Gil Vicente

Farsa da Lusitânia





Texto utilizado para esta ediçao digital:
Vicente, Gil. Farsa da Lusitânia. [on-line] En: Camões, José (dir.) Teatro de autores portugueses do Séc. XVI. Base de dados textual Lisboa: Centro de Estudos de Teatro, Universidade de Lisboa. [15 janeiro 2023] Disponível em: http://www.cet-e-quinhentos.com/
Codificação de texto digital para EMOTHE:
  • Camões, José
  • Silva, Helena Reis

Nota para esta edição digital

Esta publicação faz parte do projeto de I+D+i «Teatro español y europeo de los siglos XVI y XVII: patrimonio y bases de datos», referência PID2019-104045GB-C54 (acrónimo EMOTHE), financiado pelo MICIN/AEI/10.13039/501100011033.



Auto chamado da Lusitânia.

A farsa seguinte foi representada ao muito alto e poderoso rei dom João, o terceiro deste nome em Portugal, ao nacimento do muito desejado príncipe dom Manoel, seu filho. Era do Senhor de 1532. E porque ao diante vai o argumento dela se nam põe aqui neste princípio. Começa a farsa num razoamento de uns judeus pelas figuras seguintes: Lediça, um Cortesão, a mãe da Lediça, Saulinho, Jacob e o pai deles. E diz logo Lediça, andando barrendo:

LEDIÇA
1
Muito tenho por fazer
2
e nam tenho feito nada:
3
esta lójia por varrer,
4
os mèninos por erguer
5
e enha mãe ensobradada.
6
Meu pai vai-se a passear
7
com oitros judeus andando
8
e a costura está folgando:
9
dois anos por acabar
10
o capuz de dom Fernando.
11
Meu pai nam era de arte
12
senam pera cavaleiro,
13
ou fidalgo, ou rendeiro,
14
e o cristão pera alfaiate,
15
sem agulha e sem dinheiro.

CORTESÃO
16
Vosso pai é cá, senhora?

LEDIÇA
17
Que lhe quereis vós, dizê?

CORTESÃO
18
Pregunto a vossa mercê.

LEDIÇA
19
Per i saiu ele fora,
20
arrecadar nam sei quê.
21
Quereis-lhe algũa coisa?
22
Havei-lo mester, senhor?

CORTESÃO
23
Tem ele muito lavor?

LEDIÇA
24
De ventura nam repoisa
25
nem sossega, o pecador.

CORTESÃO
26
Vossa mãe é também fora?

LEDIÇA
27
Mas em cima está cosendo
28
e eu ando isto fazendo.

CORTESÃO
29
Nam devia tal senhora
30
como vós d’andar varrendo
31
senam infiar aljofre
32
e perlas orientais.
33
Nam sei como isto se sofre.

LEDIÇA
34
Minha mãe tem no seu cofre
35
duas voltas de corais.

CORTESÃO
36
Senhora, sam cortesão
37
e da linagem de Eneas,
38
e por vossa inclinação
39
folgara de ser de Abraão
40
o sangue de minhas veas.
41
Mas vosso e nam de ninguém
42
é tudo o que está comigo,
43
e quero-vos grande bem.

LEDIÇA
44
Bem vos queira Deos, amém.
45
Quereis oitra coisa, amigo?

CORTESÃO
46
Temo muito que me leixe
47
vosso amor, pobre, coitado,
48
de favor, com que me queixe.

LEDIÇA
49
Lançai na sisa do peixe
50
e logo sões remediado.

CORTESÃO
51
Nam falo, senhora, disso
52
porque eu me queimo e arso
53
com dores de coração.

LEDIÇA
54
Muitas vezes tenho eu isso,
55
diz Mestr’Aires que é do baço
56
e reina mais no Verão.

CORTESÃO
57
Mas, senhora, por amar
58
fiz minha sorte sojeita
59
e perdi a mais andar.

LEDIÇA
60
Crede, senhor, que o jogar
61
poicas vezes aproveita.
62
Dom Donegal Saborido,
63
que tinha tanta fazenda,
64
por jogar está perdido,
65
que nam tem, o dolorido,
66
nem que compre nem que venda.

CORTESÃO
67
Ó doce frol antre espinhas,
68
crede o amor sem mudança
69
que vos tenho e que vos digo.

LEDIÇA
70
Assi ũas primas minhas
71
e toda esta vizinhança,
72
todos tem amor comigo.
73
Dom Izagaa Barabanel
74
e rabi Abrão Çacuto
75
e Donegal Coronel
76
e dona Luna de Cosiel
77
e todos me querem muito.

CORTESÃO
78
Senhora, por piedade,
79
que entendais minha rezão,
80
entendei minha verdade,
81
entendei minha vontade
82
e mudareis a tenção.
83
Entendei bem minha dor
84
e mil maleitas quartãs
85
que por vós me hão de matar.

LEDIÇA
86
Assi é meu pai, senhor,
87
que tem dores d’almorrãs
88
que é coisa d’apiadar.
89
Foi o ano tam chacoso
90
de doenças da màora
91
que creo bem o mal vosso,
92
porque dom Mossé Lendroso
93
nam morreu senam agora.

MÃE
94
Nam sei que chanto há de ser
95
de ũa filha que criei,
96
que coisa que lhe mandei
97
nunca a fez nem quis fazer.
98
Quando está, como agora,
99
na lójia e eu no sobrado,
100
chamo e chamo, brado e brado,
101
e como as pedras de Samora
102
dá ela por meu chamado.

CORTESÃO
103
Senhora, sois minha vida,
104
fiai no que digo eu.

LEDIÇA
105
Nam tenho roca de meu,
106
nem despois que sam nacida
107
nunca minha mãe ma deu.

MÃE
108
Lediça, filha doirada,
109
nam sobirás hoje cá?

LEDIÇA
110
Nam podo, que estou pejada.

MÃE
111
Pejada, milhor fadada
112
o senhor te fadará.
113
Casarás e lograr-t’-ás
114
à sombra do teu amor,
115
entances te pejarás,
116
pejar-t’-ás e parirás
117
um pampaninho de flor.

CORTESÃO
118
E fosse de quem eu digo...

LEDIÇA
119
Nam sinto aquelas rezões.

CORTESÃO
120
Que andais d’amores comigo.

LEDIÇA
121
As amoras e o trigo
122
vem no tempo dos melões.

MÃE
123
Sube já este sobrado,
124
que cedo te faça eu boda.

LEDIÇA
125
Acho cá todo enlodado:
126
Saulinho está luxado
127
e luxou a manta toda.
128
Nam gostais vós destas dores,
129
parece-vos isto vida?

CORTESÃO
130
Ó flor de minhas froles
131
e meus primeiros amores,
132
folgai ser de mi querida.

MÃE
133
Samuel, bem te encaminhas,
134
luxaste-te, filho meu.

LEDIÇA
135
Bem vo-lo dizia eu:
136
nam lhe compreis camarinhas,
137
agora ele fez o seu.
138
Que vos queira ouvir nam posso,
139
que me dizíeis agora?

CORTESÃO
140
Se sõis contente, senhora,
141
de eu ser namorado vosso.

LEDIÇA
142
Que o sejais muito embora,
143
porque Iuçah Namorado
144
é irmão de minha mãe
145
e Catelão Namorado
146
é meu primo e meu cunhado
147
e rendeiro na Sertãe.

MÃE
148
Que nam vens filha, Lediça,
149
nunca acabas d’alimpar?

LEDIÇA
150
Como sõis agastadiça!
151
Cudareis que de priguiça
152
nam fago senam folgar
153
ou samica estou dormindo.

MÃE
154
Ora faze, filha minha.

LEDIÇA
155
Eu estava-me já indo
156
e Menoah está saindo
157
no meo da camarinha.

CORTESÃO
158
Antre essas cousas louçãs
159
peço que me consoleis.

LEDIÇA
160
Pinhoada comereis
161
ou caçoila de maçãs,
162
vede vós o que quereis.

CORTESÃO
163
Peço esperança, cuitado,
164
e favor favorecido.

LEDIÇA
165
Isso é coisa d’adubado.

CORTESÃO
166
Oh, que mal ser namorado
167
onde nam é entendido.
168
Eu vou-me, vosso pai vem.

LEDIÇA
169
Mãe, vinde que vem meu pai.

MÃE
170
Que figeste? Guai, guai, guai,
171
ou falaste com alguém
172
ou nam sei como isto vai.

LEDIÇA
173
Com quem havia de falar?
174
Olhai que coisas aquelas.

MÃE
175
Se inda dorme Menoah
176
e deste três varradelas,
177
nam cuides de me enlodar
178
porque alguém te falou cá.

LEDIÇA
179
Se eu falei com ninguém
180
senam com esta vassoura,
181
nunca de má trama moira.

MÃE
182
Guarde-te Deos, filha, amém,
183
e te faga duradoira.

LEDIÇA
184
Mãe amiga, eu queria
185
que cesseis de me assacar,
186
que sairei de siso um dia
187
e poer-m’-ei nome Maria
188
ou Felipa ou Guiomar.
189
Que eu nam falei com ninguém
190
nem ninguém falou a mi,
191
nem ninguém chegou aqui.

MÃE
192
Bem o sei filha, meu bem,
193
prazeres veja de ti.

PAI
194
Levantaram-se os meninos?
195
O mantão mandai guardar.
196
Que temos pera jantar?

MÃE
197
Berenjelas e pepinos
198
e cabra curada ò ar.

PAI
199
E çanoiras, por que não,
200
com favas e alcorouvia
201
e cominho e açafrão?

MÃE
202
Pois o turco gram soldão
203
nam come tanta igoaria.
204
Quanta choca, quanta lama
205
que traz o mantão frisado,
206
que estava tam alimpado
207
que parecia ũa dama
208
diante seu namorado.
209
Por que nam fugis do lodo,
210
dizei? Nunca mal vos venha
211
nem dia dele, amém, amém.

PAI
212
Venho tam contente todo
213
como de saúde tenha
214
aquele que nos quer bem.
215
Encontrou-me o regedor,
216
fui eu assi encontrá-lo
217
onde mora Abrão Baeça,
218
falo-vos do seu favor,
219
que ató os pés do cavalo
220
m’abaixou sua cabeça.
221
Folgais, Hecer Beacar,
222
co a honra do nosso bem,
223
c’o bem do nosso prazer?

MÃE
224
Cousa é pera prezar,
225
que quem tal amigo tem
226
nam se deve de temer.

PAI
227
Nunca logre esse mantão
228
se o conde mordomo-mor
229
nam se emborcou ató chão
230
c’o barrete no arção,
231
como se eu fora doitor
232
da Casa da Rolação.
233
Sõis contente?

LEDIÇA
234
Já viestes, pai.

MÃE
Ledicina,
235
correge estas crenchas, filha,
236
e viste-te essoitra fraldilha
237
que essa vem-te pequenina,
238
e soa-te àquela rodilha.

LEDIÇA
239
Pai, trazeis-me algũa cousa?

PAI
240
Dize, gata preguiçosa,
241
por que nam pugeste aqui
242
a minha banca em que cosa?
243
Que nam vás por ela? Di,
244
já te esqueceu a punhada
245
que te dei, quando? Ora foi.
246
Quando te dão nam te dói.

LEDIÇA
247
Vede-la aqui alimpada,
248
melhor inda do que sói.
249
Assentai-vos a coser
250
que pareceis, assi, mal.

PAI
251
Assi o quero fazer.
252
Que me foste aqui trager?
253
Nam é este o meu didal,
254
este é o didal do mènino
255
que me tu aqui trazias.
256
Erga-se.

MÃE
É tamanino,
257
já quereis que faça pino
258
um anjinho d’oito dias.
259
Ei-lo vem, a criancinha
260
ergueu-se c’os negros medos.
261
Filho, amor, queres do pão?

SAULINHO
262
Dá-me o pentem, Ledicina.

PAI
263
Desenguiça-te c’os dedos
264
e pentea-te co a mão.

MÃE
265
Lediça, vai à janela,
266
traze-me a roca e a banca
267
e o fuso que está co ela.

LEDIÇA
268
Pardeos, mãe, i vós por ela
269
que nam sois cega nem manca.

PAI
270
Assentai-vos a fiar,
271
Saulinho e eu a coser,
272
Lediça guise o jantar
273
como acabar de varrer
274
e a loiça de lavar.

Cantam pai e filho cosendo:

275
Ai Valença, guai Valença,
276
de fogo sejas queimada,
277
primeiro foste de moiros
278
que de cristianos tomada.
279
Alfaleme na cabeça,
280
en la mano una azagaya,
281
guai Valença, guai Valença,
282
cómo estás bien asentada,
283
antes que sejam três dias
284
de moiros serás cercada.

PAI
285
E assi o foi.

MÃE
286
Por vida de dona Hecer,
287
dom Judah, quereis que vos diga?
288
Coidais que o sabeis todo.
289
Pera cantar e coser
290
haveis de dizer cantiga
291
que vos tire o pé do lodo.
292
A cantiga que eu queria,
293
ora olhai como a digo:
(Canta:)
294
Donde vindes filha,
295
branca e colorida?
296
De lá venho, madre,
297
de ribas de um rio,
298
achei meus amores
299
em um rosal florido.
300
Florido, enha filha,
301
branca e colorida?
302
De lá venho madre
303
de ribas de um alto,
304
achei meus amores
305
num rosal granado.
306
Granado, enha filha,
307
branca e colorida?

PAI
308
Se a cantiga nam falar
309
em guerra de coitiladas
310
e d’espadas desnuadas,
311
lançadas e encontradas,
312
e coisas de peleijar
313
nam nas quero ver cantar,
314
nem as posso oivir cantadas.

MÃE
315
Dom Judah, assi tenhais bem,
316
que se vir a guai espada
317
tirada na mão d’alguém
318
desnuada pera dar,
319
guaias de Hecer Beacar
320
e da saúde que tem,
321
porque logo som finada
322
com a afronta que me vem.

PAI
323
Nam já eu, que d’atrevido
324
se estiver nũa janela
325
e a porta toda trancada
326
e na praça o arroído
327
e eu com a lança e rodela
328
nam tenho medo de nada.
329
E se o nosso infante passa
330
e ele hoiver de passar,
331
o leão do oiro belo,
332
duque das partes dalém,
333
nam hei de ficar em casa
334
nem nenhum homem de bem.
335
Levarei ũa gualteira
336
e ũa lança longa, longa,
337
bem longa, muito comprida,
338
que haja seis lanças nela,
339
e buscar onde me esconda
340
pera esconder a vida
341
nam topem moiros com ela.

Vem Jacob, outro judeu, e diz:

342
Ando muito esfandegado.

PAI
343
Que é isso, irmão, que queres?

JACOB
344
Somos postos em prazeres
345
e trabalho mesturado.

MÃE
346
Isso é coisa de proveito?

JACOB
347
Mas juntei os mercadores
348
e acordámos os maiores
349
que os que temos algum jeito
350
nos façamos foliadores.

MÃE
351
Isso pera quê, dizei?

JACOB
352
Eu busquei isto de mi:
353
já vedes que el rei é aqui
354
e temos já aqui el rei,
355
santo mais que rei Davi,
356
a a sua bem assombrada
357
natural rainha Ester,
358
rainha Sabá doirada,
359
a rainha mais honrada
360
que dez reinos podem ter.
361
E também o príncipe,
362
nunca meteu aqui pé,
363
de nós seja festejado
364
como era desejado
365
e como fermoso é
366
o que seja bem logrado.
367
Vão-se todas ao sobrado.

Saem-se elas e despois de idas diz Jacob:

368
Falemos tu e eu sós:
369
que invenção faremos nós
370
num aito bem acordado
371
que tenha ave e piós?
372
Que folias já são frias
373
e as pélas, as mais delas,
374
e os toiros
375
mataram à mata-moiros
376
e a ussa já nam se usa,
377
e a festa nam se escusa
378
pois andamos nos pelouros.

PAI
379
Pera que compridamente
380
aito novo enventemos
381
vejamos um excelente
382
que presenta Gil Vicente
383
e per i nos regeremos.
384
Ele o faz em louvor
385
do príncipe nosso senhor
386
porque não pôde em Alvito.
387
Logo virá o relator,
388
veremos com que primor
389
argumenta bem seu dito.

Entra o Lecenciado argumentador da obra que adiante se segue e diz:

390
Oh que douda presunção
391
cuidar ninguém na pousada
392
que traz discreta invenção
393
aqui onde a descrição
394
tem sua própria morada.
395
Que a corte
396
é um precioso norte
397
que guia os mais sabedores,
398
e onde há rosas e flores
399
pampilos nam fazem sorte.
400
E pois o primor inteiro
401
nace aqui em tais lugares
402
e todo o al é grosseiro,
403
nam presuma o sovereiro
404
de dar tâmaras doçares.
405
Gil Vicente, o autor,
406
me fez seu embaixador,
407
mas eu tenho na memória
408
que pera tam alta história
409
naceu mui baixo doutor.
410
Creo que é da Pederneira,
411
neto dum tamborileiro,
412
sua mãe era parteira
413
e seu pai era albardeiro.
414
E per razão
415
ele foi já tecelão
416
destas mantas d’Alentejo,
417
e sempre o vi e vejo
418
sem ter arte nem feição.
419
E quer-se o demo meter,
420
o tecelão das aranhas,
421
a trovar e escrever
422
as portuguesas façanhas,
423
que só Deos sabe entender.
424
Doutro cabo,
425
dizem que achou o diabo
426
em figura de donzela
427
e ele namorou-se dela,
428
porém ela
429
era diabo encantado.
430
Levou-o a uns arvoredos,
431
vai a dama, assi a furto,
432
e alevanta os cotovelos
433
e levou-o polos cabelos
434
e fez-lhe o pescoço curto.
435
E meteu-o logo ess'hora,
436
sem lhe valerem seus gritos,
437
onde a Sebila mora,
438
encantada encantadora,
439
antre os malinos espritos.
440
E ali foi ensinado
441
sete anos e mais um dia,
442
e da Sebila enformado
443
dos segredos que sabia
444
do antigo tempo passado.
445
Em especial,
446
o antigo de Portugal:
447
Lusitânia que cousa era
448
e o seu original,
449
e por cousa mui severa
450
vo-lo quer representar.
451
E pera claro cimento
452
e a obra nam ser escura
453
direi em prosa o argumento,
454
porque a cousa que é segura
455
procede do fundamento.
456
E como sempre isto guardasse
457
este mui leal autor
458
até que Deos enviasse
459
o príncipe nosso senhor
460
não quis que outrem o gozasse.
Naquela cova Sebilária, muito sábio e prudentíssimo senhor, o autor foi ensinado que há três mil anos que ũa generosa ninfa chamada Lisibea, filha de ũa rainha de Berbéria e de um príncipe marinho, que a esta Lisibea os fados deram por morada naquelas medonhas barrocas que estão da parte do sol ao pé da serra de Sintra, que naquele tempo se chamava a serra Solércia. E como per vezes o Sol passasse polo opósito da lustrante Lisibea e a visse nua sem nenhũa cobertura, tam perfeita em suas corporais proporções como fermosa em todolos lugares de sua gentileza, houve dela ũa filha, tam ornada de sua luz que lhe puseram nome Lusitânia, que foi diesa e senhora desta província. Neste mesmo tempo havia na Grécia um famoso cavaleiro e mui namorado em estremo e grandíssimo caçador, que se chamava Portugal, o qual, estando em Hungria, ouviu dizer das diversas e famosas caças da serra Solércia, e veio-a buscar. E como este Portugal, todo fundado em amores, visse a fermosura sobrenatural de Lusitânia, filha do sol, emproviso se achou perdido por ela. Lisibea, sua madre, de desatinada ciosa morreu de ciúmes deste Portugal. Foi enterrada na montanha que naquele tempo se chamava a Félix deserta, onde depois foi edificada esta cidade, que por causa da sepultura de Lisibea lhe puseram nome Lisboa. Neste presente auto entrará primeiramente Lisibea e Lusitânia, e Portugal em trajos de caçador e messageiro do Sol, e depois Mercúrio com certas diesas. E porque o autor s’apressa pera vos representar o argumento que naquele tempo passaram Lisibea, grandíssima ciosa, com Lusitânia, sua filha, é razão que lhe dêmos lugar.

LISIBEA
461
Canseira da minha vida,
462
põe esses olhos no chão,
463
vela-te de ser perdida
464
e nam olhes tam garrida
465
quantos vem e quantos vão.

LUSITÂNIA
466
Oh que forte condição,
467
como sois destemperada
468
e ciosa sem razão.

LISIBEA
469
Eu não teria paixão
470
se te visse assossegada.
471
Mas tu olhas pera cá,
472
pera aqui e pera ali
473
e de cá pera acolá.

LUSITÂNIA
474
Esse olhar que mal me está,
475
se eu olho bem por mi?

LISIBEA
476
Oh como é de pouco aviso
477
dares sempre à cabecinha,
478
e tam prestes tens o riso,
479
que quem te vir emproviso
480
logo dirá que és doudinha.

LUSITÂNIA
481
Mãe, isso é cor de bradar
482
e tudo nam funde em nada,
483
que sem rir, ver nem falar,
484
todos me podem chamar
485
fermosa mal assombrada.
486
Mas nam se pode negar
487
que o ciúme é mal enfindo,
488
porque o muito ciar
489
às vezes faz acordar
490
o amor que jaz dormindo.

LISIBEA
491
Por mais que brava escumes
492
de te amar vem esta dor,
493
que te faço sabedor
494
que dos mui muitos ciúmes
495
nace o mui muito amor.

LUSITÂNIA
496
Esse muito é de mau tom.
497
Ó mãe, como estais errada,
498
porque o muito nam é nada
499
quando quer que nam é bom.
500
O querer há de ser são,
501
mui seguro e confiado,
502
isento, sem sospeição,
503
doce na conversação
504
e alegre no cuidado.

LISIBEA
505
Já som bem certa e segura
506
que o castigo é cousa cara.
507
Leixar-te quero à ventura,
508
que às vezes o tempo cura
509
o que a razão nam sara.
510
Teus olhos são teu perigo,
511
eles te castigarão.

LUSITÂNIA
512
Mãe a muita reprensão
513
busca mui poucos amigos,
514
e esta é a concrusão.
515
Eis cá vem um caçador.
516
Generoso representa,
517
e traz ar de gram senhor.

LISIBEA
518
Perto tinhas tu o amor
519
que asinha te ele contenta.
520
Nam me tens em nemigalha,
521
cambra venha que te encambre,
522
quant’a se tu és alambre
523
de longe tomas a palha.

LUSITÂNIA
524
Os ciúmes que em vós se montam
525
já nam hão de ser pequenos,
526
e quem porcos acha menos
527
em cada mouta lhe roncam.
528
Sabeis, mãe, em que me fundo?
529
Eu sam a filha do Sol,
530
e se o mundo teve flor
531
eu sam as flores do mundo,
532
e da presunção maior.
533
Que som tam fantesiosa
534
e tam chea de grandeza
535
que nam prezo ser fermosa
536
nem prezo a quem me preza,
537
e prezo-me de generosa.

Chega Portugal e diz:

PORTUGAL
538
Primeiro que vá à serra
539
Solércia, que vou buscar,
540
senhora, hei de preguntar
541
se as que nacem nesta terra
542
tem o céu a seu mandar,
543
que em Grécia nem ultramar
544
tal fermosura nam vi.
545
Senhora, venho a caçar,
546
mas a caça que matar
547
será o triste de mim.

LISIBEA
548
Que màora começastes
549
e que màora viestes
550
e que màora embarcastes
551
e que màora chegastes
552
e na negra vos erguestes!
553
Olhai aquela chegada
554
do que lhe dê Deos mau mês.

LUSITÂNIA
555
Nunca o falar descortês
556
aproveitou pera nada,
557
vede como isso dizês.

LISIBEA
558
Nesta brava serrania
559
brava o hei de desonrar.

LUSITÂNIA
560
Aqui e em todo lugar
561
muito dana o mau falar
562
e aproveita a cortesia.

PORTUGAL
563
Pois das lindas sois rainha,
564
das fermosas gram supremo,
565
de vos ciar em estremo
566
tem rezão, senhora minha.

LISIBEA
567
Senhora de vosso avô
568
e de vossa mãe cadela,
569
tirai aramá os olhos dela,
570
tirade pera vós só,
571
nam tenhais de ver co ela.

LUSITÂNIA
572
Folgai ora, havei prazer,
573
dai ao demo o arroído.

LISIBEA
574
Oh, que te vejo perder,
575
porque o dano da molher
576
sempre lhe entra polo ouvido.

LUSITÂNIA
577
Mãe, dos homens é falar
578
e das molheres ouvir
579
e do bom siso calar
580
e da prudência sentir
581
o que nam pode danar.
582
Cuidais que me há de comer?

LISIBEA
583
Eu nam te posso sofrir.
584
Desta dor hei de morrer.
585
Fica-te, que eu quero-me ir
586
pera mais nam parecer.
587
Minha morte é cerca e certa
588
e eu dou-te vida escura,
589
vou-me à minha sepultura
590
que está na serra deserta
591
feita per mão da ventura.

Vai-se Lisibea e diz Lusitânia:

592
Senhor, meu amigo caro,
593
vós ide entanto caçar,
594
porque a mi compre rezar
595
e chorar meu desemparo
596
e a vós de me leixar.

(Vai-se Portugal, diz Lusitânia em oração:)

597
Ó Minerva graciosa,
598
avogada da fermosura,
599
vem asinha,
600
e pois no céu és ditosa
601
parte da tua ventura
602
co a minha.
603
Ó preciosa diesa honesta,
604
Ramusia, deos da ventura
605
e da bonança,
606
converte meu choro em festa
607
e minha triste tristura
608
em esperança.
609
E tu, diesa Magesta,
610
das viúvas solitárias
611
protectora,
612
a minha pressa te apressa
613
pois sempre te paguei páreas
614
até agora.
615
Diesa Maia, diesa Juno,
616
diesa Palas, diesa Vesta,
617
ó senhora,
618
e tu senhor deos Neptuno,
619
e Vénus que a todos presta,
620
valei-me ora
621
e acabai c’o Sol meu pai
622
que me mande um messageiro
623
que me veja
624
e saiba como me vai,
625
e pois é pai verdadeiro
626
me proveja.

Entra o Maio, mensageiro do Sol, cantando:

627
Este é Maio, o Maio é este,
628
este é o Maio e florece,
629
este é Maio das rosas,
630
este é Maio das fermosas,
631
este é Maio e florece,
632
este é Maio das flores,
633
este é Maio dos amores,
634
este é Maio e florece.
Fala:
635
Mui muito m’espanto eu
636
de mundo tam albardeiro
637
que por eu ser prazenteiro
638
me tem todos por sandeu
639
e por sesudo Janeiro.
640
Pois hei de tomar prazer
641
e nam hei de ser com’este,
642
que o prazer crece o viver,
643
e quem isto nam fezer
644
nam terá vida que preste.
(Canta:)
645
Este é Maio, o Maio é este,
646
este é o Maio e florece.
(Fala:)
647
Hei de cantar e folgar
648
e bailar c’os corações,
649
e por me desenfadar
650
farei os asnos azurrar
651
e cantar os roussinóis.
652
E farei calar as rãs
653
de noite, e cantar os grilos
654
e as patas pelas menhãs,
655
e alimpar as maçãs
656
e florecer os pampilos.
657
Nam me hajais por estrangeiro,
658
Lusitânia, descansai,
659
que eu sam Maio e messageiro
660
e principal cavaleiro
661
da corte de vosso pai.
662
E mandou-vos visitar
663
e mais vos faz a saber
664
que vos quer logo casar,
665
e quer vosso parecer
666
pera se determinar.

LUSITÂNIA
667
Dize-lhe tu, Maio amigo,
668
que casar é forte caso
669
e nam casar gram perigo,
670
e que nam sei neste passo
671
que lhe diga, nem que digo.
672
Que ele o pode ordenar,
673
porém o meu parecer
674
é que o ditoso casar
675
está mais em acertar
676
que em sabê-lo escolher.

MAIO
677
Senhora, nam é rezão
678
encobrir esta alegria,
679
saiba vossa senhoria
680
que acabou sua oração
681
quanto vossa alma queria.
682
E por vosso bem ditoso
683
e merecer mui facundo
684
vem Mercúrio precioso,
685
deos dos comércios do mundo,
686
enleito por vosso esposo.
687
Vem co ele as soberanas
688
diesas de Grécia e Egipto.
689
Vénus vem com as troianas,
690
Verecinta com as romanas,
691
cantando com ledo spirito.
Vem estas deosas em dança ao som desta cantiga:
692
Luz amores de la niña
693
qué tan linduz ujuz ha,
694
qué tan linduz ujuz ha,
695
ay Diuz quién luz haverá,
696
ay Diuz quién luz cervirá.

VÉNUS
697
Dexemuz ora el cantar
698
y antes destaz ricaz bodaz
699
que venimos celebrar
700
pongámonuz hí luego todaz
701
cada una en su altar.
702
Verecinta, Februa y Vesta,
703
romanaz más singularez,
704
antes de empeçar la fiesta
705
poneos a la mano diestra
706
en vuestros çantoz altares.
707
Nuz tevemuz utroz dotez,
708
estaremuz deste lado,
709
todas seis muy veneradaz
710
y estos nuestros sacerdotez
711
rezarán su ordenado
712
y suz horaz ordenadaz.

Dinato e Berzabu, capelães destas deosas, começam dizendo:

DINATO
713
No saber universal
714
crê que o meu spírito voa.

BERZABU
715
Queres ũa cousa bõa,
716
antes que entremos ao al
717
rezemos a sexta e noa
718
e despois todalas horas
719
das negligências mundanas
720
em louvor das soveranas,
721
as diesas nossas senhoras
722
e milagrosas troianas.

DINATO
723
Ora rezemos, parceiro,
724
e por que seja milhor
725
toma, vês i o salteiro
726
de Nabucdonosor
727
que lhe furtou frei Sueiro.

BERZABU
728
Quem começará primeiro?

DINATO
729
Tu, que és amancebado
730
e és padre verdadeiro,
731
que tens filhos ao teu lado,
732
e eu sam ainda solteiro.

BERZABU
733
Beato seja o barão
734
que adora cães e gatos
735
e as moelas dos patos
736
e os miolos do cão
737
e o galo de Pilatos.

DINATO
738
Beato seja e aceito
739
o que doce língua tem
740
e a maldade no peito
741
e louva sempre o mal feito
742
e diz mal de todo bem.

BERZABU
743
Bento seja o verdadeiro
744
avarento per natura,
745
que pôs alma no dinheiro
746
e o dinheiro em ventura
747
e a ventura em palheiro.

DINATO
748
Bentos sejam os primeiros
749
que tomam por devação
750
avorrecer-lhe o sermão
751
e andam trás feiticeiros
752
de todo seu coração.

BERZABU
753
Bentos aqueles e aquelas
754
que só três Ave Marias
755
os enfadam nas capelas,
756
e folgam d’ouvir novelas
757
que durem noites e dias.

DINATO
758
Adiante vá a molher
759
que nam crê senam patranhas,
760
e reza sempre às aranhas
761
e nam crê o que há de crer
762
e adora as tartaranhas.

BERZABU
763
Nam se poderá cuidar
764
mal que a gente nam adore,
765
louvemos seu descuidar,
766
que o mundo quer-se finar
767
e nam há i quem no chore.

DINATO
768
Nem somente quem o crea,
769
nem sentem as criaturas,
770
que há de morrer sem candea
771
e espirar às escuras,
772
como triste em terra alhea.

BERZABU
773
Os infernos são pasmados
774
dos sofrimentos de Deos
775
que lhes criou sete céus
776
todos sete a eles dotados.

DINATO
777
E eles desacordados
778
de tanta benfeitoria
779
vão-lhe pecar cada dia
780
em todos sete pecados.
781
Aleluia, aleluia.
782
Vamo-nos aos bons bispos.

BERZABU
783
Acharemos porcos piscos.

DINATO
784
Oremus.

BERZABU
785
Rogo-te, irmão, que acabemos
786
porque nunca acabaremos.

DINATO
787
Acabemus.

BERZABU
788
Por darmos algũa conta
789
ao deos rei Lucifer
790
põe-te tu a escrever
791
tudo quanto aqui se monta
792
e quanto virmos fazer.
793
Porque a fim do mundo é perto
794
e pera o que nos hão de dar
795
cumpre-nos ter que alegar,
796
pois pera provar o certo
797
escreve quanto passar.

Entra Todo o Mundo, homem como rico mercador, e faz que anda buscando algũa cousa que se lhe perdeu. E logo após ele um homem vestido como pobre, este se chama Ninguém, e diz Ninguém:

798
Que andas tu i buscando?

TODO O MUNDO
799
Mil cousas ando a buscar,
800
delas nam posso achar,
801
porém, ando perfiando
802
por quam bom é perfiar.

NINGUÉM
803
Como hás nome, cavaleiro?

TODO O MUNDO
804
Eu hei nome Tod’o Mundo
805
e meu tempo todo enteiro
806
sempre é buscar dinheiro
807
e sempre nisto me fundo.

NINGUÉM
808
E eu hei nome Ninguém
809
e busco a conciência.

BERZABU
810
Esta é boa experiência,
811
Dinato escreve isto bem.

DINATO
812
Que escreverei, companheiro?

BERZABU
813
Que Ninguém busca conciência
814
e Tod’o Mundo dinheiro.

NINGUÉM
815
E agora que buscas lá?

TODO O MUNDO
816
Busco honra muito grande.

NINGUÉM
817
E eu virtude que Deos mande
818
que tope co ela já.

BERZABU
819
Outra adição nos acude,
820
escreve logo i a fundo
821
que busca honra Todo Mundo
822
e Ninguém busca virtude.

NINGUÉM
823
Buscas outro mõr bem qu’esse?

TODO O MUNDO
824
Busco mais quem me louvasse
825
tudo quanto eu fezesse.

NINGUÉM
826
E eu quem me reprendesse
827
em cada cousa que errasse.

BERZABU
828
Escreve mais.

DINATO
Que tens sabido?

BERZABU
829
Que quer em extremo grado
830
Todo o Mundo ser louvado
831
e Ninguém ser reprendido.

NINGUÉM
832
Buscas mais, amigo meu?

TODO O MUNDO
833
Busco a vida e quem ma dê.

NINGUÉM
834
A vida nam sei que é,
835
a morte conheço eu.

BERZABU
836
Escreve lá outra sorte.

DINATO
837
Que sorte?

BERZABU
Muito garrida:
838
Todo o Mundo busca a vida
839
e Ninguém conhece a morte.

TODO O MUNDO
840
E mais queria o paraíso
841
sem mo ninguém estrovar.

NINGUÉM
842
E eu ponho-me a pagar
843
quanto devo pera isso.

BERZABU
844
Escreve com muito aviso.

DINATO
845
Que escreverei?

BERZABU
Escreve
846
que Todo Mundo quer paraíso
847
e Ninguém paga o que deve.

TODO O MUNDO
848
Folgo muito d’enganar
849
e mentir naceu comigo.

NINGUÉM
850
Eu sempre verdade digo
851
sem nunca me desviar.

BERZABU
852
Ora escreve lá compadre,
853
nam sejas tu preguiçoso.

DINATO
854
Quê?

BERZABU
855
Que Todo Mundo é mentiroso
856
e Ninguém diz a verdade.

NINGUÉM
857
Que mais buscas?

TODO O MUNDO
Lisonjar.

NINGUÉM
858
Eu som todo desengano.

BERZABU
859
Escreve, ande lá, mano.

DINATO
860
Que me mandas assentar?

BERZABU
861
Põe aí mui declarado,
862
nam te fique no tinteiro:
863
Tod’o Mundo é lisonjeiro
864
e Ninguém desenganado.

VÉNUS
865
Capelanes y nos todas,
866
pues que tenéis bien rezadas
867
vuestras horas ordenadas,
868
concluyamos nuestras bodas,
869
bodas bienaventuradas.
Tornam à sua cantiga, bailando todos ao som dela:
870
Luz amores de la niña
871
qué tan linduz ujuz ha,
872
qué tan linduz ujuz ha,
873
ay Diuz quién luz haverá,
874
ay Diuz quién luz haverá.
875
Tiene luz ujuz de açor
876
hermuzuz como la flor,
877
quien luz sirviere de amor
878
no sé cómo vivirá,
879
qué tan linduz ujuz ha,
880
ay Diuz quién luz servirá,
881
ay Diuz quién luz haverá.
882
Suz ujuz son naturales
883
de las águilas reales,
884
los vivuz hazen mortales,
885
los muertuz suspiran allá,
886
qué tan linduz ujuz ha,
887
ay Diuz quién luz servirá,
888
ay Diuz quién luz haverá.

VÉNUS
889
Oh Lusitania, señora,
890
tú te puedes alabar
891
de desposada dichosa
892
y pámpano de la rosa
893
y serena de la mar.
894
Frescura de las verduras,
895
rocío dell alvorada,
896
perla bienaventurada,
897
estrella de las alturas,
898
graça blanca namorada.

VERECINTA
899
Dulçura de la mi vida,
900
bendita quien te parió,
901
mi niñita esclarecida,
902
oh cómo erez parecida
903
al padre que t’engendró,
904
pues que hija del Sol erez
905
que da luz a toda cosa,
906
y tú a todaz laz mujeres.
907
Oh Mercurio qué máz quierez
908
que tal perla por espuza?

FEBRUA
909
Consuelo de mis entrañas,
910
alma de la vida mía,
911
pues que te sobra alegría
912
reparte con las montañas
913
desiertas sin compañía.
914
Que este galán desposado,
915
de los más lindos que yo vi,
916
es planeta venerado
917
y te estuvo bien guardado
918
en el cielo para ti.

JUNO
919
Norabuena tú lo viste,
920
norabuena lo cobraste
921
y norabuena naciste,
922
que tal esposo cobraste
923
para nunca seres triste.

MERCÚRIO
924
Sus, faça-se o que se requere
925
pois pera minha naceu,
926
mas o que daqui se enfere
927
maridá-la nam espere
928
porque nam se usa no céu.

VERECINTA
929
Guayas della y de su vida,
930
de su cuerpo y su lindeza
931
y de su gracia vellida,
932
a qué manos es venida
933
la flor de la gentileza!

VÉNUS
934
Y nunca ha de ser preñada
935
ni maridada la triste?

MERCÚRIO
936
Que quer ela de mais nada
937
senam ser de mi amada
938
o mais que tu nunca viste?

PALAS
939
Todo eso tu sueño sueña,
940
arraca, burra de Logroño,
941
para jaula es la cigüeña.
942
Ansí que no harás dueña
943
ni serás tan poco dueño.

VÉNUS
944
Ay de ti, lirio florido,
945
ay de ti, çarça florida,
946
cuando tu fresco sentido
947
se hallare con marido
948
y le hallare marida.

MERCÚRIO
949
Oh, renego de Turquia,
950
eu lhe dou meu coração
951
com tanta glória e alegria
952
que as aves lhe cantarão
953
continuada melodia.

VÉNUS
954
Las aves a la desposada,
955
sabes que se monta ahí?
956
Cantarle han por alvorada
957
«la bella mal maridada
958
mal gozo viste de ti».

JUNO
959
Mi esmeralda oriental,
960
casar sin ayuntamiento
961
y el marido inmortal,
962
esta casadica tal,
963
guayas de su pensamiento.

LUSITÂNIA
964
O que há de ser há de ser,
965
nam hei de enjeitar ventura,
966
e quanto a vossos dizeres
967
se nam for pera molher
968
ao menos serei segura
969
de se perder por molheres.

VESTA
970
Diz que vigüela sin cuerda
971
y caballero sin lança
972
y casada sin maridança
973
no se escusa que concuerda.

LUSITÂNIA
974
Quando eu imaginar
975
na honra que tanto importa
976
que há i mais que desejar?
977
Porque se a coma for torta
978
isto a pode endereitar.

VÉNUS
979
Señor, muéstrate templano,
980
marido muy sin provecho,
981
estáste ahí fantasma hecho
982
sin tomalla de la mano
983
y la otra puesta en su pecho.
984
Quien ve la cosa hermosa
985
que no desea tocarla?
986
Vámonos, por vida vuestra,
987
y pues ya que ha de llevarla
988
no hagamos otra cosa.

Torna Portugal da caça e diz:

989
Segundo se me afegura
990
e este caso se moveu
991
e minha alma nam segura
992
eu perdi a mor ventura
993
que homem nunca perdeu.
994
Quem tem tempo e espera tempo,
995
tem maré e espera maré,
996
tem vento e espera vento,
997
nam teve conhecimento
998
da fortuna que cousa é.
999
Que erro pera doer
1000
grande pena em demasia,
1001
quando homem vê perder
1002
o bem que pudera haver
1003
e o leixou de dia em dia.
1004
Nam sei como me enlheou
1005
esta safira de Pérsia
1006
que me dixe «enquanto eu vou
1007
chorar a mãe que me criou
1008
i-vos à serra Solércia».
1009
Eu errei em a leixar
1010
e mereço este castigo,
1011
porque o verdadeiro amigo
1012
se vê o amigo chorar
1013
sempre o há d’achar consigo
1014
e sentir as suas dores
1015
na sua angústia maior.
1016
Ó Lusitânia, os teus primores
1017
me causaram tais amores
1018
que me esqueceu este amor.
1019
Ó senhora, onde vos is,
1020
amor onde me leixais,
1021
pera que terra partis,
1022
por que nam vos despedis
1023
deste triste que enjeitais?
1024
Dizei-lhe antes da partida,
1025
sequer já por despedida,
1026
«fica-te, homem d’amargura,
1027
em tal dia e hora escura
1028
que com a dita mais perdida
1029
ande o teu corpo sem vida
1030
e sem alma e sem ventura».

LUSITÂNIA
1031
Meu pai manda-me levar
1032
e à lei obedecer,
1033
estou pera me casar
1034
e vou-me longe morar
1035
e perto de o fazer.

PORTUGAL
1036
Senhora, nam vos atalho
1037
o caminho começado,
1038
porque o desventurado
1039
seu descanso é o trabalho
1040
e sua glória o cuidado.
1041
Nam me fica que perder,
1042
pois que a fortuna malina
1043
vos buscou este prazer
1044
como quem queria ver
1045
o cabo à minha mofina.

VERECINTA
1046
Si tú amores tenías
1047
con galán tan esmerado
1048
por qué quieres bodas frías
1049
y vivir todos tus días
1050
con hombre desnamorado?
1051
Que este nobre Portugal
1052
es fundado sobre amor
1053
y es marido natural,
1054
estotro es un bestial,
1055
una siba sin sabor,
1056
un caldo de briguigones.
1057
Y Portugal, si crer me quieres,
1058
es varón de los varones,
1059
servidor de las mujeres
1060
más que todas las naciones.

JUNO
1061
Lusitania, «vuelta vuelta»
1062
bien te dice Verecinta,
1063
hazlo ansí como lo pinta,
1064
pues Dios quiso qu’estás suelta,
1065
nesotro no gastes tinta.
1066
Porque será cosa escura
1067
lo que se sigue de aquí,
1068
darte la buena ventura
1069
tanta gracia y hermosura
1070
sin quedar casta de ti.

MERCÚRIO
1071
Isso vede vós e elas,
1072
tudo seja a seu serviço,
1073
porque se eu fora castiço
1074
já i houvera mais estrelas.
1075
Se Portugal desejais,
1076
sendo vós eu o tomaria.

LUSITÂNIA
1077
Pois tinh’eu em fantesia
1078
que vos doesse isso mais,
1079
sequer por galantaria.
1080
Portugal, senhoras, quero,
1081
a quem Deos sempre resguarde
1082
e seu príncipe lhe guarde
1083
como esperais e espero
1084
e reine próspero e tarde.

VÉNUS
1085
Portugal, dados las manos
1086
y luego fiesta a la mano,
1087
el cantar que le digamos
1088
será el que en Grecia usamos,
1089
tornado en buen castellano.
Cantam:
1090
Vanse mis amores, madre,
1091
luengas tierras van morar,
1092
yo no los puedo olvidar,
1093
quién me los hará tornar,
1094
quién me los hará tornar.
1095
Yo soñara, madre, un sueño
1096
que me dio en el coraçón,
1097
que se iban los mis amores
1098
a las islas de la mar,
1099
yo no los puedo olvidar,
1100
quién me los hará tornar,
1101
quién me los hará tornar.
1102
Yo soñara, madre, un sueño
1103
que me dio en el coraçón,
1104
que se iban los mis amores
1105
a las tierras d’Aragón,
1106
allá se van a morar,
1107
yo no los puedo olvidar,
1108
quién me los hará tornar,
1109
quién me los hará tornar.

Laus Deo.