.

AMO
435
Senhora, é um vilão narciso
436
da selva de seu desejo.

ULINEA
-->
437
Pesa-me muito, Brás Flores,
438
por amor de vós agora
439
lançar Floriana fora.

POMAREIRO
440
Não vivo sem meus amores,
441
se é tal verdade senhora.

ULINEA
442
Ontem a dei a seu pai
443
e nam a quis pera mim
444
porque a tive por roim.

POMAREIRO
445
Ora, senhora, mandai
446
ter cargo desse jardim
-->
447
porque eu vou desesperado,
448
perdidas as esperanças
449
de me ver remediado.

FLORIANA
450
Brás Flores, tão descansado
451
vos fazem minhas lembranças?

POMAREIRO
452
Anjinhas venhais embora,
453
que em que foi zombaria
454
cá de sua senhoria
455
não mo parece inda agora
456
pela dor que entam sentia.

BELISA
-->
457
Que zombaria foi esta
458
que lhe deu tanto prazer?
459
Não seria má de ver.

ULINEA
460
Tive a mais honrada festa
461
que nunca cuidei de ter.
462
Perdido por Floriana
463
anda Brás Flores danado.

POMAREIRO
464
Senhora, sam namorado.

AMO
465
Certo não sei quem engana
466
este Cupido barbado.

FLORIANA
-->
467
Já, senhora, há mil anos
468
que estes amores confessa.

AMO
469
Não lhe metais em cabeça
470
que se lança mão d’enganos,
471
far-lh’-eis com que endoudeça.

POMAREIRO
472
Quem vos mete adevinhar,
473
Amo, que pode isso ser?
474
Que vos dá d’endoudecer?

AMO
475
Porque vos hei de curar
476
quando isso acontescer.

ULINEA
-->
477
Como o amor é delicado
478
que a ninguém dá desengano.

FLORIANA
479
Que homem era o castelhano?

ULINEA
480
Pareceu-me homem honrado
481
que isto tem quem não faz dano.

BELISA
482
Por nenhum preço deixara
483
podê-lo ver bem de perto.
484
Tinha em seu falar concerto?

ULINEA
485
Muito gentil homem era,
486
além de muito discreto.

FLORIANA
-->
487
Gabou-o muito o Porteiro,
488
cuidei que o nam entendia.

BELISA
489
Basta, a vossa senhoria
490
contentou-lhe o estrangeiro?

ULINEA
491
Certo muito em demasia.

POMAREIRO
492
Nunca o eu pude entender
493
nem me pôde contentar.

AMO
494
Dai-lhe ò demo o palrar.

FLORIANA
495
Senhora, quando quiser
496
poderá ir a jantar.

ULINEA
-->
497
Vamo-nos já que é tarde,
498
depois virei ao jardim.
499
Pomareiro, por amor de mim
500
que pera entam não se guarde
501
varrerem isto daqui.

POMAREIRO
502
Logo se fará, senhora,
503
que eis lá o ratinho vem.
504
Gil, trazes tu a vassoura?

GIL
505
Si, trago.

POMAREIRO
Pois logo ess’hora
506
barre tudo isto bem.

Vão-se e fica o ratinho só, e depois de cantar diz:

-->
507
Gram descanso o que canta
508
sente no que quer fazer.
509
Eu sempre ouvi dizer
510
que as fadas más espanta
511
o cantar e o tanger.
512
Quero varrer estas flores
513
que caem do arvoredo.
514
Vejo este lugar tam ledo
515
que estou em tomar amores
516
mas, porém, tenho-lhe medo.
-->
517
Porque me dizem que dão
518
penas e dores a molhos,
519
deixo-os eu para quem são
520
pois pagam com o coração
521
a culpa que tem os olhos.
522
Recolhe-te, Gil amigo,
523
não te metas em tal pego,
524
vai jantar o teu contigo
525
e o amor seja enemigo
526
de quem o vê sendo cego.

Vai-se e falam os escudeiros:

PERO D’ABREU
-->
527
Eu nam sei se direis mal
528
daquelas trovas, senhor.

MORDOMO
529
Não, que aquelas tem primor.

LUÍS DE SÁ
530
Vai a obra até aqui tal
531
que nam pode ser milhor.

PERO D’ABREU
532
Senhor, tereis por ofensa
533
se tornarmos ao passado?

MORDOMO
534
Eu sou muito confiado.

LUÍS DE SÁ
535
Pera que é pedir licença
536
quando o campo já está dado.

PERO D’ABREU
-->
537
Ora esta vez e nô mais
538
sofrei, já que somos novos.
539
O peixe onde o comprais?

MORDOMO
540
Trazem-no daí do cais.

LUÍS DE SÁ
541
Si, trazem, mas não de Povos
542
que esse está i por memória,
543
como o Coliseu Romano.

PERO D’ABREU
544
Não vos faça aquilo dano.

MORDOMO
545
Pera mi aquilo é glória.

LUÍS DE SÁ
546
A tempo vem o castelhano.

Entra Flerisel com Melibeo, e diz:

FLERISEL
-->
547
Ya te dixe, Melibeo,
548
como d’amor soy vencido
549
y que del mal que poseo
550
con tan ardiente deseo
551
no quiero ser defendido.
552
Qu’es tan alta la hermosura
553
de la señora Ulinea
554
que aun que sea locura
555
experimentar la ventura
556
es ya forzado que sea.
-->
557
Camino tras este engaño
558
sin saber dónde me voy.
559
Otro dolor más extraño
560
recibo por mayor daño,
561
no puedo decir quién soy.

MELIBEO
562
La fuerza d’amor es fuerte
563
si largo tiempo la guía.
564
Quítela, pruebe su suerte.

FLERISEL
565
No haré, antes la muerte
566
quitará el alma mía.

MELIBEO
-->
567
Pues en caso tan deshumano
568
qué determina, señor?

FLERISEL
569
Hacerme quiero villano
570
y con la azada en la mano
571
cavar la raíz d’amor.
572
Iré asentar partido,
573
aunque es bueno para mí,
574
con aquel su Amo querido
575
y si fuere recebido
576
trabajaré en el jardín.

MELIBEO
-->
577
Desta pena moriré
578
solamente con oílla.
579
Y pues yo, señor, qué haré?

FLERISEL
580
Melibeo, yo lo dire:
581
vuélvete para Castilla.

MELIBEO
582
En caso tan trabajoso,
583
ya no habrá bien que me agrade.
584
Lo que me manda es dudoso.

FLERISEL
585
Hágase, pues es forzoso.

MELIBEO
586
Qué he de decir a su padre?

FLERISEL
-->
587
Cumple que le hagas crer
588
como de mí te perdiste,
589
que pensaste allá yo ser.

MELIBEO
590
A quien muere por te ver
591
quién dará nueva tan triste?

FLERISEL
592
Pues que darla es forzado
593
vete con Dios. Melibeo,
594
hace lo encomendado,
595
que yo quedo con cuidado
596
contento de mi deseo.

MELIBEO
-->
597
Hijo es daquel señor
598
príncipe d’Austria llamado,
599
su heredero sucesor.
600
Mirad en que traje amor
601
tan presto lo ha transformado.
602
Ya no hay cosa segura
603
ni firme contentamiento,
604
témole su suerte dura,
605
que en los casos de Ventura
606
no vale merecimiento.

Vão-se e falam os escudeiros:

LUÍS DE SÁ
-->
607
Eu tomara durar mais
608
aquele passo d’amores.

PERO D’ABREU
609
Nunca os vi tam figadais.

MORDOMO
610
Parece-me que não negais
611
a natureza, senhores,
612
porque o ser de azivieiro
613
não consiste noutra cousa.

LUÍS DE SÁ
614
Quereis-vos forrar, cavaleiro?

PERO D’ABREU
615
Não há mister companheiro
616
quem contra dous zombar ousa.

MORDOMO
-->
617
Já nesta m’hei de vingar,
618
senhor, de vossas mercês.

LUÍS DE SÁ
619
Vós haveis de perdoar,
620
que inda hão de degradar
621
pera aqui como às galés.

PERO D’ABREU
622
De Vila Franca farão
623
dessa maneira o Brasil.

LUÍS DE SÁ
624
Mas pior, como quem são.

MORDOMO
625
Mas que rezão mais sotil
626
essas fermosas darão.

Entra Floriana e Belisa, e diz:

BELISA
-->
627
Ora vinde cá, Floriana.
628
Brás Flores que vos parece?

FLORIANA
629
Quereis que vos diga, mana?
630
A quem o amor engana
631
aquilo sempre acontesce.

BELISA
632
Como lhe minha senhora
633
disse que éreis já fora
634
diz que quasi esmoreceu.
635
Ele vos viu em forte hora,
636
pois que logo se perdeu.

FLORIANA
-->
637
É outro novo Mancias,
638
e no pedir dos favores
639
alega quinhentas dores.

BELISA
640
Pois dizem que as zombarias
641
abrem a porta aos amores.

FLORIANA
642
Será, mas eu não m’engano
643
com gente mal concertada.
644
Falar-lhe eu não me faz dano.

BELISA
645
Deixou logo o castelhano
646
Ulinea namorada.

FLORIANA
-->
647
As cousas novas é certo,
648
quando nos tomam à fome,
649
contentar ao longe e ao perto.

BELISA
650
Gabe-o ela de discreto
651
mas não de tão gentil homem,
652
que isto é ponto divino
653
em que o amor anda enganado,
654
que faz o feo estimado.

FLORIANA
655
Não nos ouça Costantino
656
que vem cá com Polinardo.

POLINARDO
-->
657
Ora aposto que ninguém
658
a fortuna favoreça
659
como agora a nós tam bem.

COSTANTINO
660
Quem boa ventura tem,
661
senhor, a Deos a agradeça.

BELISA
662
Agradecei-o ao Porteiro,
663
pois acertou de ser fora.

POLINARDO
664
Não senão a vós, senhora.

FLORIANA
665
E contra quem, cavaleiro?

COSTANTINO
666
Contra vós, emperadora,
-->
667
que sois a mais má relé
668
em trajos de feiticeira.
669
Já com ninguém tendes fé.

FLORIANA
670
Senhor, fazei-me ũa mercê,
671
tratai-me doutra maneira.

COSTANTINO
672
Digo que tendes rezão,
673
não vos quero pôr tal vezo.

FLORIANA
674
Se for assi nam dirão
675
que nécios na conversação
676
causam mui grande desprezo.

POLINARDO
-->
677
Eu já forro-me de jogo,
678
ele se quiser apele.

FLORIANA
679
Oh, como vos queimais logo.

BELISA
680
Pois não se queima do fogo
681
senão quem está perto dele.

POLINARDO
682
Ouvi como vem perigosas
683
as senhoras do cabelo.
684
Ora olhai cá, minhas rosas,
685
sabei que pera fermosas
686
não vos falta mais que sê-lo.

FLORIANA
-->
687
Belisa, olhai que fizestes,
688
mandai-o ver ao espelho.
689
Jesu, que cincada destes.
690
Parece que vos correstes,
691
que vos fizestes vermelho.

COSTANTINO
692
Olhai para cá, senhor.
693
Ora sabei que é verdade.

POLINARDO
694
Far-m’-ei vermelho d’amor.

BELISA
695
Assi foi, que aquela dor
696
logo me deu na vontade.

POLINARDO
-->
697
Quem lhe não der não espero
698
fazer-me das culpas rezões.

BELISA
699
A mi foi aquele fero.

POLINARDO
700
Ora sabei que vos não quero
701
nem sóis pera tais lançóis.

FLORIANA
702
Inda vós estais enleado.
703
Quereis que vos faça amigos?

COSTANTINO
704
Si, si, que destes pirigos
705
fica um homem assombrado
706
como de ver mil ĩmigos.

BELISA
-->
707
Mas, enfim, por derradeiro
708
eu hei de ser vossa dama.
709
Amigos como primeiro,
710
mano, quereis? Vem o Porteiro,
711
escondei-vos, que vos chama.

POLINARDO
712
Pardeos, não esconderei,
713
oh, que vilão para escuita.

COSTANTINO
714
Ũa cousa vos direi:
715
foi o mor filho da puta
716
que nunca de ver cuidei.

PORTEIRO
-->
717
Quereis que vos diga, senhores,
718
como já disse outra vez?
719
Não sejais tam sensabores
720
que esta casa pera amores
721
de tais rascões nam se fez.
722
E mais vos juro e rejuro
723
e vos torno a rejurar
724
se vos aqui mais topar
725
que vos hei de dar um furo
726
como dão às naus no mar.

POLINARDO
-->
727
Isto é já cousa certa,
728
sem rezão vos aqueixais.

COSTANTINO
729
Achámos a porta aberta.

PORTEIRO
730
Nada disso me concerta.
731
Caminhar, não haja mais.
732
E seja com as más horas,
733
pois nas boas não quereis.

POLINARDO
734
Disto vos contentareis,
735
muito bem o sei, senhoras.

PORTEIRO
736
Inda aí ides, que fazeis?
-->
737
E eu só destas me espanto,
738
que a tais rapazes dão trela.
739
Mas vós outras ardeis tanto
740
que inda bem me não levanto
741
já tomais vento na vela.

BELISA
742
Nam lhe daremos favores
743
para lhe pagar suas dores
744
pois nos não custam dinheiro?

PORTEIRO
745
Nam, que para esses amores
746
aqui tendes o Porteiro.

FLORIANA
-->
747
Dessa maneira está bem,
748
eu folgo por vida minha.
749
Tanta graça quem a tem?

PORTEIRO
750
Ora calai-vos, doudinha,
751
nam vos entenda ninguém.

BELISA
752
Porteiro, por vida vossa
753
atreveis-vos ser namorado?

PORTEIRO
754
De vós, que sois graciosa.

FLORIANA
755
Qual de nós é mais fermosa?
756
Nam faleis afeiçoado.

PORTEIRO
-->
757
Ora ajuntai-vos assi
758
e ver-vos-ei devagar,
759
tornai-vos ora a largar.

BELISA
760
Porteiro, lembrai-vos de mi.

PORTEIRO
761
Ora estai ambas a par.
762
Bofé, bofé, Floriana.

BELISA
763
Porteiro, já me deixais?

PORTEIRO
764
Bofé nam, em que queirais.

FLORIANA
765
Porteiro quem vos engana?

PORTEIRO
766
Ora isto é por demais.
-->
767
A perguntas perigosas
768
não se pode responder,
769
mas porém: Floriana.

BELISA
770
Porteiro, olhai quem vos quer.

PORTEIRO
771
Ora, ambas sois fermosas,
772
não há nisto que fazer.

FLORIANA
773
Mas contudo todavia
774
havendo-nos a vós d’entregar
775
qual houvéreis de tomar?

PORTEIRO
776
Digo que ambas tomaria,
777
nam haja mais porfiar.

BELISA
-->
778
Zombais, cuidais que lh’escapa
779
nenhũa cousa d’amor?
780
Ambas tomareis, senhor?

PORTEIRO
781
Pois debaixo de má capa
782
jaz sempre bom bebedor.

FLORIANA
783
Inda o tornou a afirmar.
784
Vamo-nos por esta vez.

BELISA
785
Começai a caminhar.

PORTEIRO
786
Pois hei-vos d’acompanhar
787
em que seja em que vos pês.

Vão-se e falam os escudeiros:

LUÍS DE SÁ
-->
788
Quant’eu o guarda de damas
789
nam o queria granhão.

PERO D’ABREU
790
Dai ao demo tal vilão,
791
que inda que anda pelas ramas
792
podem-lhe comer o são.

MORDOMO
793
Pelas não descontentar
794
as queria ambas de duas.

LUÍS DE SÁ
795
Mas pera o vilão me matar
796
ao tempo de as julgar
797
houvera-as de querer nuas.

PERO D’ABREU
-->
798
Se m’eu vira em tal agouro
799
perder-me seria o menos
800
por nam perder tal tisouro.

MORDOMO
801
Eu julgara a maçã d’ouro
802
como Páris fez a Vénus.

LUÍS DE SÁ
803
Sois lido, pesar de mim.

PERO D’ABREU
804
Houve escola de latim
805
noutro tempo nesta terra.

MORDOMO
806
Ouçamos, que desta guerra
807
outrem nos vem dar o fim.

Entra o Amo com Flerisel a lhe mostrar o jardim já com partido feito, e diz:

AMO
-->
808
Quanto à paga é certo o ganho,
809
tende grande confiança.

FLERISEL
810
Ya sé deso el desengaño,
811
que en paga de tanto daño
812
tengo pequeña esperanza.

AMO
813
Não tenhais porque o proveito
814
nam se alcança sem trabalho.

FLERISEL
815
Este es tan alto y perfeto
816
que aún por este respeto
817
tan solamente me callo.

AMO
-->
818
Assi é, mas eis aqui
819
onde haveis de trabalhar,
820
que aberto está o jardim.

FLERISEL
821
El trabajo dél en mí
822
por placer puede pasar.

AMO
823
Chamareis o Pomareiro
824
pera de vós ter cuidado.
825
Mas ei-lo, vem agastado.

POMAREIRO
826
Quem te a ti, Gil, dá dinheiro
827
jará no inferno chantado.
-->
828
Quantas vezes te mandei
829
que não fique a porta aberta?

GIL
830
Quem na abriu, qu’eu a cerrei?

POMAREIRO
831
Tu a fechaste?

GIL
Si, fechei.

POMAREIRO
832
A desculpa está mui certa.

GIL
833
Jesu, nunca se tal viu,
834
que eu lhe pus a aldraba agora.

POMAREIRO
835
Assi parece que caiu.

GIL
836
Ora sei quem na abriu.

POMAREIRO
837
Quem?

GIL
O cão, quando quis ir fora.

POMAREIRO
-->
838
Assi havia de ser,
839
foi-lhe o cão corrobador.

GIL
840
Pera que é tanto zombar,
841
que eu lho fizera dizer
842
se o cão soubera falar.

AMO
843
Ora feito, ora nô mais,
844
mais dano aqui nam se faça
845
que todos somos de casa.

POMAREIRO
846
Se outro vilão nam tomais
847
ter este vilão é graça.
-->
848
Levo com ele má vida,
849
é cousa perdida em tudo.

GIL
850
Eu pola minha honra acudo.
851
Amo, ele é cousa perdida,
852
que eu me tenho por sesudo.

AMO
853
Aqui trago, Pomareiro,
854
dessas ’verias o talho.
855
Eis aqui um companheiro
856
que achei de pouco dinheiro,
857
tirar-vos-á de trabalho.

POMAREIRO
-->
858
Sois minha mãe e meu pai,
859
tendes-me grande honra feito.
860
Chegai, ratinho, chegai
861
e um par de passeos dai,
862
veremos se tendes jeito.

AMO
863
Ei-lo lá, é mui jeitoso,
864
nam há i mais, Pomareiro.

POMAREIRO
865
Passea mui gracioso.

GIL
866
Tomará ofício gracioso,
867
campeará bem no terreiro.

AMO
-->
868
Aqui, mancebo, vou vendo
869
que acabareis bem o ano.

FLERISEL
870
Sólo eso hacer pretendo.

POMAREIRO
871
Digo que o nam entendo
872
esse vilão castelhano,
873
e levai-o logo di,
874
não me esteja aqui mais ponto.
875
Isto me trazeis aqui?
876
Só quero andar no jardim,
877
seja o trabalho sem conto.

AMO
-->
878
Não me dá a mim disso nada
879
que ele o ano há d’acabar.

GIL
880
Castelhano, dizei ora eixada.

FLERISEL
881
Azada.

POMAREIRO
É cousa escusada.
882
Amo, nam pode ficar.

FLERISEL
883
No entendéis mi lengoaje?
884
Amor es lo que discanta,
885
será la culpa del traje.

GIL
886
Hei medo deste salvage,
887
tirai-o lá, que me espanta.

AMO
-->
888
Com gentes tão bestiais
889
nada se mete a caminho.

POMAREIRO
890
Amo, o castelão ratinho
891
se aqui entra é por demais,
892
lançai-o fora, daninho,
893
e mais tempo não gastemos.
894
Levai-o logo ess’hora.

AMO
895
E se o já quis vossa senhora?

GIL
896
Se ela quer, nós não queremos.
897
Castelhano, saltai fora.

FLERISEL
-->
898
Yo os quedo que os contente
899
el servicio que os hiciere.
900
Recebedme alegremente.

POMAREIRO
901
Volantibus prestesmente
902
que já digo que não quere.

AMO
903
Cá vem a senhora Ulinea
904
que isto determinará,
905
o que ela mandar se fará.

GIL
906
Se o castelhano aqui cea,
907
pardeos, Gil nam jentará.

Entra Ulinea e Floriana, e diz Ulinea:

-->
908
Que fazíeis que lá fora
909
vos ouvia cá bradar?

AMO
910
São estes vilãos, senhora.

POMAREIRO
911
Pois o fidalgo inda agora
912
começava a perfiar.

ULINEA
913
E sobre que era a perfia?
914
Dizei-ma, julgá-la-ei.

GIL
915
Olhe vossa senhoria.

POMAREIRO
916
Tir-te lá que eu lho direi.

GIL
917
Também eu nam lho diria?

POMAREIRO
-->
918
Hás-te de meter em tudo,
919
não fora calar milhor?
920
Qués ser parvo e falador.

GIL
921
Se vós só sondes sesudo
922
fazeis mal nam ser doutor.

POMAREIRO
923
Mas eis aqui a requesta:
924
senhora, o Amo nam quer...

GIL
925
Senhora, o Amo si quer
926
e ele não, e a causa é esta,
927
não há nisto que fasquer.

ULINEA
-->
928
Brás Flores, é aquilo fero
929
ou se declarou agora?

AMO
930
Disse verdade, senhora,
931
e ele não quer e eu quero,
932
e mais diz que o botem fora.

FLORIANA
933
Aquilo está entendido
934
não é necessário mais.

ULINEA
935
Brás Flores, que rezão dais?

POMAREIRO
936
Que lhe não façam partido.

ULINEA
937
Inda vos nam declarais?
-->
938
Que não quereis, Pomareiro?

POMAREIRO
939
Eu quero o que ele não quer,
940
que é cousa que bem pode ser.

GIL
941
Se isso faláreis primeiro
942
escusara-o eu dizer.

ULINEA
943
Amo, respondei milhor,
944
que quereis vós que se faça?

AMO
945
Que aceitem o trabalhador.

POMAREIRO
946
E eu não, que é sensabor,
947
que se vá logo de casa.

ULINEA
-->
948
Achais-lhe mais algum dano
949
que por isso desmereça?

POMAREIRO
950
É, senhora, castelhano,
951
e não tancharei num ano
952
tal linguagem na cabeça.

ULINEA
953
Quero-o eu ver, todavia,
954
veremos se me contenta.

AMO
955
Vinde a sua senhoria.

GIL
956
Faze grande cortesia
957
e de joelhos te assenta.

ULINEA
-->
958
Ora andai cá, castelhano.
959
Sabeis da arte d’enxertar?

FLERISEL
960
En eso soy singular,
961
mas pienso será en vano
962
cuanto pueda trabajar.

ULINEA
963
Ninguém se salva sem fé,
964
mas, contudo, todavia,
965
isso que dizeis por qu’é?

FLERISEL
966
Porque no agradaré
967
a los de su señoría.
-->
968
Que pienso ya que no quieren
969
procurar de m’entender.

ULINEA
970
Isso bem poderá ser,
971
mas do que eles quiserem
972
está longe o meu querer.

FLERISEL
973
Del suyo sólo me fuera
974
vida y placer en tenello.

ULINEA
975
Nada vos entendi agora.

POMAREIRO
976
Nem eu tampouco, senhora.
977
Lancem-no sem mais conselho.
-->
978
Nam é necessário mais.
979
Pera que é hablar con él?
980
São na língua bestiais.

ULINEA
981
Dizei como vos chamais.

FLERISEL
982
He por nombre Flerisel.

POMAREIRO
983
Mente, que nam pode ser,
984
que de tal nome me corro.

AMO
985
Chamar-se-á como quiser.

GIL
986
Homem, no mundo há que quer
987
ter nome como cachorro?
-->
988
Ter com ele conversação
989
nunca comigo o acabo
990
se cá fica o castelão.

POMAREIRO
991
Por buz buz o chamarão,
992
virá bolindo c’o rabo.

AMO
993
Nam é castelão rabudo
994
como outros que i há.

ULINEA
995
Pomareiro, bom será
996
que aqui fique, contudo.
997
Por tempo vos contentará.

POMAREIRO
-->
998
Vossa senhoria se quer
999
faça-se sua vontade,
1000
mas a lhe falar verdade
1001
cuidar eu de o entender
1002
será tudo vaidade.

ULINEA
1003
Tal fala sei, Floriana,
1004
que tomaras de a teres.

FLORIANA
1005
Si, que a língua castelhana
1006
é nos homens soberana
1007
e muito mais nas molheres.

ULINEA
-->
1008
Fica-te aquí, Flerisel,
1009
andar-te-ás trabalhando.

FLERISEL
1010
Sí, quedo, mas sospechando
1011
ser el trabajo cruel
1012
según lo que ando esperando.

FLORIANA
1013
Por amor de mim, Brás Flores,
1014
que ao castelhano já agora
1015
lhe façais muitos favores.

POMAREIRO
1016
Ah, que por vossos amores
1017
la mar pasaré, senhora.
-->
1018
E i-vos embora, anjinho,
1019
pois fico disso lembrado.
1020
Castelhão tereis cuidado
1021
vós e essoutro ratinho,
1022
trazer isto concertado
1023
porque despois de jantar
1024
torna a senhora Ulinea
1025
sempre ao jardim folgar,
1026
e haveis bem de trabalhar
1027
por que de vós tudo crea.
-->
1028
E tu, Gil, logo procura
1029
de pôr o comer na mesa,
1030
vamos jantar com presteza.

FLERISEL
1031
Aquí me tienes, Ventura,
1032
satisface tu crueza.

GIL
1033
A ventura nam sé aqui.
1034
Para qu’é chamar por ela?
1035
Lá te ficou em Castela.

FLERISEL
1036
Eso tengo para mí.

GIL
1037
Pois vamos dar à goela.

Vão-se e falam os escudeiros:

PERO D’ABREU
-->
1038
Mataram-me aqueles vilões
1039
no declarar do partido
1040
do trabalhador fingido.

LUÍS DE SÁ
1041
São naturais as rezões
1042
de vilão mal entendido.

MORDOMO
1043
O natural é milhor
1044
no representar das farsas.

PERO D’ABREU
1045
Achei-lhe muito primor
1046
no não entender, senhor,
1047
o castelhano com graças.

LUÍS DE SÁ
-->
1048
Todos os passos galantes
1049
achei com entendimento.
1050
É discreto o fundamento.

MORDOMO
1051
Traz bons representantes,
1052
que é todo o merecimento.

PERO D’ABREU
1053
Senhor Mordomo, até ’gora
1054
isso nam disse ninguém.
1055
Nam entendeis isso bem.

MORDOMO
1056
Torna a entrar a senhora,
1057
queiramos ver ao que vem.

Entra Ulinea e diz:

-->
1058
Ah, pena tam forte e dura,
1059
não pode haver outra igual.
1060
Tenho por cousa segura
1061
que o mal que pode ter cura
1062
se nam deve chamar mal.
1063
Por experiência o vejo
1064
neste novo pensamento,
1065
crece-me um novo desejo
1066
temerário ao pensamento
1067
e estou de temor cercada.
-->
1068
Num caso que temo tanto
1069
que me faz desconfiada
1070
vejo-me tam enleada
1071
que quasi parece espanto.
1072
Nega meu alto respeito
1073
o que a afeição me promete,
1074
oh, caso tam emperfeito,
1075
entra-me o amor no peito
1076
mas não sabe onde se mete.

PORTEIRO
-->
1077
Senhora, o capelão
1078
está ali, diz que queria
1079
falar a vossa senhoria.

ULINEA
1080
Dizei-lhe que agora não,
1081
mas que será outro dia.
1082
Chamai-me cá Floriana,
1083
não me tragais mais recado.

PORTEIRO
1084
Tinha-o já desenganado,
1085
mas nunca se desengana
1086
quem é parvo e confiado.

ULINEA
-->
1087
Quando a cuidar me ponho
1088
neste mal o bem me tira.
1089
Quem nunca tal amor vira,
1090
mas eu tenho-o por sonho
1091
que o mais parece mentira.
1092
Que fazias, Floriana?

FLORIANA
1093
Senhora, estava lavrando.

ULINEA
1094
E eu estava cuidando
1095
que se o amor nam se engana
1096
por que se arrecea amando?

FLORIANA
-->
1097
Declarar amor ninguém
1098
poderá sem conhecê-lo,
1099
porque por certo se tem
1100
passar por seu mal e bem
1101
quem bem houver d’entendê-lo.
1102
Parece logo escusado
1103
nisso responder eu nada.

ULINEA
1104
Tenho-te por avisada,
1105
que do meu novo cuidado
1106
estarás bem descuidada.

FLORIANA
-->
1107
Por cousa nova queria
1108
sabê-lo se pode ser.

ULINEA
1109
Não me hás de poder crer.

FLORIANA
1110
Diga-o vossa senhoria,
1111
que eu segredo lh’hei de ter.

ULINEA
1112
Bem sei que tod’o segredo
1113
me terás, que és minha amiga,
1114
mas eu nam sei se to diga.

FLORIANA
1115
Senhora, perca-lhe o medo,
1116
senam ter-me-á por imiga.

ULINEA
-->
1117
Tem-me cercada de dores
1118
ser meu fado tam cruel,
1119
cousa de tantos temores,
1120
que cuido que ando d’amores.

FLORIANA
1121
E com quem?

ULINEA
Com Flerisel,
1122
mas nam que me faça dano
1123
mais que tê-los por ofensa.

FLORIANA
1124
Nam está nisso a sentença,
1125
que o amor, se é soberano,
1126
entra sem pedir licença.
-->
1127
Mas há i amor fingido,
1128
o de Flerisel será assi.

ULINEA
1129
Nam mo parece a mim,
1130
que o nam perco do sentido
1131
desde o dia que o vi.
1132
Parece com o estrangeiro
1133
que vendo os paços achei.

FLORIANA
1134
Segundo diz o Porteiro,
1135
senhora, tal nam crerei.
-->
1136
Porque diz que o castelhano
1137
que era homem de primor
1138
e tinha arte de senhor,
1139
trocar-se parece engano
1140
sem obrigação d’amor.

ULINEA
1141
Essa parece a rezão,
1142
mas tudo, enfim, pode ser.
1143
Tomar-me-ia em conjunção
1144
que obrigado da afeição
1145
se trocasse por me ver.

FLORIANA
-->
1146
O amor é poderoso,
1147
nam duvido nada disso.

ULINEA
1148
Quer zombando quer de siso
1149
neste caso duvidoso
1150
hás de meter a mão nisso.

FLORIANA
1151
Que quer que faça, senhora,
1152
já que a mim não se encobre?

ULINEA
1153
Que fales com ele agora,
1154
sendo essoutro vilão fora,
1155
para ver se se descobre.
-->
1156
Porque toda a realeza
1157
da perfeita fidalguia
1158
se nega ao ser da baixeza
1159
e nam muda a natureza
1160
a fingida vilania.

FLORIANA
1161
Senhora, assente e assele,
1162
nam tenha que duvidar,
1163
que tanto que lá chegar
1164
no que praticar com ele
1165
eu lho farei confessar.

ULINEA
-->
1166
Olha, por amor de mim,
1167
só nisto presteza quero.

FLORIANA
1168
Eis-me, já vou ao jardim.

ULINEA
1169
Vai, que eu vou-me daqui,
1170
nestoutra casa te espero.
1171
Mas por que o exprimento?
1172
Quer vilão quer o nam seja
1173
não lhe acho merecimento
1174
em tam duro pensamento.
1175
Coitada de quem deseja.

Vão-se e falam os escudeiros:

PERO D’ABREU
-->
1176
Com seta d’ouro luzente
1177
vai ferida de Cupido.
1178
Igual está o partido.

LUÍS DE SÁ
1179
Si, já que ambos se sente
1180
ter o amor cada um vencido.

MORDOMO
1181
Ela lhe fica devendo
1182
mudar o ser de quem era.

PERO D’ABREU
1183
Oh, nam, segundo entendo,
1184
todo o extremo vou vendo
1185
que só do homem se espera.

LUÍS DE SÁ
-->
1186
Pera aqui escusara o autor
1187
fundamento de primores.

MORDOMO
1188
E por que rezão, senhor?

PERO D’ABREU
1189
Porque nam entende amor
1190
senam quem é pera amores.

MORDOMO
1191
Sabei que há aqui cortesões
1192
que vos lerão de cadeira.

LUÍS DE SÁ
1193
Mas com quão roins rezões.

PERO D’ABREU
1194
Ouçamos estes vilões,
1195
que as darão doutra maneira.

Entra o ratinho com Flerisel, e diz:

GIL
-->
1196
Faldel, olha que te digo,
1197
há muita gente em Castela?

FLERISEL
1198
Y eso pera qué es, amigo?

GIL
1199
Porque se nam for perigo
1200
determino andar por ela.

FLERISEL
1201
El peligro es muy pequeño,
1202
mas brava gente hay en Castilla.

GIL
1203
Só por isso me detenho
1204
que com peleijões não m’avenho
1205
e mais nam é maravilha.
-->
1206
E nam mo tolherá ninguém,
1207
que eu tudo quis por bem
1208
sempre aqui e mais na terra
1209
e não me acho pera a guerra,
1210
por isso nam me convém.

FLERISEL
1211
Pues la guerra hace asaz,
1212
a los pobres da riquezas.

GIL
1213
Quero eu ser pobre com paz
1214
e eles lá usem cruezas.

FLERISEL
-->
1215
Los hombres no son crueles
1216
allá como te paresce
1217
sino con quien lo merece.

GIL
1218
Digo que são infieles
1219
e a fé nam nos conhece,
1220
e mais nisto não há engano
1221
jó nam irei lá desta vez.

FLERISEL
1222
Cállate, loco villano.

GIL
1223
Falais lá todos castelhano?

FLERISEL
1224
No hablan sino portogués.

GIL
-->
1225
E pois tu como o não falas?
1226
Digo-che que nam te creo.

FLERISEL
1227
Sólo porque lo deseo.

GIL
1228
E pois por isso te calas?
1229
Trarás a língua no céu.

FLERISEL
1230
Cállome pues me quedo
1231
contento de mi pasión,
1232
no me pidas más razón.
1233
Trabajemos, pues no puedo
1234
dexar tu conversación.

GIL
-->
1235
Trabaja tu, mas en vano
1236
será o teu merescer
1237
que nada sabes fazer.
1238
Poda a murta, castelhano,
1239
que yo quero cá barrer.

FLERISEL
1240
Hágase lo que mandáis,
1241
ay, mi pena soberana.

GIL
1242
Castelhano, sospirais?
1243
Pardeos, depressa cansais.
1244
Vinde-o ajudar, Floriana.

Vem Floriana e diz:

-->
1245
De muito boa vontade
1246
ajudarei ao mais cansado.

GIL
1247
Fardel, estás aviado.

FLORIANA
1248
É ele, a falar verdade,
1249
o que há mister ajudado.

GIL
1250
Não há mister mais agora,
1251
cuidar no trabalho o cansa.

FLERISEL
1252
Díceos verdad, señora,
1253
que el trabajo placer fuera
1254
si en él hubiera esperanza.

FLORIANA
-->
1255
Gil, manda minha senhora
1256
que vás despor a giesta
1257
lá baixo logo ess’hora
1258
porque quer cá vir agora
1259
depois que passar a sesta.

GIL
1260
Já tinha disso cuidado,
1261
mas, pirém, vou-o fazer.

FLORIANA
1262
Vai que espero por recado.
1263
Flerisel, estais cansado?

FLERISEL
1264
No tanto como sin placer.

FLORIANA
-->
1265
Nos homens da vossa sorte
1266
sempre o prazer é firme.

FLERISEL
1267
Es la tristeza tan fuerte
1268
en mí que sólo la muerte
1269
puede della despedirme.

FLORIANA
1270
A tristeza desses males
1271
só a boa paga os cura,
1272
tende-a por muito segura.

FLERISEL
1273
No puedo, ya que son tales,
1274
dexar de temer Ventura.

FLORIANA
-->
1275
Com tanta desconfiança
1276
por que há ninguém de servir?

FLERISEL
1277
Yo sí, que espero morir
1278
sirviendo sin esperanza
1279
do se me acorta el vivir.

FLORIANA
1280
Que é o que vós esperais
1281
além de vossa soldada?
1282
Verei de que vos queixais.

FLERISEL
1283
Decir lo que pescudáis
1284
parece cosa escusada
-->
1285
que si yo sirvo no esperob
1286
más que el mal de que me quexo
1287
porque es tanto lo que quiero
1288
que cuando dél desespero
1289
no vivo porque lo dexo.

Entra o Pomareiro só, e diz:

-->
1290
A tam roim ratinhaço
1291
hei de vir a dar-lhe um tombo.
1292
Deixa-me tudo devasso.
1293
O bom disto a cada passo
1294
é trazer-lhe o pau no lombo.
-->
1295
Deixar-me de par em par
1296
a porta aberta por i.
1297
Quem fala cá no jardim?
1298
Floriana a praticar
1299
c’o castelhano está ali.
1300
Quero-os estar espreitando
1301
e se este a dama me toma
1302
como eu sejo adevinhando
1303
não se me há d’ir alabando
1304
nem com a pendença a Roma.

FLORIANA
-->
1305
Quem tais palavras ordena
1306
nam é vilão verdadeiro.

FLERISEL
1307
Sí, soy, y deso es mi pena,
1308
que me veo extranjero
1309
y sin favor y en tierra ajena.

POMAREIRO
1310
E tam depressa favores
1311
quereis logo à chegada?
1312
Descoberta é a cilada.
1313
Sus, atalho, aos corredores
1314
tornar-se-ão sem fazer nada.

FLORIANA
-->
1315
Não é rezão entendida
1316
a que viestes a esta terra.

FLERISEL
1317
Señora, a buscar la vida
1318
y hállola tan perdida
1319
que yo mismo me hago guerra.

POMAREIRO
1320
Tudo aquilo são enganos,
1321
que ele amor nam lhe tem
1322
e diz-lhe que lhe quer bem.
1323
Que homens são os castelhanos
1324
pera se fiar ninguém.

FLORIANA
-->
1325
Quereis dizer dessa pena
1326
quem é que vos tem a culpa?

FLERISEL
1327
No quiere quien la ordena,
1328
basta que es quien me condena
1329
la causa que me desculpa.

POMAREIRO
1330
Ah, que falsa rapariga,
1331
voto a Deos que o está rogando
1332
e eu há mil anos que ando
1333
que queira ser minha amiga
1334
e sem querer mo anda negando.

FLORIANA
-->
1335
Só isto perguntarei:
1336
dizei-me, quem vos namora?

POMAREIRO
1337
A isso eu responderei
1338
porque tudo espreitei
1339
quanto falastes, senhora.

FLORIANA
1340
Jesu, que medo me veo
1341
de vos ouvir Pomareiro.

POMAREIRO
1342
Assombrei-vos, eu o creo,
1343
porque o amor verdadeiro
1344
não o há sem arreceio.
-->
1345
E mais vós, dum castelhano,
1346
o que aqui ouviu Brás Flores
1347
à fé que vos faça dano.

FLERISEL
1348
Qué me oístes, hermano?

POMAREIRO
1349
Ouvi-vos falar amores.

FLORIANA
1350
Dizei-me, por vossa vida,
1351
se o ouvistes, com quem?

POMAREIRO
1352
Convosco, dona garrida,
1353
sois portuguesa fingida
1354
se a Castija quereis bem.

FLERISEL
-->
1355
Si vos tenéis de mí celos
1356
no los tenéis con razón.

POMAREIRO
1357
Não falo nos céus, castelão,
1358
pois não quereis entendê-los,
1359
Deos o sabe e outrem não.

FLORIANA
1360
Crede que o amor que vos cega
1361
não o entendeis, Brás Flores.

POMAREIRO
1362
Ora digo que anda d’amores
1363
convosco e agora me nega
1364
que lhe não fazeis favores.

FLERISEL
-->
1365
No niego, mas el amor
1366
es grande voso enemigo.

POMAREIRO
1367
Confesso-vos sem perigo,
1368
sereis vós homem tredor
1369
que entreis em campo comigo?

FLERISEL
1370
Valiente hombre y atrevido
1371
sois por cierto, bastará
1372
que me doy ya por vencido.

POMAREIRO
1373
Perpolego, esse partido
1374
a espada o determinará.

FLORIANA
-->
1375
Todavia nesta afronta
1376
só pela rezão serei,
1377
eu per Flerisel irei.

POMAREIRO
1378
Não vos tenho nada em conta,
1379
com ambos me matarei.

FLERISEL
1380
Pera el desafío aplazado
1381
pido gajas de señal,
1382
yo lo he por acetado.

POMAREIRO
1383
Sabei vós que o gasalhado
1384
há de ser por vosso mal.

FLORIANA
-->
1385
Não entendeis castelhano?
1386
Diz, por que lhe nam mintais,
1387
que certeza é que lhe dais?

POMAREIRO
1388
Basta que vos doy la mano
1389
bem sei eu que arreceais.

FLORIANA
1390
Eu estava gracejando,
1391
de siso nam seja nada.

POMAREIRO
1392
Digo que é cousa escusada
1393
e nam tardeis, que esperando
1394
vos estou com capa e espada.

FLERISEL
-->
1395
No tardaré, que muy presto
1396
os daré de mí razón.
1397
Señora, qué conclusión
1398
es del hombre que hace aquesto
1399
sin ser suyo el corazón?
1400
El daquel otro villano
1401
es vuestro, según lo veo,
1402
el mío está en otra mano
1403
claro está que es luego en vano
1404
los dos seguir su deseo.

FLORIANA
-->
1405
Sabei que não vos entendo
1406
nem vos dais a entender.

FLERISEL
1407
Hago lo que puede ser,
1408
que el mal que en mí va creciendo
1409
no se quiere conocer.

FLORIANA
1410
Ora vou, ficai embora,
1411
nada de vós já confio.

FLERISEL
1412
No tenéis razón, señora,
1413
pues cumplir me voy agora
1414
por vos nuestro desafío.

FLORIANA
-->
1415
Vencereis o adversairo
1416
com rezão tam conhecida.

FLERISEL
1417
Es tan fuerte mi contrario
1418
que pienso ser necesario
1419
forzado rendir la vida.

FLORIANA
1420
De saber mais desespero
1421
ficai-vos nesse perigo.

FLERISEL
1422
Señora, escuchad, que quiero
1423
saber de vos lo que espero
1424
hacer de mi enimigo.
-->
1425
Porque nel campo aguardando
1426
me terná ya por cobarde.

FLORIANA
1427
Que toda a honra se guarde
1428
de quem desafia amando.

FLERISEL
1429
Pláceme, voyme que es tarde.

Vão-se e falam os escudeiros:

PERO D’ABREU
-->
1430
Sabei que o autor tem costas
1431
com gentil letra aos praguentos.

LUÍS DE SÁ
1432
Tem altos merecimentos.

MORDOMO
1433
Que perguntas e repostas
1434
de sutis entendimentos.

PERO D’ABREU
1435
Vai Floriana enleada
1436
do encobrir do castelhano.

MORDOMO
1437
Não lhe gabo isso nada.

LUÍS DE SÁ
1438
Oh, que gentil badalada,
1439
descobrir-se-ia seu dano.

MORDOMO
-->
1440
Senhor si, já que lhe vem
1441
de ter o amor encoberto.

PERO D’ABREU
1442
Naqueles trajos ninguém
1443
querendo em tal parte bem
1444
dizê-lo não é discreto.

LUÍS DE SÁ
1445
No segredo da afeição
1446
se tem a cousa segura.

MORDOMO
1447
Si, mas eu provaria ventura.

PERO D’ABREU
1448
Pois sois roim cortesão.
1449
Ouçamos esta figura.

Entra Ulinea com o Porteiro, e diz:

ULINEA
-->
1450
Novas de meu pai não vejo
1451
há tanto, nam sei que seja.
1452
Esperá-las me faz pejo.
1453
Quanta dor dá o desejo
1454
em tudo o que se deseja.

PORTEIRO
1455
Assi é, muito mal faz,
1456
que eu também já desejei
1457
o que nunca alcancei.

ULINEA
1458
Que desejastes?

PORTEIRO
Ser Gonçalo Vaz,
1459
porque era inda mais que rei.

ULINEA
-->
1460
Eu já nam posso crer isso,
1461
e tal desejastes vós?
1462
Andareis muito deviso.

PORTEIRO
1463
Ora quer saber quão de siso?
1464
Que o tomara antes que algoz.

ULINEA
1465
Melhor ofício seria
1466
quant’a esse a meu parecer.

PORTEIRO
1467
Sequer vossa senhoria,
1468
se ser rei já nam cria,
1469
ser eu algoz m’há de crer?

ULINEA
-->
1470
A desculpa vos condena,
1471
e Gonçalo Vaz que tem?

PORTEIRO
1472
Que tem? Ser homem de bem
1473
e engorda sem culpa e pena
1474
e sem lho tolher ninguém.

ULINEA
1475
Nam vos tendo por sesudo
1476
fôreis nisso singular.

PORTEIRO
1477
Nam há nisso que duvidar
1478
e mais fora papa-tudo
1479
qu’é inda mais d’alcançar.

Entra o Bobo, cantando:

-->
1480
De Santiago partió el bobo,
1481
de Santiago partía,
1482
cartas lleva en su mano,
1483
cartas de mensajería.

ULINEA
1484
Quem é o que vem cantando?
1485
Porteiro, parece Gusmão.

PORTEIRO
1486
Si, é, que vem mão por mão
1487
ele e o Amo falando,
1488
algũas novas trarão.

ULINEA
-->
1489
I-mos chamar correndo
1490
e que venham logo ess’hora.

BOBO
1491
Albricias, mi señora,
1492
que yo las voy mereciendo.

ULINEA
1493
Si, darei, venhas embora,
1494
trazes cartas de meu pai?
1495
Dá-mas, pera que descanse
1496
e este trabalho amanse.
1497
Dir-me-ás como lhe vai.

BOBO
1498
Señora, acabaré el romance.
-->
1499
A pie venía el bobo,
1500
que caballo no tenía.

AMO
1501
Olhai esta sermonia.
1502
Dá ali as cartas, estorvo,
1503
que pede sua senhoria.

ULINEA
1504
Deixa agora de cantar,
1505
acabá-lo-ás outro dia.

BOBO
1506
Señora, puede esperar.
1507
Por dineros lo faltar
1508
nunca placer le venía.

PORTEIRO
-->
1509
Esse romance é comprido
1510
ou se acabou já agora?

BOBO
1511
No, que lo más es muy sentido.

AMO
1512
Façamos-lhe algum partido
1513
e acabá-lo-á, senhora.

ULINEA
1514
Deixa agora esse prazer
1515
e dá-me o que te pedia,
1516
despois tempo podes ter.

BOBO
1517
A las horas del comer
1518
vino bueno hallar quería.

ULINEA
-->
1519
Paresce que é escusado.
1520
Não te ouvir melhor me fora.

BOBO
1521
Déxese deso, señora,
1522
que yo traigo muy buen recado,
1523
déxeme cantar agora.
1524
No pensaba otra cosa
1525
sino cuándo llegaría.

ULINEA
1526
Cousa se viu tam gostosa?

BOBO
1527
Para ver a su esposa
1528
cómo lo abrazaría.

PORTEIRO
-->
1529
Si, aquilo há de ser assim,
1530
dar-lhe as cartas es en vano.

BOBO
1531
Déxame cantar, villano.

ULINEA
1532
Mas por amor de mim
1533
que nam cantes, castelhano.
1534
Dá-me novas de meu pai
1535
e despois todo o dia canta.

AMO
1536
Sus, ea Bobo, chegai,
1537
senam de mim vos guardai
1538
que este meu bordão descanta.

BOBO
Que me place, ora óigame vuestra señoría. Yo iba y venía por el camino llevando la mejor vida del mundo, acontecióme la mayor desgracia que puede ser.

ULINEA
Despois te perguntarei tudo, meu pai quando virá?

BOBO
Señora, sí, vendrá placendo a Dios, la carta lo dirá, que yo lo dexé de aquí tres jornadas con unos castellanos, hesla ahí.

Lê Ulinea a carta e diz assi:

-->
1539
Filha:
1540
Escrevo esta na mão
1541
porque quero e saibais
1542
que só não é pera mais
1543
que pera vos dar rezão
1544
do que quero que façais.
1545
O príncipe d’Áustria topei,
1546
que é senhor mui principal,
1547
vem ver se acha em Portugal
1548
um filho seu e nam sei
1549
por que lhe deu pena tal.
-->
1550
Traz pouco contentamento
1551
de ter seu filho perdido.
1552
Arme-se-lhe um aposento
1553
igual do merecimento
1554
que a tal senhor é devido.
1555
Vesti-vos muito custosa,
1556
apercebei-vos ricamente,
1557
que do mais a graça é vossa,
1558
que em vos vendo tão fermosa
1559
fique o príncipe contente.
1560
Fim.

ULINEA
-->
1561
Amo, sem mais esperar
1562
todos os paços queria
1563
que se começassem a armar
1564
e seja da mais singular
1565
e melhor tapeçaria.
1566
Tenha-se grande cuidado
1567
em se buscar de comer.

AMO
1568
Depressa é aviado.

BOBO
1569
Eso es punto delicado,
1570
dadme cargo de lo hacer.

PORTEIRO
-->
1571
E vós o comer primeiro
1572
castelhano, anda diante.

ULINEA
1573
Deixai ora esse bargante.
1574
Amo, vós e o Porteiro
1575
tudo fazei num instante.

AMO
1576
Vamos, tudo se fará
1577
como vossa senhoria
1578
muito depressa verá.

BOBO
1579
Ningún provecho se hará
1580
si van sin mi compañía.

Vão-se e fica Ulinea só, e diz:

-->
1581
Recebo contentamento
1582
de meu pai vir como vejo,
1583
doutra parte o sentimento
1584
deste novo pensamento
1585
me acrecenta outro desejo.
1586
Oh, amor, como és cruel
1587
e tam pouco piadoso,
1588
já que nam és amoroso
1589
por parte de Flerisel
1590
nam te mostres poderoso.

FLORIANA
-->
1591
Já, senhora, a saudade
1592
de seu pai abrandaria,
1593
que tanto a perseguia.

ULINEA
1594
Si, mas outra, a falar verdade,
1595
que acabasse tomaria.

FLORIANA
1596
Aquilo que o tempo cura
1597
deixá-lo a ele é milhor.

ULINEA
1598
Nam já em cousas d’amor
1599
que nesta só a Ventura
1600
tem poder, força e vigor.
-->
1601
Porém, dize-me que achaste
1602
neste nosso castelhano
1603
com que até ’gora falaste.

FLORIANA
1604
É discreto que lhe baste,
1605
temo que vos faça dano.

ULINEA
1606
Disse se é fidalgo ou nam?
1607
Só isto saber queria.

FLORIANA
1608
Perguntei-lho, concrusão
1609
disse-me que era vilão
1610
que só disto se doía.

ULINEA
-->
1611
Seja, enfim, já quem quiser,
1612
nam acho lei aos amores.

FLORIANA
1613
Espere, que lhe hei de dizer
1614
um caso que não se há de crer
1615
que aconteceu a Brás Flores:
1616
que entrando polo jardim
1617
viu-nos ambos e espreitou.
1618
Que eram amores cuidou
1619
e por ciúmes de mim
1620
Flerisel desafiou.
-->
1621
E está no campo asperando
1622
com capa e com espada.

ULINEA
1623
Nam digas isso zombando,
1624
que o amor está esforço dando
1625
a quem nunca o teve em nada.
1626
Aceitou o desafio
1627
Flerisel a esse vilão?

FLORIANA
1628
Si, que lhe deu disso a mão.

ULINEA
1629
Pois vamos-lhe dar desvio.
1630
Nam mo sofre o coração.

Vão-se e falam os escudeiros:

MORDOMO
-->
1631
Oh, que natural receo
1632
sempre aquele é no amor.

LUÍS DE SÁ
1633
Assi não o há sem temor.

PERO D’ABREU
1634
Isso é certo e neste o creo
1635
que nam pode ser maior.

MORDOMO
1636
Quanto é daquela senhora
1637
nam no há mais soberano.

LUÍS DE SÁ
1638
Estais mostrando cá fora
1639
que desejastes agora
1640
de serdes o castelhano.

PERO D’ABREU
-->
1641
Descobrir esse cuidado:
1642
estais da moça contente?

MORDOMO
1643
Muito e muito namorado.

LUÍS DE SÁ
1644
Se lhe sois afeçoado
1645
tomá-la-eis c’um trapo quente.

PERO D’ABREU
1646
Dai-lhe por perdido o norte
1647
se zombais dessa feição.

MORDOMO
1648
Zombemos nós mão por mão
1649
porque eu também sam da corte.

LUÍS DE SÁ
1650
Ora sair-se-á este vilão.

Entra o Pomareiro a esperar Flerisel com capa e espada pera o desafio, e diz:

POMAREIRO
-->
1651
Ora não temais Brás Flores,
1652
que o coração não se engana.
1653
Pera que é tantos temores?
1654
Olhai que vos andam d’amores
1655
com a vossa Floriana.
1656
Haveis-vos d’aventurar.
1657
Saí fora deste engano.
1658
Pera que é arrecear?
1659
Quem é? Foi-se-m’afegurar
1660
que já vinha o castelhano.
-->
1661
Mas, contudo, lançai mão
1662
da vossa capa e espada.
1663
Ponde-vos logo em feição.
1664
Cuidai se será rezão
1665
de lhe dar ũa estocada?
1666
Si, si, porque o caso sabido
1667
tenho que merece a morte.
1668
Brás Flores tende sentido
1669
porque homem apercebido,
1670
já sabeis, sempre é mais forte.
-->
1671
E estar tam aparelhado
1672
quiçais será covardia.
1673
Ora, esperá-lo-ei embuçado
1674
e com a espada recachado
1675
pera ser mor roncaria.
1676
Porque aquele que arrancar
1677
não há de estar a pé quedo
1678
mas entrar com um pé e dar.
1679
Jesu, as ramas com o ar
1680
no bulir me fazem medo.
-->
1681
Mas por amor, já que eu vim,
1682
hei de sofrer todo o dano.
1683
Porém, já me eu fora daqui
1684
porque em busca de mi
1685
vejo vir o castelhano.

FLERISEL
1686
Qué caballero es amor,
1687
cómo es fuerte y soberano!
1688
Tiéneme ansí de su mano
1689
y da esfuerzo y primor
1690
al que es natural villano.
-->
1691
A todos da pena y enojos
1692
con amorosa afición
1693
sin ser ni ley ni razón
1694
y siempre muestran los ojos
1695
lo que pasa el corazón.
1696
Blas Flores veo parado
1697
que me espera hecho un Narciso.
1698
Quién está ahí rebozado?

POMAREIRO
1699
Pásate, hombre honrado,
1700
não tengáis de ver com isso.

FLERISEL
-->
1701
Mirad qué gentil guerrero
1702
cómo espera a su contrario.
1703
No sois vos el Pumarero?

POMAREIRO
1704
Que vos não é necessário.
1705
Passai, embora, obrieiro.

FLERISEL
1706
No me iré sin que digáisb
1707
primero aquí vuestro nombre.
1708
Quién sois, cómo os llamáis?
1709
Villano, por qué no habláis?

POMAREIRO
1710
Castellano, soy un hombre.

FLERISEL
-->
1711
Creo que no lo seréis
1712
según lo que os veo hacer.

POMAREIRO
1713
Serei logo quem quiser
1714
e mais não me emportuneis,
1715
já vo-lo não hei de dizer.

FLERISEL
1716
Sí diréis, si no la vida
1717
por ello se os quitará.

POMAREIRO
1718
Ai, quem me mandou vir cá?
1719
Eu a dou já por perdida.
1720
Castelão, tirai-vos lá.

FLERISEL
-->
1721
Mirad qué donaire aquel.
1722
No quitaré que es en vano.

POMAREIRO
1723
Que homem sois, castelhano?

FLERISEL
1724
Yo soy aquel Flerisel
1725
que de venir di la mano.

POMAREIRO
1726
Pois que vós sois, arrancai,
1727
para castelão tredor.

FLERISEL
1728
Tener vida te es peor.

POMAREIRO
1729
Ora, Flerisel, aguardai,
1730
por bem tudo é milhor.

FLERISEL
-->
1731
Al amor todo es debido.
1732
Qué queréis que haga, Blas Flores?

POMAREIRO
1733
Que já que aí estais rendido
1734
que tomeis por mijor partido
1735
de me deixar meus amores.

FLERISEL
1736
Ah, malcriado villano,
1737
que de hablar tal no se cata.
1738
Dexad la espada de la mano.

POMAREIRO
1739
Áque del rei que me mata
1740
este cruel castelhano.

Entra o Bobo e o Amo a apartá-los, e diz:

AMO
-->
1741
Apartai-vos, que estais sós,
1742
não haja ora mais guerreiros.

BOBO
1743
A paz, a paz, caballeros,
1744
no se maten tales dos
1745
asnos y más majaderos.

AMO
1746
Pois, siquer, vós, Flerisel,
1747
que vos tinha por sesudo,
1748
chegais ao cabo com tudo.

POMAREIRO
1749
Tende-o, Amo, que é cruel,
1750
já que eu me faço mudo.

AMO
-->
1751
Estais vós outros feridos
1752
dos golpes que tendes dados?

BOBO
1753
Hombres que son tan honrados
1754
de locos y sin sentidos
1755
habrán menester curados.

FLERISEL
1756
Bobo, escucha que eso daña
1757
a los hombres sus primores.

AMO
1758
Por que foi isto, Brás Flores?

POMAREIRO
1759
Porque ele a dama m’apanha
1760
com que eu ando d’amores.

FLERISEL
-->
1761
Parescióle a él aquello,
1762
la verdad es la que digo
1763
nunca tal pensé comigo.

AMO
1764
Ora pois de meu conselho
1765
haveis de ser seu amigo.

POMAREIRO
1766
Jeito a menencoria fora
1767
pois, Amo, aquilo assi é.

AMO
1768
Ora, Flerisel, feito é,
1769
manda-vo-lo minha senhora.

FLERISEL
1770
Hágase en esa hora
1771
pues dada tengo la fe
-->
1772
que merece ser servida
1773
señora tan soberana.

AMO
1774
Ora seja amizade comprida,
1775
e perder nam queira a vida
1776
ninguém mais por Floriana.d

POMAREIRO
1777
Nam, eu a aventurarei
1778
inda por ela mais vezes.

BOBO
1779
Llamarás aquí del rey.

AMO
1780
Heis de falar, bem o sei,
1781
não há i ouro sem fezes.
-->
1782
Ora vamo-nos, guerreiros,
1783
não queirais ganhar mais fama,
1784
sabei que a morte vos chama.

BOBO
1785
Amo, dicidme primero
1786
cuál se queda con la dama.

FLERISEL
1787
Todos vivimos con ella,
1788
queda con su servidor.

POMAREIRO
1789
Com quem lhe tem mais amor.

BOBO
1790
Mirad qué razón aquella,
1791
darla a mí fuera mejor.

POMAREIRO
-->
1792
Falai vós, Bobo, quiçais
1793
vos custará isso a vida.

AMO
1794
Brás Flores, por que roncais,
1795
que nas brigas que tomais
1796
a trazeis oferecida?

POMAREIRO
1797
Deixai-me vós, Amo, a mi
1798
que eu sei o que me cumpre agora.

AMO
1799
Ea, caminhar per i
1800
e trabalhar no jardim,
1801
que irá logo lá a senhora.

Vão-se e falam os escudeiros:

LUÍS DE SÁ
-->
1802
Grande desenfadamento
1803
dão autos desta feição.

PERO D’ABREU
1804
Os bons dão contentamento.

MORDOMO
1805
Não se sofre o enfadamento
1806
dos autos que tais nam são.

LUÍS DE SÁ
1807
Senhor Mordomo, tornemos
1808
à passada zombaria.

MORDOMO
1809
Por que tereis fantesia?
1810
Pois também chegar podemos
1811
à vossa cortesania.a

PERO D’ABREU
-->
1812
Tomai lá esse penego,
1813
fazei por vos sair em salvo
1814
pois vos metestes no pego.

LUÍS DE SÁ
1815
É como besteiro cego,
1816
tira até que dá no alvo.

MORDOMO
1817
Vejo que nam me chegais
1818
do meu entender à rama,
1819
pela tacha vos guiais.

LUÍS DE SÁ
1820
Atentai como falais,
1821
nam vos ouça vossa dama.

Entra o Porteiro e Ulinea e Floriana, e diz:

ULINEA
-->
1822
Porteiro, i-me chamar
1823
Flerisel, muito correndo,
1824
que lá baixo anda a cavar,
1825
que venha logo mondar
1826
esta rama que vai crecendo.

PORTEIRO
1827
Senhora, em tais vilões
1828
são necessários castigos,
1829
andam em brigas, folgazões.

ULINEA
1830
Deixai-vos dessas rezões,
1831
se brigaram são amigos.
-->
1832
Chamai-o e i ter cuidado,
1833
se vier meu pai embora,
1834
de estar tudo aparelhado.

PORTEIRO
1835
Sam mui contente, senhora,
1836
que a casa está a bom recado.

ULINEA
1837
Floriana, gracioso
1838
acho eu hoje este arvoredo.

FLORIANA
1839
Senhora, está saudoso,
1840
que o lugar que é amoroso
1841
nam faz o triste ser ledo.

ULINEA
-->
1842
Por mi o dizes, bem vejo
1843
que sabes meu sentimento.

FLORIANA
1844
Não lhe dê isso tormento.

ULINEA
1845
Dá-mo logo este desejo,
1846
que é senhor do pensamento. b

FLORIANA
1847
Nam pode ser mais cruel
1848
tam perigosa afeição.

ULINEA
1849
Nesta nam sigo a rezão.

FLORIANA
1850
Nam na ouça Flerisel,
1851
que vem com o sacho na mão.

ULINEA
-->
1852
Flerisel, a outra gente
1853
donde é ida agora?

FLERISEL
1854
Ambos a dos juntamente
1855
fueron a catar simiente
1856
para allí sembrar, señora.

ULINEA
1857
E tu estavas folgando
1858
esperando assi por eles.

FLERISEL
1859
No se huelga trabajando
1860
quien de contino esperando
1861
está sus penas crueles.

ULINEA
-->
1862
Em trabalho tão piqueno
1863
sentes tu o mal tamanho?

FLERISEL
1864
Señora, yo paso el daño,
1865
mas ya que yo me condeno
1866
no me vale el desengaño.

ULINEA
1867
Não te tem ninguém forçado,
1868
vai-te tu quando quiseres.

FLERISEL
1869
Ya está determinado
1870
que de mi grave cuidado
1871
no se cojan más placeres.

ULINEA
-->
1872
Já que assi é teu partido
1873
de quebrá-lo será leve.
1874
Tens dinheiro recebido?

FLERISEL
1875
No y lo que me es debido
1876
quédese con quien lo debe,
1877
basta que me satisfago
1878
con perder la esperanza.

ULINEA
1879
Se tu fizeres mudança
1880
tudo te será bem pago,
1881
nam haja desconfiança.

Vem o Amo e diz:

-->
1882
Senhora, seu pai chegou
1883
e o Príncipe d’Áustria também
1884
e por ela perguntou.

ULINEA
1885
Venham embora, eu me vou.
1886
Vem com eles mais alguém?

AMO
1887
A sua gente e nô mais.

ULINEA
1888
Creo, me parece a mi,
1889
que boas novas me dais.
1890
Flerisel, nam vos partais,
1891
ficai aqui no jardim.
-->
1892
Se o trabalho vos faz dano
1893
descansai, ficai embora.

AMO
1894
Fá-lo-eis assi, castelhano.

FLERISEL
1895
Mandado tan soberano
1896
forzado es cumplir, señora.
Vai-se e fala Flerisel só:
-->
1897
Es forzado encobrir,
1898
que mi padre no me vea.
1899
Él por mí ha de venir,
1900
yo no me puedo partir
1901
de lo que me manda Ulinea.
1902
Mándame que sirva y espere
1903
mas sin saber lo que quiere,
1904
y pues por servirla muero,
1905
sus, mi padre desespere
1906
de me ver, por lo que espero.

Entra Brás Flores com o ratinho e diz o Pomareiro:

-->
1907
Jesu, quanto castelhano
1908
trouxe o Conde a esta terra.

GIL
1909
Dou-vos eu um desengano,
1910
temo que me façam dano,
1911
que estes são homens de guerra.

POMAREIRO
1912
Nam me fio destas gentes,
1913
castelão co português
1914
nam fazem bom cerapez,
1915
falam-se por antredentes
1916
com os corações ao revés.

GIL
-->
1917
Digo que são mui guerreiros,
1918
nam lhe tenho devação.

POMAREIRO
1919
Nisso te acho rezão,
1920
mas o Conde aos estrangeiros
1921
mostra sua condição.
1922
Comer há de sobejar
1923
como tu verás agora.

GIL
1924
Sobeje-lhe ele muito embora,
1925
nam me hão lá de topar
1926
que eu não hei d’ir daqui fora.

POMAREIRO
-->
1927
Hão-te de matar, aguardai,
1928
terão de fama cobiça.

GIL
1929
Brás Flores, ora olhai,
1930
eu nam tenho mãe nem pai
1931
que os acuse a justiça.
1932
E se me matarem ir-se-ão
1933
outra vez pera Castela
1934
e lá nam nos prenderão.

POMAREIRO
1935
Ora cal-te besterrão,
1936
tapa logo esta goela
-->
1937
e deixa fazer os danos
1938
a quem neles for cruel.

GIL
1939
Lá os tenham muitos anos.
1940
Sabes tu dos castelhanos
1941
que são vindos? Di, Fardel.

FLERISEL
1942
El Amo dixo que entrados
1943
eran con su señoría.

POMAREIRO
1944
Eles são homens honrados
1945
porque vem mui bem tratados,
1946
trazem grande fantesia.

FLERISEL
-->
1947
Es verdad qu’es muy polido
1948
todo traje castellano.

POMAREIRO
1949
Tu por que não vens vestido?

FLERISEL
1950
Eso ya está entendido
1951
que no es más en mi mano.

Vem Ulinea e o Príncipe e o Conde, e diz Ulinea:

-->
1952
Jesu, não pode o coração
1953
com aquilo que deseja.
1954
Senhor, nam tome paixão
1955
e ponha este caso na mão
1956
de Deos, que fará que seja.

PRÍNCIPE
1957
A él plega que este cuidado
1958
con tal placer sea sano.
1959
Llama ese castellano.

GIL
1960
Não é ele, é escusado
1961
venir cá esse villano.

POMAREIRO
-->
1962
Não sei quem te há de sofrer
1963
que és grande emburilhador.
1964
Seja ora quem quiser,
1965
que te dá de o ele ver?
1966
Nam boquejes, falador.
1967
Quer que chamar eu por él
1968
e como vier vê-lo-á?

PRÍNCIPE
1969
Sí quiero, bueno será.

POMAREIRO
1970
Flerisel, ou Flerisel.

FLERISEL
1971
Qué mandáis?

POMAREIRO
Que vengáis cá.

FLERISEL
-->
1972
Ya voy, qué es lo que veo?
1973
Mi padre, gran desatino
1974
será seguir el camino,
1975
vuélvome, mas el deseo
1976
tengo por cruel destino.
1977
Ulinea es aquella
1978
y mi padre es aquel,
1979
qué harás aquí Flerisel?
1980
Pueda más el amor della
1981
que no la vergüenza dél.
-->
1982
Qué mandáis? Decí, Blas Flores.

POMAREIRO
1983
Como vindes devagar,
1984
querem-vos ver os senhores.
1985
Calhedes, de meus amores
1986
nada lhe queirais contar.

PRÍNCIPE
1987
Castellano andad acá
1988
en qué tierra sois nascido?

FLERISEL
1989
Señor, él lo saberá,
1990
también me perdonará
1991
el traje en que estoy vestido.

PRÍNCIPE
-->
1992
Sois vos, hijo, Flerisel?
1993
En verdad que no lo creo,
1994
ni sé si es lo que veo.
1995
Váyase mi mal cruel
1996
pues se cumplió mi deseo.

CONDE
1997
Nunca prazer tão estranho
1998
ouviu nenhum homem vivo.

ULINEA
1999
Tenha eu parte do ganho.

PRÍNCIPE
2000
Tengo ya por poco el daño
2001
según el bien que recibo.

ULINEA
-->
2002
Vossa exelência crea
2003
que o meu contentamento
2004
nam tem par no pensamento.

PRÍNCIPE
2005
Para el bien que me desea
2006
sobra en mí merecimiento,
2007
pues que soy su servidor
2008
y vasallo natural.

POMAREIRO
2009
Pois é seu filho, senhor,
2010
saiba quem trabalhador
2011
o fez cá em Portugal.

GIL
-->
2012
Também o eu saber queria,
2013
pergunte-lho pera ver.
2014
Fardel, já és senhoria,
2015
pois eu também algum dia
2016
espero que o hei de ser.

PRÍNCIPE
2017
En eso no porné pausa,
2018
saber quiero lo que creo,
2019
del traje en que te veo
2020
dime, pues, cuál fue la causa.

FLERISEL
2021
Señor, amor y deseo.

PRÍNCIPE
-->
2022
Amor hay tan grandioso
2023
que hace que eso sea?

FLERISEL
2024
Aún es tan poderoso
2025
que se hace de vencer dudoso
2026
cuando en alto se desea. c

PRÍNCIPE
2027
Pues con quién fue o adónde?
2028
Dime, que saber lo quiero.

FLERISEL
2029
Dicir el mal de que muero
2030
pláceme, si el señor Conde
2031
da licencia, como espero.

CONDE
-->
2032
Licença erro seria
2033
a quem o pode falar.

FLERISEL
2034
Mas merced m’ha d’otorgar.

CONDE
2035
Peça vossa senhoria
2036
já que me pode mandar.

FLERISEL
2037
Es que sea en mi favor
2038
en lo que quiero pedir
2039
al Príncipe mi señor.

CONDE
2040
Jesus, sou seu servidor,
2041
pormeto pelo servir..

FLERISEL
-->
2042
La causa, por que se crea
2043
cuán pequeña es la culpa,
2044
vuestra exelencia la vea
2045
que es la señora Ulinea
2046
que basta por mi desculpa.
2047
Que de su amor forzado,
2048
después de estar en su mano,
2049
se me olvidó vuestro estado
2050
y por servilla forzado
2051
me fue hacerme villano.
-->
2052
Ya que descobrí mi pena
2053
la merced que quiero ahora,
2054
si ella no me condena,
2055
pido que quien la ordena
2056
que se me dé por señora.

PRÍNCIPE
2057
Eso es grande atrevimiento.
2058
Para señora tan alta
2059
queréis tener pensamiento?

CONDE
2060
Sobeja-lhe o merecimento
2061
pois no amor não há falta.
-->
2062
Mas por que toda a vontade
2063
que eu nisso tenho se crea
2064
saberei com brevidade
2065
neste caso a verdade
2066
de minha filha Ulinea,
2067
porque dela saberei
2068
tudo o que saber queria.
2069
Contai-mo, pois o eu não sei.

ULINEA
2070
Saiba vossa senhoria
2071
que nada lhe negarei.
-->
2072
Vindo a este jardim folgar
2073
fui na casa um estrangeiro,
2074
senhor, acaso topar
2075
e pelo nela achar
2076
bradei logo com o Porteiro.
2077
E um pouco me detendo
2078
perguntei-lhe o que fazia,
2079
respondeu com cortesia
2080
que andava os paços vendo.
2081
Deixei-o, fui minha via.
-->
2082
Se desta vista forçado
2083
o fez ficar o amor
2084
nam sei mais que o passado.

CONDE
2085
Basta o que tendes contado.
2086
Fez-se, entam, trabalhador.

POMAREIRO
2087
Senhor, parece isto história,
2088
nam posso outra cousa crer,
2089
em tudo leva a vitória
2090
o amor com palma e glória.
2091
Nisto nam há que fazer.

GIL
-->
2092
Foi um cavaleiro andante
2093
que em ratinho se encantou.
2094
Assi dizem que Roldante
2095
que era um frumengo galante
2096
que d’amores doudo andou.

CONDE
2097
Pois do amor e Ventura,
2098
senhor, são estes extremos
2099
que é o que aqui faremos?

PRÍNCIPE
2100
Que ya que el mal tiene cura
2101
que luego los desposemos.

CONDE
-->
2102
Filha, sereis vós contente
2103
fazer-se este casamento?

ULINEA
2104
Senhor, o meu pensamento
2105
no que ele prazer sente
2106
levará contentamento.

CONDE
2107
Vós, senhor dom Flerisel,
2108
nisto nam sereis esquivo?

FLERISEL
2109
Amor me tiene captivo,
2110
mas no lo hallo cruel
2111
según el bien que recibo.

POMAREIRO
-->
2112
Senhor, saiba-se primeiro
2113
se é seu filho ou nam,
2114
e dispa logo esse gabão.

CONDE
2115
Tendes rezão, Pomareiro,
2116
outra roupa lhe trarão.

PRÍNCIPE
2117
Quitáos el traje, villano,
2118
tomad el vuestro natural
2119
pues dél se ha curado el mal.

PAJE
2120
Señor, extienda la mano,
2121
quitarle he ese sayal.

GIL
-->
2122
Tomai-vos ora lá com ele,
2123
olhai que em nada se dobra.
2124
Ah, que molher ali cobra.
2125
Sabei que despiu a pele
2126
como sói fazer a cobra.

FLERISEL
2127
Señora, pongo en olvido
2128
ya todo el daño pasado
2129
del tiempo que he trabajado
2130
y he por dichoso el partido,
2131
pues tan bien me han pagado.

ULINEA
-->
2132
A honra e virtude vossa
2133
tem tam grão merecimento
2134
que em me ver vossa esposa
2135
acho-me muito ditosa,
2136
sobeja-me o contentamento.

GIL
2137
Senhor, há de responder
2138
ao que quero perguntar
2139
porque o desejo saber.
2140
Se meu pai por mi vier
2141
com quem me há aqui de casar?

POMAREIRO
-->
2142
Isso já está assentado,
2143
nam tens mais que abrir a boca,
2144
como teu pai for chegado
2145
por te ver bem empregado
2146
casar-te-á com a forca.

CONDE
2147
Não perdereis casamento
2148
tende por cousa segura
2149
que vosso merecimento
2150
com muito contentamento
2151
vos dará firme a Ventura.

PRÍNCIPE
-->
2152
Pues ella quiso seguir
2153
y guiar de amor la danza
2154
hijos tened confianza
2155
que en lo que está por venir
2156
vos sobrará su bonanza.

Dece a Ventura de seu trono com os Sátiros cantando e chegam aos noivos acabando de cantar, e diz:

VENTURA
-->
2157
Em passo tam venturoso
2158
me quero mostrar segura.
2159
Viva tal amor de esposo,
2160
viva a esposa do amoroso
2161
que por vós está a Ventura.
2162
Lograi-vos com muito gosto,
2163
nam vos veja mal ninguém,
2164
ninguém vos veja desgosto,
2165
que minha roda vos tem posto
2166
no cume de tanto bem.
-->
2167
E o que comigo ordenei
2168
por pagar amor tam grande,
2169
qual nunca tal ver cuidei,
2170
sabei que um prego preguei
2171
nela por que não desande.
2172
Estas capelas de flores
2173
que prometem muita glória
2174
ficar-vos-ão por memória
2175
pera que destes amores
2176
sejam troféus de vitória.
-->
2177
Pera não sentirdes danos
2178
há i assaz merecimentos,
2179
quietai os pensamentos
2180
porque tereis muitos anos
2181
sobejos contentamentos.

CONDE
2182
Senhora, vossa grandeza
2183
é tal que nam pode ser
2184
deixar de isso acontecer,
2185
pois que tamanha certeza
2186
dais do futuro prazer.

PRÍNCIPE
-->
2187
Envidia tendré de ti,
2188
hijo, en cuanto viviere
2189
pues que tal bien darte quiere
2190
la Ventura, que de mí
2191
puede hacer lo que quisiere.

FLERISEL
2192
Los dos de cuyo placer
2193
el gusto mayor tenemos
2194
lo que de nos se ha de hacer,
2195
señora, en vuestro poder
2196
y en las manos lo ponemos.

ULINEA
-->
2197
Pois por amor entendido
2198
sei que fostes poderosa
2199
em vos mostrar piadosa
2200
nam nos falte o prometido
2201
pois vos Deos fez tão fermosa.

POMAREIRO
2202
Ventura tam soberana,
2203
pois tendes tantos primores,
2204
alembrai-vos de Brás Flores,
2205
pois ando por Floriana
2206
perdido por seus amores.

GIL
-->
2207
Senhora, se pode ser,
2208
antes que torneis a voar
2209
se isto me haveis de fazer:
2210
nunca queria morrer,
2211
se mo podeis outorgar.

CONDE
2212
Não vos queremos deter,
2213
senhora, que mais faremos?

VENTURA
2214
Que estas bodas celebremos
2215
com se cantar e tanger
2216
e que daqui os levemos.

PRÍNCIPE
-->
2217
Todo lo está otorgando,
2218
hágase, pues es servida.

VENTURA
2219
Eu os quero ir guiando
2220
com meus Sátiros cantando
2221
esta glória tam subida.

Vão-se e falam os escudeiros, e diz Pero d’Abreu:

-->
2222
A obra está exelente,
2223
nam se pode mais pintar,
2224
mas isto quero afirmar
2225
que há de haver quem não contente
2226
fique por nam praguejar.

MORDOMO
2227
Isso já é velho costume
2228
de nécios entendimentos;
2229
mas estes tais fundamentos
2230
creo que são o botume
2231
com que se vedam praguentos.

LUÍS DE SÁ
-->
2232
Essa rezão por mi tomo,
2233
que é discreta e terá fama.
2234
Mas porém, senhor Mordomo,
2235
sabei que eu nam sei como
2236
sofreis casar vossa dama.

MORDOMO
2237
Deixemos a zombaria
2238
pois vos hei de agasalhar,
2239
vamos buscar de cear.

LUÍS DE SÁ
2240
Ficará para outro dia,
2241
que não se me há d’olvidar.


Otro tipo (por añadir)