1
Ah, senhor Anfatrião,
2
onde está todo meu bem,
3
pois meus olhos vos nam vem
4
falarei c’o coração
5
que dentro n’alma vos tem.
6
Ausentes duas vontades,
7
qual corre mores perigos,
8
qual sofre mais crueldades:
9
se vós antre os enemigos
10
se eu antre as saudades?
11
Que a ventura que vos traz
12
tam longe da vossa terra
13
tantos desconcertos faz
14
que se vos levou à guerra
15
nam me quis leixar em paz.
16
Brómia, quem com vida ter
17
da vida já desespera
18
que lhe poderás dizer?
Brómia
19
Que nunca se viu prazer
20
senão quando nam se espera.
21
E, portanto, nam devia
22
de ter triste a fantesia
23
porque, vossa mercê crea,
24
que o prazer sempre saltea
25
quem dele mais desconfia.
26
Eu tenho no coração
27
do senhor Anfatrião
28
venha hoje algũa nova.
29
Nam receba alteração,
30
que a verdadeira afeição
31
na longa ausência se prova.
Almena
32
Dizei logo a Feliseu
33
que chegue muito apressado
34
ao cais e busque meio
35
de saber se algum recado
36
do porto pérsico veio.
37
E mais lhe haveis de dizer,
38
isto vos dou por ofício,
39
dalgũa nova saber
40
enquanto eu vou fazer
41
aos deoses sacrefício.
Vai-se Almena, e diz Brómia:
42
Saudades de minha ama,
43
chorinhos e devações,
44
sacrefícios e orações
45
me hão de lançar nũa cama
46
certamente.
47
Nós, molheres, de semente
48
somos sedenho tam tosco
49
que com qualquer vento que vente
50
queremos forçadamente
51
que os deoses vivam connosco.
52
Quero Feliseu chamar
53
e dezir-lhe aonde há de ir,
54
mas ele como me vir
55
logo há de querer rinchar
56
de travesso.
57
Eu, que de zombar nam cesso,
58
por ficar com ele em salvo
59
lanço-lhe um e outro remesso;
60
aos seus furto-lhe o alvo
61
e então ele fica avesso,
62
porque o milhor destas danças
63
com uns vendiços assi
64
é trazê-los por aqui
65
ò cheiro das esperanças
66
por viver.
67
Há-os homem de trazer
68
nos amores assi mornos,
69
só pera ter que fazer,
70
e depois ao remeter
71
lançar-lhe a capa nos cornos.
72
Feliseu, se estais à mão
73
chegai cá. Vem como um gamo,
74
bem sei que nam chamo em vão.
Vem Feliseu.
Feliseu
75
Chamais-me? Também vos chamo.
76
Porém, eu ouço e vós não.
77
Senhora, que me matais.
78
Se vós já nunca me ouvis
79
ou me ouvis e vos calais
80
dizei por que me chamais
81
se me vós a mim fogis?
Feliseu
Fogis, digo,
83
de dar a meus males cabo.
Brómia
84
Sabei que desse perigo
85
nam fujo como de imigo,
86
fujo como do diabo.
Feliseu
87
Dai ao demo essa tenção,
88
usai antes de cortês,
89
caí vós nesta razão.
Brómia
90
Do perigo fogem os pés,
91
do diabo o coração.
Feliseu
92
Dizeis-me que nessa briga
93
do meu coração fogis?
Brómia
94
Ainda qu’eu isso diga…
Feliseu
95
Ah, minha doce enemiga,
96
bem sinto que me sentis.
97
Mas para que me chamais?
Brómia
98
Manda-vos minha senhora
99
que chegueis daqui ao cais
100
e algũas novas saibais
101
d’Enfatrião nessa hora.
Feliseu
102
Quem as não sabe de si
103
doutrem como as saberá?
Brómia
104
Não nas sabeis vós de mi?
Feliseu
105
Má trama venha por ti,
106
dona feiticeira má
107
Por que não me olhas dereito,
108
cadela, que assi me cortas?
Brómia
109
Porque vos quero dar portas,
110
que s’eu olhar doutro jeito
111
trarei cem mil vidas mortas.
Feliseu
112
E pois pera que me andais
113
enganando há cem mil anos?
Brómia
114
Dou-vos vida com enganos.
Feliseu
115
Nesses enganinhos tais
116
acho cruéis desenganos.
Brómia
117
Quant’a esses vos quero eu dar,
118
vós cuidais que estais na sela?
119
Pois podeis-vos decer dela
120
qu’eu nunca vos pude olhar.
Feliseu
121
Jogais comigo à panela?
122
Tendes-me há tanto cativo
123
e desenganais-me agora?
124
Tudo isso é o que privo,
125
assi, que é isso senhora?
126
Dou-che-lo-morto, dou-che-lo-vivo?
127
Se me vós desenganais
128
no cabo de tantos anos
129
direi, se licença dais,
130
dais-me vida com enganos,
131
desenganos já chegais.
132
Mas se isso havia de ser,
133
dizei, má desconhecida,
134
desterro de meu viver,
135
que vos custava dizer:
136
amor vai buscar tua vida?
Brómia
137
Zombais? Falais-me coprinhas?
Feliseu
138
Rir-vos-eis, se vem à mão.
139
Copras não, mas isto são
140
ansias y pasiones minhas,
141
dos bofes e coração.
Brómia
142
Is-vos fazendo duns sengos.
Feliseu
143
Perdóneme Dios si peco.
Brómia
144
Nesses dentinhos framengos
145
conheço que sois um peco
146
de todos quatro avoengos.
Feliseu
147
Tudo vos levo em capelo,
148
já qu’estais tanto em agraço.
149
Porém, falando singelo,
150
a furto desse mau zelo
151
quereis-me dar um abraço?
Brómia
152
Ora digo que não posso
153
usar convosco de fero.
154
Tomai-o.
Feliseu
Já o nam quero,
155
porque esse abraço vosso
156
sabei que é engano mero.
Brómia
157
Oh, vós sois duns sensabores.
158
Abraço pedis assim?
159
S’eu remango dum chapim…
Feliseu
160
Tudo isso são favores,
161
zombai, vingai-vos de mim.
Brómia
162
Vós de forioso touro
163
as garrochas não sentis.
Feliseu
164
Vedes? Com isso sou mouro:
165
quando cuido que sois ouro
166
acho-vos toda ceitis.
Brómia
167
Enfim, sanha de vilão
168
vos fez perder um bom dia.
Feliseu
169
Já agora o eu tomaria,
170
quereis-mo dar?
Brómia
Agora não.
171
Cocei-vos eu todavia.
Feliseu
172
Pois, senhora, a quem vos ama
173
sois tam desarrazoada
174
quero tomar outra dama
175
que nam digam os d’Alfama
176
que nam tenho namorada.
Brómia
179
Deixai-me. Pois me enjeitais
180
eu me ausentarei daqui
181
onde me mais não vejais.
Brómia
183
Não são essas minhas manhas.
Feliseu
184
Porém, is-vos todavia?
Brómia
185
Voyme a tierras extrañas
186
adó ventura me guía.
Vai-se Brómia, e diz Feliseu:
187
Fantesias de donzelas
188
não há quem como eu as quebre,
189
porque certo cuidam elas
190
que com palavrinhas belas
191
vos vendem gato por lebre.
192
Esta tem lá pera si
193
qu’eu sou por ela finado
194
e crê que zomba de mim
195
e eu digo-lhe que sim,
196
sou por ela esperdiçado.
197
Preza-se de ũas feguras
198
e eu nam quero mais Frandes,
199
dou-lhe trela às travessuras,
200
porque destas coçaduras
201
se fazem as chagas grandes.
202
Qu’estas que andam sempre à vela
203
estas vos digo eu que coço,
204
porque de firmes na sela
205
crem que falsam a costela
206
e ficam pelo pescoço.
207
Que quando estas damas tais
208
me cacham então recacho.
209
Mas disto agora nô mais,
210
quero-me ir daqui ao cais
211
ver se algũas novas acho.
Vai-se Feliseu e vem Júpiter e Mercúrio, e diz Júpiter:
212
Oh, grande e alto destino,
213
oh, potência tam profana
214
que a seta dum menino
215
faça que meu ser devino
216
se perca por cousa humana.
217
Que me aporveitam céus,
218
onde minha essência mora
219
com tanto poder, se agora
220
a quem me adora por Deos
221
sirvo eu como senhora?
222
O que estranhar afeição
223
que em baxa cousa vai pôr
224
a vontade e o coração
225
sabe tam pouco d’amor
226
quam pouco amor da rezão.
227
Mas que remédio hei de ter
228
contra molher tam terríbel
229
que se nam pode vencer?
Mercúrio
230
Alto senhor, a teu poder
231
o defícel lhe é possível.
Júpiter
232
Tu nam vês qu’esta molher
233
se preza de vertuosa?
Mercúrio
234
Senhor, tudo pode ser,
235
que pera quem muito quer
236
sempre afeição é manhosa.
237
Seu marido está ausente
238
na guerra, longe daqui.
239
Tu, que és Júpiter potente,
240
tomarás sua forma em ti,
241
que o farás mui facilmente.
242
E eu me trasformarei
243
na de Sósia, criado seu,
244
e ao arraial me irei
245
onde logo saberei
246
como se a batalha deu.
247
E assi poderás entrar
248
em lugar de seu marido,
249
e pera que sejas crido
250
poderás também contar
251
quanto eu lá tever sabido.
Júpiter
252
Quem arde em tamanho fogo
253
tira-lhe a vertude a cor
254
de sotil e sabedor,
255
e quem fora está do jogo
256
enxerga o lanço melhor.
257
Mas tu, que dos sabedores
258
tanto avante sempre estás,
259
se deos és dos mercadores
260
sê-lo-ás dos amadores
261
pois tal remédio me dás.
262
Ponha-se logo em efeito,
263
que não sofre dilação
264
quem o fogo tem no peito,
265
e tu vai logo dereito
266
onde anda Enfatrião.
Vão-se e vem Feliseu e Calisto, e diz Feliseu:
267
Adó bueno por aquí,
268
tão longe do acostumado?
Calisto
269
Mais longe vou eu de mi
270
d’ir perto de meu cuidado.
Feliseu
271
No andar vos conheci.
Calisto
272
E vós onde vos lançais
273
com vossa contemplação?
Feliseu
274
Eu chego daqui ao cais
275
a saber d’Enfatrião.
276
Não sei se vou por demais.
Calisto
277
Por que por demais dizeis?
Feliseu
278
Porque nada ali é certo.
Calisto
279
Novas lá não nas busqueis
280
que aqui as tendes mais perto.
Feliseu
281
Pois dai-mas se as sabeis.
Calisto
282
Um navio é já chegado
283
à barra, que vem de lá,
284
traz d’Anfatrião recado:
285
diz que o dexa embarcado
286
pera se vir para cá.
287
Tem vencido aquele rei
288
e diz, segundo lhe ouvi,
289
que esta noute será aqui.
Feliseu
290
Essas novas levarei
291
Almena que torne em si,
292
porque ela tem maior guerra
293
c’os temores de perdê-lo
294
que ele c’o rei dessa terra.
Calisto
295
Onde amor lançar o selo
296
nenhũa cousa o desterra,
297
porque inda que o pensamento
298
vos fique, senhor, em calma
299
por morte ou apartamento,
300
sempre vos lá ficam n’alma
301
as pegadas do tromento.
Feliseu
302
Isso é um segredo mero
303
a que amor nos obriga,
304
por isso em caso tam fero,
305
senhor, nunca ninguém diga:
306
já lho quis e não lho quero.
307
Eu quis bem a ũa molher
308
que vós conhecestes bem,
309
e com muito lhe querer
310
casou-se.
Calisto
Oh, e com quem,
311
que ainda o não posso crer?
Feliseu
312
Com um mercador que veio
313
agora do Egipto, rico.
Calisto
314
Isso traz água no bico.
315
Esse homem é parvo ou feio.
Feliseu
316
Pois vedes? Disso me pico.
317
E em pago desta treição,
318
afora outros mil descontos
319
que traz consigo afeição,
320
sempre os sinais destes pontos
321
trarei no meu coração.
Feliseu
Senhor vi,
323
na jenelinha da grade,
324
passei e dixe-lhe assi:
325
casada sem piedade
326
por que não na haveis de mi?
Feliseu
Lá no centro
328
lhe enxerguei pouca alegria,
329
e como quem lhe doía,
330
metendo-se pera dentro,
331
dixe: já pasó solía.
Calisto
332
Ah, má sem conhecimento,
333
que lhe desse mil chofradas.
Feliseu
334
Senhor, como são casadas
335
casam-se c’o esquecimento
336
das cousas que são passadas.
Calisto
337
Lembranças de vos deixar
338
picar-vos-ão como tojos.
Feliseu
339
Senhor, haveis d’assentar
340
que onde amor vos quer matar
341
sempre allá miran ojos.
342
Um mote, senhor, lhe mandei
343
um dia estando com febre
344
só da paxão que tomei.
Calisto
345
Pois vejamos, que tem lebre.
Feliseu
346
Senhor, eu vo-lo direi:
(Mote)
347
Vós por outrem eu por vós,
348
vós contente eu penado,
349
vós casada eu cansado,
350
polos santos de minha dona.
Calisto
351
Senhor, vós só o fizestes?
Feliseu
352
Si, que ninguém me ajudou.
Calisto
353
Se vós só o composestes
354
crede que extremo dissestes.
355
Nunca Orlando tal falou.
356
Senhor, fizestes-lhe pé?
Feliseu
357
Senhor si, todo um ano
358
vós zombais se não m’engano.
Calisto
359
Não, mas dou-vos minha fé
360
que nunca vi tão bom pano.
Feliseu
361
Ora olhe vossa mercê:
(Volta)
362
Olhai em quam fundos vaus
363
por vossa causa me afogo,
364
que outro me ganha o jogo
365
e eu, triste, pago os paus.
366
Olhos travessos e maus
367
inda eu veja o meu cuidado
368
por esse vosso trocado.
Calisto
369
Nô mais, qu’isso me degola.
370
Senhor, eu haja perdão.
371
Fezestes esse rifão
372
em algum jogo de bola?
373
E foi-lhe ele ter à mão?
Feliseu
374
Digo-vos que o viu, e lho leu
375
um moçozinho d’escola.
Calisto
376
Está isso assi do céu.
377
Sabe ela jogar a bola?
Calisto
379
Ora eu já cheguei a ler
380
Petrarca e crede de mi
381
que nunca tal cousa vi.
382
Onde mora o bom saber
383
logo dá sinal de si.
384
Onde casada pusestes,
385
dizei por que nam dissestes:
386
la que yo vi por mi mal?
Feliseu
387
Renunciava o metal,
388
que em refõeszinhos como estes
389
há-se de pôr tal com tal,
390
que a trova trigo-tremês
391
há de ser toda dum pano,
392
que parece muito ingrês
393
num pelote português
394
todo um quarto castelhano.
395
Ouvi outra também minha
396
que fiz a certa tenção,
397
crara, leve, bonetinha,
398
de feição que esta trovinha
399
é trovinha de feição.
400
Como eu um dia me visse
401
morto e a mão na candea
402
e ela nam me acodisse
403
fiz-lhe esta por que sentisse
404
que dava os fios à tea.
405
E o perpósito é
406
andar eu um dia só,
407
e pera que houvesse dó
408
de mim e de minha fé
409
lamentei-lhe como Jó.
Calisto
410
Andastes, senhor, mui bem.
Feliseu
411
Ora, senhor, atentai
412
e vede o saibo que tem,
413
se é pera a ver alguém.
Feliseu
Ei-la vai:
(Trova)
415
Coração de carne crua
416
vê’lo teu amor aqui
417
que esmorecido por ti
418
jaz no meio desta rua.
Calisto
419
Na rua, senhor, jazia?
420
E era em tempo de lama?
Feliseu
421
Senhor, quem fala a quem ama
422
de si mesmo se não fia.
423
Haveis de mintir à dama.
Feliseu
Singular,
425
senão que é muito sentida,
426
far-vos-á, senhor, chorar.
Calisto
427
Oh, diga, por sua vida.
Feliseu
428
Farei o que me mandar.
(Volta
429
Por que não hás dele mágoa,
430
ó dura mais que ninguém,
431
que anda o triste que não tem
432
quem lhe dê ũa vez d’água?
433
Não lhe negues teu querer
434
pois te nam custa dinheiro
435
que enfim por derradeiro
436
a terra te há de comer.
Calisto
437
Tal trova nunca se viu.
438
Agorentaste-la já?
Feliseu
439
Senhor nam, ainda está
440
como a sua mãe pariu,
441
e nam está muito má.
Calisto
442
É trova que tem por seis,
443
não na posso mais gabar.
444
Mas pois tal cousa fazeis,
445
senhor, nam me ensinareis
446
donde vem tam bem trovar?
Feliseu
447
Não é a cousa tam pequena
448
como, senhor, a fezestes
449
essa que agora dissestes.
450
Mas, porém, vou dar Almena
451
estas novas que me destes.
452
Depois, senhor, nos veremos,
453
ficai roendo esse osso.
Calisto
454
O roer, senhor, é vosso.
Feliseu
455
Pois eu por mais que zombemos
456
hei de ser vosso e revosso.
Calisto
457
Oh, escusai-vos d’extremos
458
que isso, senhor, me atarraca.
459
Mas nós nos encontraremos
460
e sobre isso envidaremos
461
dous reales mais de saca.
Vão-se ambos e vem Júpiter e Mercúrio transformados, Júpiter na forma d’Enfatrião,
Mercúrio na de Sósia, escravo, e diz Júpiter:
462
Mercúrio, pois sou mudado
463
nesta forma natural,
464
olha e nota com cuidado
465
se está em mi o pintado
466
aparente c’o real.
Mercúrio
467
Quem tão próprio se transforma
468
tenho por openião
469
que na tal transformação
470
lhe prestou natura a forma
471
com que fez Anfatrião.
Júpiter
472
Pois tu no gesto e na cor
473
estás Sósia, escravo seu.
Mercúrio
474
Muito mais farás, senhor.
Júpiter
475
Não no faz senão o amor
476
que nisto pode mais qu’eu.
Mercúrio
477
Já, senhor, te fiz menção
478
como deu Anfatrião
479
a el rei Terela a morte,
480
que na guerra igual a sorte
481
pode mais que o coração.
482
E depois de ser tomada
483
toda a cidade, com glória
484
d’Anfatrião bem ganhada,
485
como em sinal de vitória
486
esta copa lhe foi dada.
487
Por ela bebia el rei
488
enquanto a vida queria
489
e eu, porque te compria,
490
a seu escravo a furtei
491
que nũa caixa a trazia.
492
Esta poderás levar
493
a Almena por lhe mostrar
494
verdadeiro o que é fengido,
495
e desta arte serás crido
496
sem mais outro ardil buscar.
Júpiter
497
Pois tudo tens ordenado
498
por tão nova e sotil arte
499
como me vires entrado
500
irás dar este recado
501
a Febo de minha parte:
502
que faça mais devagar
503
seu curso neste hemisfério
504
que o que sói acostumar,
505
que esta noite hei de ordenar
506
um caso de alto mistério.
507
E à esfera mais alta
508
mandarás que fixa esteja
509
por que a noute maior seja,
510
porque sempre o tempo falta
511
onde alegria é sobeja.
512
E terás tamanho tento
513
que como isto se ordenar
514
venhas aqui vegiar,
515
por que meu contentamento
516
ninguém mo possa estrovar.
Mercúrio
517
Seja feito sem debate
518
tudo como te convém.
Júpiter
519
Pois não parece ninguém,
520
como homem de casa bate
521
e muda a fala também.
Bate Mercúrio à porta.
Mercúrio
522
Oh de la casa, en buena hora,
523
darme han de cenar aquí?
Brómia
524
Sósia parece que ouvi.
525
Alvíssaras, minha senhora,
526
que na fala o conheci.
Entra Almena e Brómia.
Almena
527
Zombais, Brómia, porventura?
Brómia
528
Senhora, não zombo não.
Almena
529
Vejo eu Anfatrião
530
ou a vista me afegura
531
o qu’está no coração?
Júpiter
532
Olhos, diante dos quais
533
desejei mais este dia
534
que nenhũa outra alegria,
535
senhora, nunca creais
536
que lhe minta a fantesia.
Almena
537
Oh presença mais querida
538
que quantas formou amor,
539
isto é verdade, senhor?
540
Acabe-se aqui a vida
541
por não ver prazer maior.
Júpiter
542
Pois esta hora de vos ver
543
alcançar, senhora, pude
544
para mais contente ser
545
conforme co este prazer.
546
Novas de vossa saúde?
Almena
547
A vida foi pesada e crua
548
à saúde qu’eu sostinha,
549
que enquanto, senhor, a tinha
550
temer perigo na sua
551
me fez descuidar da minha.
Mercúrio
552
Y pues, mi señora Almena,
553
pesia al demonio malvado,
554
no dirá a un su criado:
555
vengáis, Sosia, norabuena?
Almena
556
Sejais, Sósia, bem chegado.
Brómia
557
Bem mal cri eu que pudesse
558
ver-te, Sósia, hoje aqui.
Mercúrio
559
Pues también yo no creí
560
que en mi vida te viese,
561
según las muertes que vi.
Almena
562
Muito, senhor, folgarei
563
com novas de vencimento.
Júpiter
564
De tudo quanto passei
565
por vos dar contentamento
566
em suma vos contarei.
567
Trago, senhora, a vitória
568
daquele rei tam temido,
569
com fama crara e notória.
570
Porém, maior foi a glória
571
de me ver de vós vencido.
572
Sem me terem resistência
573
os grandes me obedeceram
574
como el rei morto teveram,
575
em sinal de obediência
576
esta copa me trouxeram.
577
El rei por ela bebia,
578
ela e tudo o mais é nosso,
579
por onde craro se via
580
que tudo me obedecia
581
pois tinha nome de vosso.
Mercúrio
582
Sí, mas luego de rondón
583
la fortuna dio la vuelta.
Mercúrio
Fue gran perdición
585
porque en aquella revuelta
586
me hurtaron mi jubón.
587
Pero bien me lo pagaron
588
cuando comigo riñeron,
589
que aunque me despojaron
590
si uno de seda llevaron
591
otro de azotes me dieron.
Almena
592
Senhor, não posso gostar
593
de gosto que é tão imenso
594
senam muito devagar.
595
Faça-me mercê d’entrar
596
e contar-mo-á por ixtenso.
Vão-se e fica Mercúrio e Brómia.
Mercúrio
597
Yo también te contaría,
598
Bromia, si quedas atrás,
599
que una noche… enojarte has?
Mercúrio
Soñaba que te tenía...
601
No me atrevo a decir más.
Mercúrio
Pardiez no diré.
603
Soñaba…
Mercúrio
604
Que cuando en la cama estabas
605
que yo en fin recordé.
Brómia
606
Pois tudo isso receavas?
Mercúrio
607
Sabe Dios que yo acá siento,
608
sola una alma vive en dos
609
la cual anda dentro en vos.
Brómia
610
E que quer ela cá dentro?
Mercúrio
611
También eso sabe Dios.
(Vai-se Brómia e diz Mercúrio:)
612
Bem se poderá enganar
613
Brómia, segundo ora estou,
614
como Almena s’enganou.
615
Mas cumpre ir ordenar
616
o que meu pai me mandou.
617
E por que seja guardada
618
esta porta e vegiada
619
de toda a gente nacida
620
me será cousa forçada
621
ser tam depressa a tornada
622
quam prestes faço a partida.
Vai-se Mercúrio e vem Sósia c’o recado d’Anfatrião.
Sósia
623
Anfatrión, esforzado,
624
bravo va por la batalla,
625
siete cabezas llevaba
626
de las mejores que ha hallado.
(Fala:)
627
Quién viene de tierra ajena
628
y de la muerte escapó
629
la razón le permitió
630
que cante como serena
631
como agora hago yo.
632
Y pues canto tan gentil
633
fuera llanto si muriera
634
quiero cantar como quiera
635
una y otra y más de mil
636
que digan desta manera:
(Canta:)
637
Dongolondrón con dongolondrera
638
por el camino de Otera
639
rosas coge en la rosera,
640
dongolondrón con dongolondrera.
(Fala:)
641
Cuando yo vengo a pensar
642
que uno matarme quisiera
643
no hago sino temblar
644
porque creo si muriera
645
no pudiera más cantar.
646
Porque estando a un rincón
647
de la casa adó quedé
648
sentí muy grande ronrón,
649
y mirando qué miré?
650
Vi que era un gran ratón.
651
Empero yo nunca sigo
652
sino consejos muy sanos,
653
que en estos casos livianos
654
quién desprecia el enemigo
655
mil veces muere a sus manos.
656
Pero mi señor allí
657
mató el rey de los glipazos,
658
yo como muerto lo vi
659
juro a mi fe que le di
660
más de dos mil cuchillazos.
661
Y por me librar de afán
662
me voy siempre a cosa hecha
663
probar mi mano derecha,
664
que aquél es buen capitán
665
que del tiempo se aprovecha.
666
Que quién ha de pelear
667
ha de buscar tiempo y hora.
668
Pero quiero caminar
669
que me muero por cantar
670
todo aquesto a mi señora.
Vem Mercúrio e diz:
671
Mil vezes comigo vejo
672
pera que meu pai se afoute,
673
pois em tam pequeno ensejo
674
lhe mandei talhar a noute
675
à medida do desejo.
676
E pois que como possante
677
a mi tudo se reporta
678
chego agora neste instante
679
a estrovar qu’este bargante
680
me não chegue a esta porta.
Sósia
681
No sé qué miedo o locura
682
neste pecho se me cría.
683
Por Dios que se me afegura
684
que ha mucho qu’es noche escura
685
sin que venga el claro día.
686
Mas sabed que pienso yo
687
qu’el sol que no se acordó
688
de con el día venir,
689
que anoche cuando cenó
690
algún buen vino bebió
691
que le hace tanto dormir.
Mercúrio
692
Já sintes comprida a noute
693
que eu assi mandei fazer.
694
Pois mais te quero dizer
695
que sintirás muito açoute
696
se cá quiseres vir ter.
697
Porém pois este bargante
698
tem medroso coração
699
quero-me fengir ladrão
700
ou fantasma, e por diante
701
não irá, se vem à mão.
702
E, contudo, se passar
703
a fala quero mudar
704
na sua, de tal feição
705
que couces e perfiar
706
lhe façam hoje assentar
707
que eu sou Sósia, ele não.
(Fala castelhano:)
708
No veo pasar ninguno
709
en quién yo me pueda hartar.
Sósia
710
A quién oigo aquí hablar?
711
Mande Dios no sea alguno
712
que me quiera aporrear.
Mercúrio
713
La carne de algún humano
714
me sería muy sabrosa.
Sósia
715
Oh, qué voz tan temerosa.
716
Hombres comes? Oh, mi hermano,
717
no es mejor otra cosa?
718
Carne humana es muy mezquina.
719
Oh, no comas d’eso no,
720
antes carne de gallina.
721
Pero si más se avecina
722
qué más gallina que yo?
Mercúrio
723
Una voz de hombre ahora
724
a la oreja me voló.
Sósia
725
Pésete quién me parió,
726
la voz traigo voladora?
727
Ella quisiera ser yo.
728
Pues mi voz pudo volar
729
do la pudieses oír
730
por contigo no reñir
731
me dibieras de prestar
732
las alas para huir.
Mercúrio
733
Qué buscas cabe esa puerta?
734
Hombre, sé qu’eres ladrón.
Sósia
735
Ay, qu’el alma tengo muerta.
736
Oh, Júpiter me convierta
737
las tripas en corazón.
Mercúrio
738
Quién eres? Quieres hablar?
Sósia
739
Soy quién mi voluntad quiere.
Mercúrio
740
Piensas que puedes burlar?
Sósia
741
Y tú puédesme quitar
742
que yo sea quién quisiere?
Mercúrio
743
Osas hablar tan osado,
744
dun bellaco bobarrón?
745
Di, quién eres?
Sósia
Un criado
746
del señor Anfatrión,
747
por nombre Sosia llamado.
Mercúrio
748
Pienso qu’el seso perdiste.
749
Cómo te llamas, mal hombre?
Sósia
750
Sosia soy, si no me oíste.
Mercúrio
751
Cómo? En persona tan triste
752
osas d’ensuciar mi nombre?
753
Estos puños llevarás
754
pues tener mi nombre quieres.
755
Quiéresme decir quién eres?
Sósia
756
Oh, señor, no me des más
757
que yo seré quien tú quisieres.
Mercúrio
758
Con tan nueva falsedad
759
andáis por esta ciudad
760
delante de quién os mira?
761
Pues sí, sois Sosia, tomad.
Sósia
762
Si me das por la verdad
763
qué me harás por la mentira?
Mercúrio
764
Y qué verdad es la tuya,
765
que te quiero dar castigo?
Sósia
766
Si no soy Sosia que digo
767
que Júpiter me destruya.
Mercúrio
768
Mirá el falso enemigo.
769
Tomad este bofetón,
770
que yo soy Sosia y no vos.
Mercúrio
Sosia por Dios,
772
escravo d’Anfatrión.
Sósia
773
De modo que tiene dos?
Mercúrio
774
No terná, aunque tú quieres,
775
que a mí sólo conoció.
Sósia
776
Pues yo luego quién so?
Mercúrio
777
Si tú no sabes quién eres
778
quieres que lo sepa yo?
Sósia
779
En fin hasme de hacer crer
780
que yo no soy quién ser solía?
Mercúrio
781
Quién solías tú de ser?
Sósia
782
Treguas me has de prometer,
783
dírtelo he sin porfía.
Mercúrio
785
No, si no fuere razón.
Sósia
786
Pues, hermano, tú sabrás
787
que mi amo Anfatrión…
Mercúrio
788
Tu amo? Pues llevarás.
789
Mi amo es, que tuyo no.
Sósia
790
Ay, que un brazo me quebró.
Mercúrio
791
Mas que luego te matase.
Sósia
792
Oxalá Dios ordenase
793
que tú ahora fueses yo
794
e yo que te desmembrase.
Mercúrio
795
Esa tu tema tan loca
796
puños te la han de quitar.
797
Dime, di, vergüenza poca,
798
qué hablas?
Sósia
Qué puedo hablar
799
si me has quebrado la boca?
Mercúrio
800
Di quién eres, sin fatiga.
Sósia
801
Soy un hombre en quién tú das.
Mercúrio
802
Dime, pues, qué nombre has.
Sósia
803
Cómo quieres tú que diga
804
pera que no me des más?
Mercúrio
805
No me has de hablar contrahecho.
Sósia
806
Toda mi vida pasada
807
Sosia fui y con despecho.
808
Ahora soy qué? Nonada,
809
que tus manos me han deshecho.
Mercúrio
810
Cúyo eres, pues las sientes,
811
dexando consejos vanos?
812
La verdad, que si me mientes
813
das con la lengua en los dientes
814
y yo doyte con las manos.
Sósia
815
No conoces Anfatrión?
Mercúrio
816
Hombre sin seso te llamo.
817
Tan fuera estás de razón,
818
piensas de mí, bobarrón,
819
que no conozco a mi amo?
Sósia
820
En su casa conociste
821
uno que es Sosia llamado,
822
hombre despreciado y triste?
Mercúrio
823
Desa suerte lo dixiste,
824
yo soy triste y despreciado.
825
Pues sabe que te allegó
826
a la muerte tu fortuna.
Sósia
827
Pues luego si yo no soy yo
828
aunque nadie me mató
829
soy luego cosa ninguna.
830
Oh, dioses, qué desconcierto.
831
Yo por ventura soy muerto
832
o murióme la razón?
833
Yo no soy de Anfatrión?
834
Él no me mandó del puerto?
835
Yo no sé, que no estoy loco.
836
De mi madre no nací?
837
No ando? No hablo aquí?
Mercúrio
838
Pues sosiega agora un poco
839
que yo también diré de mí
840
yo no sé que yo soy yo?
841
Yo no te di con mis manos?
842
Mi señor no me llevó
843
a la guerra adó mató
844
aquel rey de los tebanos?
Sósia
845
eso muy bien lo sé,
846
empero tú qué hacías
847
cuando la batalla vías?
Mercúrio
848
Escucha, yo lo diré
849
y cesarán tus porfías.
850
Cuando mi señor andaba
851
peleando y derramaba
852
la sangre de algún mezquino,
853
con una bota de vino
854
yo el mío acrescentaba.
Sósia
855
Dice lo que yo hacía,
856
con todo saber quería
857
sola una cosa si puedo:
858
tu pecho antón qué sentía?
Mercúrio
859
Del beber gran alegría
860
y del pelear gran miedo.
Mercúrio
Muy reposado
862
a dormir me eché de grado
863
desd’el sol hasta la luna.
Sósia
864
Todo lo tiene contado.
865
En fin tengo averiguado
866
que yo no soy cosa ninguna.
867
Pues de todo en un instante
868
me has echado de mí fuera
869
aconséjame siquiera
870
quién seré daquí adelante,
871
pues no soy quien dantes era?
Mercúrio
872
Cuando yo no ser quisiere
873
ese que tú ser deseas,
874
después que ya Sosia no fuere,
875
darte he, se te pluguiere,
876
licencia que todo seas.
877
Y acógete luego, amigo,
878
a buscar tu nombre, digo,
879
pues Dios vida te dexó
880
que el Sosia queda comigo.
Sósia
881
Pues contigo quedo yo
882
Dios quede, hermano, contigo.
883
Ahora quiero ir allá
884
adó mi señora está
885
contarle cómo es venido
886
mi señor. Mas, oh perdido,
887
si otro yo tiene allá
888
todo lo terná sabido.
Mercúrio
890
A ónde vuelves ahora?
Sósia
891
Por Dios no sé ónde vo,
892
porque si yo no soy yo
893
ni Almena es mi señora.
Sósia
Con mensaje
895
del señor Anfatrión
896
pera Almena.
Mercúrio
Adó, salvaje?
897
Pues quebraste la homenaje
898
ahí verás tu perdición,
899
yo doyte consejos sanos
900
y perfías otra vez?
Sósia
901
Altos dioses soberanos
902
pues me no valen las manos
(Foge.)
903
aquí me valgan los pies.
Mercúrio
904
Desta arte enseñan aquí
905
a hurtar el nombre ajeno?
Vai-se e torna Sósia e diz:
906
Ay, Dios, cómo me acogí.
907
Oh Júpiter alto y bueno
908
cuán cerca la muerte vi.
909
Quiérome ir a mi señor
910
contarle cuánto he pasado
911
y él me dirá de grado
912
si yo soy su servidor
913
en qué cosa me he tornado.
Vai-se Sósia e vem Júpiter e Almena, e diz Júpiter:
914
Toda a pessoa descreta
915
terá, senhora, assentado
916
que um bem muito desejado
917
se há de alcançar por dieta
918
pera ser sempre estimado.
919
E quem alcançado tem
920
tamanho contentamento
921
por conservá-lo convém
922
que tome por mantimento
923
a fome de tanto bem.
924
Por isso hei de tomar
925
este tempo tam ditoso
926
pera a frota visitar
927
e depois quando tornar
928
tornarei mais desejoso,
929
que pois tam bom cativeiro
930
me tem presa a liberdade
931
eu lhe prometo em verdade
932
que torne ainda primeiro
933
que mo peça a saudade.
Almena
934
Ainda que possa ir
935
mais asinha do que creo,
936
como hei de consentir
937
que se haja de partir
938
na mesma noite que veio?
Júpiter
939
Forçada é minha tornada,
940
mas muito cedo virei
941
porque dês que foi chegada
942
a este porto a armada
943
ainda a nam vesitei.
Almena
944
Pois, senhor, tam pouco estais
945
com quem vistes inda agora?
946
Faça-se como mandais.
Júpiter
947
Vós me vereis cá, senhora,
948
primeiro do que cuidais.
Vão-se e vem Anfatrião e Sósia, e diz Anfatrião:
949
Enfim, tu que estás aqui
950
estavas já lá primeiro?
Sósia
951
Señor, crea qu’es ansí.
Anfatrião
952
Eu nunca entendi de ti
953
que eras também chocarreiro.
Sósia
954
Señor, yo qu’estoy presente
955
no soy Sosia su criado?
Anfatrião
956
Creo que não, certamente,
957
porque Sósia era avisado
958
e tu és mui diferente.
Sósia
959
Pues, señor, en mí se ve
960
que no soy quién dantes era,
961
vuélvome.
Sósia
962
Ver se a dicha me quedé
963
dormiendo por la galera.
Anfatrião
964
Pois me queres fazer crer
965
ũa doudice tam rasa,
966
mais quero de ti saber
967
como não entraste em casa
968
d’Almena, minha molher?
Sósia
969
Aunque Sosia quisiese,
970
la verdad no negará:
971
aquel yo que allá está
972
no quiso que a casa fuese
973
estotro yo que iba allá.
974
Y con furia tan crecida
975
a mí se vino aquel hombre
976
que yo me puse en huida,
977
y ansí le dexé mi nombre
978
por me dexar él la vida.
Anfatrião
979
Quem seria tam ousado
980
que tanto mal te fizesse?
Sósia
981
Yo mismo, Sosia llamado,
982
que a casa era ya llegado
983
antes que de acá partiese.
Anfatrião
984
Tu chegaste antes de ti?
985
Este é gentil desbarate.
Sósia
986
Pues más le digo de aquí
987
que vengo huyendo de mí
988
por que yo mismo no me mate.
Anfatrião
989
Eram dous ou era um só
990
quem te fez assi fogir?
Sósia
991
Pésete quién me parió,
992
digo que era un sólo yo,
993
mil veces lo he de decir?
994
Puede ser que nacería
995
daquel hombre otro alguno
996
como aquel de mí nacía,
997
porque aunque fuese uno
998
por más de cuatro tenía.
999
Él tenía mi aparencia,
1000
empero yo nunca vi
1001
tal fuerza ni tal potencia,
1002
esta sola diferencia
1003
le tengo hallado de mí.
Anfatrião
1004
Pudeste dele saber
1005
cujo era?
Sósia
Quién? Aquél yo?
1006
Tuyo, señor, dijo ser.
Anfatrião
1007
Nunca eu tive mais que um só,
1008
e esse nam quisera ter.
Sósia
1009
Pues, señor, si el bien doblado
1010
te lo muestra agora Dios
1011
debe ser de ti alabado,
1012
pues de un solo criado
1013
te ha hecho agora dos.
Anfatrião
1014
Antes pera que conheças
1015
que cousa é mau servidor
1016
me pesará se assi for,
1017
que de tam roins cabeças
1018
quantas más tanto pior.
1019
E já que são tam incertos
1020
teus ditos pera se crer,
1021
muito milhor deve ser
1022
que dexe teus desconcertos
1023
e vá ver minha molher.
Vão-se e entra Almena e diz:
1024
Que fado, que nacimento
1025
de gente humana nacida,
1026
que d’escasso e avarento
1027
nunca consentiu na vida
1028
perfeito contentamento.
1029
Anfatrião, que mostrou
1030
um prazer tam desejado
1031
a quem tanto o desejou,
1032
na noite que foi chegado
1033
nessa mesma se tornou.
1034
De se tornar tam asinha
1035
sinto tanto intristecer
1036
o sentido e alma minha
1037
que certo que me adevinha
1038
algum novo desprazer.
1039
Mas parece este que vem,
1040
se não estou enganada.
1041
Se ele é, venha com bem
1042
pois que com sua tornada
1043
tão trestornada me tem.
Entra Anfatrião e Sósia, e diz Anfatrião:
1044
Com que palavras, senhora,
1045
poderei engrandecer
1046
tão soblimado prazer
1047
como é ver chegada a hora
1048
em que vos pudesse ver?
1049
Certo gram contentamento
1050
tive de meu vencimento,
1051
mas maior o hei de mim,
1052
de me ver posto na fim
1053
de tão longo apartamento.
Almena
1054
Já eu disse o que sentia
1055
de vinda tam desejada.
1056
Mas diga-me, todavia:
1057
como nam foi ver a armada
1058
que me disse hoje este dia?
Anfatrião
1059
De lá venho eu inda agora,
1060
desejoso de vos ver
1061
muito mais que de vencer.
1062
Mas que me dizeis, senhora,
1063
que hoje me ouvistes dizer?
Almena
1064
Se não estava remota,
1065
certamente que lhe ouvi,
1066
quando hoje partiu daqui,
1067
que tornava a ver a frota,
1068
que era forçado assi.
Anfatrião
1070
Tu ouves tal desconcerto?
Sósia
1071
Grandes orejas ganó,
1072
pues estando en casa oyó
1073
quien estaba allá nel puerto.
Anfatrião
1074
Quando dizeis que me ouvistes?
Almena
1075
Hoje, quando vos partistes.
Anfatrião
1077
Nunca vi grande prazer
1078
que nam tenha os cabos tristes.
1079
Quantos males d’improviso
1080
que causam grandes mudanças,
1081
que molher de tanto aviso
1082
agora minhas lembranças
1083
a tem fora de juízo.
Almena
1084
Quereis-me fazer cuidar
1085
que poderia sonhar
1086
o que pelos olhos vi?
1087
Nunca vos eu mereci
1088
quererdes-me exprimentar.
Anfatrião
1089
Posto que é pera pasmar
1090
ver um caso tam estranho,
1091
todavia hei de atentar
1092
se poderei concertar
1093
um desconcerto tamanho.
1094
Quando dizeis que vim cá?
Almena
1095
Esta noite que passou.
Anfatrião
1096
Dai-me alguém que aqui se achou
1097
que me visse.
Almena
Esse que aí está.
1098
Sósia, que convosco andou.
Anfatrião
1099
Sósia, podes-te lembrar
1100
que ontem me viste aqui?
Sósia
1101
Nunca yo supe de mí
1102
que me pudiese acordar
1103
daquello que nunca vi.
Almena
1104
Ora eu creo e é assi
1105
que ambos vindes conjurados
1106
para zombardes de mi,
1107
mas eu darei hoje aqui
1108
sinais que sejam provados.
Anfatrião
1109
Que sinais pode i haver
1110
de mentira tam notória,
1111
que nem foi nem pode ser?
Almena
1112
Donde vim eu a saber
1113
novas de vossa vitória?
Almena
Dir-vo-las-ei
1115
assi como mas contastes:
1116
que na batalha matastes
1117
aquele soberbo rei
1118
e tudo desbaratastes,
1119
não fazendo resistência
1120
nũa batalha tam crua,
1121
dando-vos obediência
1122
vos deram ũa copa sua
1123
lavrada por exelência.
Anfatrião
1124
Sósia é culpado só
1125
nestes acontecimentos.
Sósia
1126
Señor, son encantamientos,
1127
porque aquel hombre que es yo
1128
le contaría estos cuentos.
Anfatrião
1129
Quem é esse que vos deu
1130
tais novas saber queria.
Anfatrião
Quem? Eu?
1132
Quereis-me fazer sandeu?
Almena
1133
Mas vós me fazeis sandia.
Anfatrião
1134
Ora quero perguntar:
1135
que fiz sendo aqui chegado?
Anfatrião
1137
E depois de ter ceado?
Almena
1138
Fomo-nos ambos deitar.
Anfatrião
1139
Nunca queira Deos que possa
1140
achar-se na minha honra
1141
nenhũa falta nem mossa.
1142
Seja isso doudice vossa
1143
antes que minha desonra.
Sósia
1144
Bien lo supe yo entender
1145
que era esto encantaciones,
1146
y ahora me habrá de crer
1147
que dos Sosias puede haber
1148
pues hay dos Anfatriones.
Almena
1149
Com me quererdes tentar
1150
tam trovada me fezestes
1151
que me nam pôde lembrar
1152
que vos mandasse mostrar
1153
a copa que me ontem destes.
Anfatrião
1154
Eu? Copa? Se isso aí há
1155
que estou doudo cudarei.
Sósia
1156
Señor, bien guardada está.
Almena
Dai cá
1158
a copa que ontem vos dei.
Sósia
1159
Pues yo parí otro yo
1160
y vos otro Enfatrión,
1161
no es mucha admiración
1162
si la copa otra parió,
1163
ni aun fuera de razón.
Entra Brómia co a copa e diz:
1164
Eis aqui a copa vem,
1165
testemunho da verdade.
Anfatrião
1166
Oh, estranha novidade.
Almena
1167
Poder-me-á dezir alguém
1168
que o que digo é falsidade?
Anfatrião
1169
Sósia, quando ontem cá vinhas
1170
poder-me-ás negar, ladrão,
1171
que lhe deste as novas minhas
1172
e mais a copa que tinhas
1173
guardada na tua mão?
Sósia
1174
Señor, que no pude, no,
1175
ver a mi señora Almena,
1176
si aquél eso acá ordenó
1177
no lleve este yo la pena
1178
del mal que hizo el otro yo.
Anfatrião
1179
Ora eu nam sei entender
1180
tal caso nem lhe acho fundo.
1181
Contudo, venho a dizer
1182
que há tantos males no mundo
1183
que tudo se pode crer.
1184
Se vos trouxer quem vos diga
1185
que esta noite dormi
1186
na nau, crereis que é assi?
Almena
1187
Nenhũa cousa me obriga
1188
a que não crea o que vi.
Anfatrião
1189
Se o patrão aqui vier,
1190
que é homem d’autoridade,
1191
crereis o que vos disser?
Almena
1192
Sim, que ninguém pode haver
1193
que me negue esta verdade.
Anfatrião
1194
Eu estou em concrusão
1195
d’hoje desembaraçar
1196
tam enleada questão.
1197
À nau me quero tornar
1198
a trazer cá Belferrão.
1199
Sósia, até minha tornada
1200
fica nesta casa em vela,
1201
qu’eu armarei tal cilada
1202
a quem m’a mim tem armada
1203
que venha hoje a cair nela.
Vai-se e diz Almena:
1204
Oh, molher triste e suspensa
1205
da mais alta confusão
1206
que nunca viu coração,
1207
em que mereces a ofensa
1208
que te faz Anfatrião?
1209
Sempre de mim foi amado
1210
tanto quanto em mi se sente
1211
c’o coração tam liado
1212
que se de mim era ausente
1213
nele o via fegurado.
1214
E pois molher que comprisse
1215
milhor qu’eu fedelidade
1216
não na vi, nem quem me visse
1217
que dos lemites saísse
1218
um ponto da honestidade.
1219
Pois por que é tão maltratada
1220
inocência tam singela?
1221
Que a pena mais apertada
1222
é a culpa levantada
1223
ao coração livre dela.
1224
Mas já que minh’alma está
1225
sem culpa do que padeço
1226
seja o que for, qu’eu conheço
1227
que a verdade me porá
1228
no qu’eu pelo ter mereço.
Almena
I mandar
1230
a Feliseu que vá
1231
meu primo Aurélio chamar,
1232
que lhe quero perguntar
1233
que conselho me dará.
1234
E pois que Enfatrião
1235
vai buscar somente quem
1236
lhe ajude a sua tenção,
1237
quero eu ter aqui também
1238
quem me defenda a rezão.
Vai-se Brómia e vem Júpiter, e diz Júpiter:
1239
Gram desconcerto tem feito
1240
Anfatrião com Almena.
1241
Qualquer deles tem dereito,
1242
eu sou o que venço o preito
1243
e ambos pagam a pena.
1244
Quero-me ir lá desfazer
1245
tam trabalhosa demanda
1246
por nos tornarmos a ver,
1247
porqu’enfim quem muito quer
1248
com qualquer desculpa abranda.
1249
E pois que a afeição
1250
há de mudar tam asinha,
1251
quero ir alcançar perdão
1252
da culpa que, sendo minha,
1253
parece d’Anfatrião.
Almena
1254
Parece que torna cá
1255
Anfatrião que já se ia.
1256
Nam sei a que tornará,
1257
senão se lhe pesa já
1258
dos enganos que tecia.
Júpiter
1259
Senhora, nam haja error
1260
que tantos males me faça,
1261
porque se o contrário for
1262
pequeno será o amor
1263
que manencória desfaça.
1264
E pois com tanta alegria
1265
de tantos perigos vim,
1266
pesar-me-á se achar no fim
1267
que ũa leve zombaria
1268
vos possa agravar de mim.
Almena
1269
Com palavras de desonra
1270
nam se há de tratar quem ama,
1271
nem zombaria se chama,
1272
por exprementar a honra,
1273
pôr em tal perigo a fama.
1274
Bem tive eu pera mi
1275
que era aquilo experiência.
Júpiter
1276
Errei no que cometi,
1277
bem me basta a penitência
1278
de quanto me arrependi.
1279
E se fiz algum error
1280
com que vosso amor se mude
1281
de quem vo-lo tem maior
1282
não exprementei vertude
1283
mas exprementei amor.
1284
Que se com caso tam vário
1285
folguei de vos agastar
1286
foi amor acrecentar,
1287
porque às vezes um contrairo
1288
faz seu contrário aviar.
1289
Daqui vem que a leve mágoa
1290
firmeza, afeições, aumenta,
1291
como bem se vê na frágua
1292
onde o fogo se acrecenta
1293
borrifando-o com pouca água.
1294
Se um mal grande se alevanta
1295
num coração que maltrata
1296
a afeição desbarata,
1297
porque onde a água é tanta
1298
o fogo d’amor se mata.
1299
E pois tive tal tenção,
1300
perdoai, senhora, a culpa
1301
deste vosso coração.
Almena
1302
Não se alcança assi perdão
1303
d’erro que nam tem desculpa.
Júpiter
1304
Ora pois assi tratais
1305
quem em tanto risco pôs
1306
o amor que vós negais?
1307
Eu m’ausentarei de vós
1308
onde mais me não vejais.
1309
Que pois desculpa não tem
1310
coração que tanto quer
1311
vou-me, que não será bem
1312
que quem vós nam podeis ver
1313
que possa mais ver ninguém.
1314
Se algũa hora meu cuidado
1315
vos der dor, em que pequena,
1316
peço-vos, pois fui culpado,
1317
que vos não pese da pena
1318
de quem vos foi tão pesado.
1319
E depois que a desventura
1320
puser este coração
1321
debaxo da sepultura,
1322
as letras na pedra dura
1323
vossa dureza dirão.
1324
Isto vos hei de dizer,
1325
que m’ensinou minha dor:
1326
se quiserdes leda ser
1327
nunca exprementeis amor
1328
em quem vo-lo não tever.
1329
Deixai-me ir, não me tenhais.
Almena
1330
Anfatrião, nam choreis,
1331
Anfatrião.
Júpiter
Que quereis,
1332
ou pera que nomeais
1333
homem que ver não podeis?
Almena
1334
Anfatrião, s’eu causei,
1335
com manencória pequena
1336
cousa com que o magoei,
1337
eu quero cair na pena
1338
dessa culpa que lhe dei.
Júpiter
1339
Sempre serei magoado
1340
se vossa má condição
1341
me não perdoa o passado.
Almena
1342
Perdoo, e peço perdão
1343
de lhe não ter perdoado.
Sósia
1344
No le perdone, señora,
1345
hasta que con devoción
1346
también me pida perdón,
1347
que bien se me acuerda ahora
1348
que me ha llamado ladrón.
Júpiter
Vai buscar
1350
o piloto Belferrão,
1351
dir-lh’-ás, se desembarcar,
1352
que me parece rezão
1353
que venha hoje cá cear.
Sósia
1354
Sí, señor, voy a la hora.
Júpiter
1355
De nenhũa calidade
1356
cures de fazer demora.
1357
E nós vamo-nos, senhora,
1358
confirmar nossa amizade.
Vão-se e vem Mercúrio e diz:
1359
Grandes reboltas vão lá,
1360
grandes acontecimentos,
1361
cumpre-me que esteja cá
1362
enquanto meu pai está
1363
em seus desenfadamentos.
1364
Porque vejo Anfatrião
1365
vir da nau mui apressado
1366
e tendo corrido e andado
1367
nam pôde achar Belfarrão,
1368
que lhe era bem escusado.
1369
parece-me que virá
1370
ver se lhe abre aqui alguém,
1371
mas, porém, se chega cá
1372
já pode ser que se vá
1373
mais confuso do que vem.
Entra Anfatrião e diz:
1374
Quis-nos nossa natureza
1375
com tal condição fazer
1376
que já temos por certeza
1377
não haver grande prazer
1378
sem mestura de tristeza.
1379
Este decreto espantoso
1380
que instituiu nossa sorte
1381
é tal e tam regoroso
1382
que ninguém antes da morte
1383
se pode chamar ditoso.
1384
Com esta justa balança
1385
o fado grande profundo
1386
nos refrea a esperança,
1387
por que ninguém neste mundo
1388
busque bem-aventurança.
1389
Eu, que cuidei de viver
1390
sempre contente de mi
1391
com tamanho rei vencer,
1392
venho achar minha molher
1393
de todo fora de si.
1394
Mas doutra parte que digo?
1395
Que s’é verdade o que vi
1396
e o qu’ela diz é assi
1397
virei a cuidar comigo
1398
que eu sou o fora de mi.
1399
Quero ver se a acho já
1400
fora de tam secos nós.
1401
Ou de casa.
Mercúrio
Oh de allá.
1402
Quién sois?
Mercúrio
Santo Dios,
1403
pues no os conocen acá.
Anfatrião
1404
Oh que gentil desvario,
1405
abri-me ora, se quiserdes.
Mercúrio
1406
No haré, que en mí confío.
1407
Que de fuera dormiredes
1408
que no comigo, amor mío.
1409
Qué canción para oír.
Anfatrião
1410
Ah, Sósia, zombas de mi?
1411
Ora quero-me fengir
1412
que ainda o nam conheci
1413
por ver se me quer abrir.
1414
Ah, senhor, não abrireis?
Mercúrio
1415
Qué queréis, hombre por Dios?
Anfatrião
1416
Duas palavras de vós.
Mercúrio
1417
Tengo dicho más de seis
1418
y ahora me pedís dos?
1419
De fuera podéis dormir,
1420
que no podéis entrar acá.
Anfatrião
1421
Ora acabai, abri lá.
Mercúrio
1422
Digo que no quiero abrir,
1423
dixe dos palabras ya.
Anfatrião
1424
Ora sus, bargante, abri.
Mercúrio
1425
Si no te vuelves de aquí
1426
a gran peligro te ofreces.
Anfatrião
1427
Velhaco, nam me conheces,
1428
ou estás fora de ti?
Mercúrio
1429
Bonico venís amor.
1430
Quién sois, que habláis tan osado?
Anfatrião
1431
Abre, que sou teu senhor.
Mercúrio
1432
Vuélvase desotro lado
1433
y conocerle he mejor.
Mercúrio
Así me llamo.
1435
Huélgome que lo sepáis,
1436
empero digo que os vais
1437
que Enfatrión es mi amo.
1438
Vos i buscar quien seáis.
Anfatrião
1439
Pois quero saber de ti:
1440
eu que sou?
Mercúrio
Y quién sois vos?
1441
Cómo os llaman?
Mercúrio
1442
A vos os llaman Abrí?
1443
Pues, Abrí, andá con Dios.
Anfatrião
1444
Quem há que possa sofrer
1445
em sua honra tal destroço
1446
que pera me endoudecer
1447
me tem negado a molher
1448
e agora me nega o moço.
Mercúrio
1449
Mirá el encantador
1450
cómo se lastima y llora,
1451
y fuese tomar ahora
1452
la forma de mi señor
1453
para engañar mi señora.
1454
Pues esperá y no os vais,
1455
por un espacio pequeño
1456
verná quién representáis
1457
y él os hará que volváis
1458
el falso gesto a su dueño.
Anfatrião
1459
Vai, velhaco, e chama cá
1460
esse falso feiticeiro,
1461
que se ele lá dentro está
1462
esta espada julgará
1463
qual de nós é o verdadeiro.
Vai-se Mercúrio e vem Sósia e Belferrão, e diz Belferrão:
1464
Ora ninguém presumira
1465
que tinhas tam pouco siso,
1466
pois vás achar d’emproviso
1467
tam bem forjada mentira
1468
que me faz cair de riso.
1469
Um moço que alevantou
1470
tal graça nunca naceu,
1471
porque vos jura que achou
1472
que ou ele em dous se perdeu
1473
ou de um dous se tornou.
Sósia
1474
Patrón, que no burlo, no,
1475
en uno son dos unidos
1476
y en dos cuerpos repartidos,
1477
yo soy él y él es yo
1478
de un padre y madre nacidos.
Belferrão
1479
Esse tu que lá estás
1480
tam velhaco é como ti?
Sósia
1481
Mas aún pienso que es más.
1482
Por delante y por detrás
1483
todo se parece a mí.
1484
Y fue gran mercé de Dios
1485
ayuntar a mí más uno,
1486
que peor fuera de nos
1487
si Dios me hiciera ninguno
1488
que no de uno hacer dos.
Belferrão
1489
Assi que se te perdeste
1490
vieste a cobrar mais um.
1491
Mui gentil conta fizeste,
1492
pois que perdido soubeste
1493
que eras dous sendo nenhum.
Sósia
1494
Pues tenéis por abusión
1495
verdad tan clara y tan rasa,
1496
aunque pone admiración,
1497
quiera Dios que allá en casa
1498
no halléis otro patrón.
Anfatrião
1499
O patrão que fui buscar
1500
parece que vejo vir,
1501
não sei quem o foi chamar.
1502
Mas que me há de aporveitar
1503
se me não querem abrir?
Belferrão
Ah, senhor,
1505
já sinto que fui culpado,
1506
porque quem é convidado
1507
se tam vagaroso for
1508
merece não ser chamado.
Anfatrião
1509
A vós quem vos convidou?
Belferrão
1510
Sósia por mandado seu.
Anfatrião
1511
Disso, patrão, não sei eu,
1512
que Sósia já me negou
1513
e já se nam dá por meu.
1514
E se alguém vos foi dizer
1515
qu’eu vos chamo a minha mesa,
1516
mal vos dará de comer
1517
quem de todo lh’é defesa
1518
a casa e mais a molher.
Belferrão
1519
Quem é esse tão ousado
1520
que vos isso faz, senhor?
Anfatrião
1521
Sósia, creo que enganado
1522
por algum encantador
1523
que a honra me tem roubado.
Belferrão
1524
Se ele aqui comigo vem
1525
isso como pode ser?
Anfatrião
1526
Ah, que a ira que vou ter
1527
tam cega a vista me tem
1528
que mo não deixava ver.
1529
Por que rezão, cavaleiro,
1530
não me abris quando vos mando?
1531
Vós fazeis-vos chocarreiro?
Sósia
1532
Yo, señor? Y cómo? Y cuándo?
Anfatrião
1533
Quereis-lo saber primeiro?
1534
Esperai, dir-vo-lo-á,
1535
mas será por outro som.
Sósia
1536
Ah, señor Anfatrión,
1537
por qué matándome está
1538
sin delito y sin razón?
Anfatrião
1539
Agora que vos eu dou
1540
me chamais Anfatrião
1541
e pera me abrirdes não?
Belferrão
1542
Este moço em que pecou?
1543
Por que pena sem rezão?
1544
Nô mais, por amor de mi.
Anfatrião
1545
Não, que nam sou seu senhor,
1546
eu sou um encantador.
1547
Não no dizeis vós assi,
1548
ladrão, perro, enganador?
Sósia
1549
Porque fui presto a llamar,
1550
por su mandado, al patrón,
1551
me quiere ora matar.
Anfatrião
1552
Quem vo-lo mandou buscar?
Sósia
1553
Si no hay otro Anfatrión,
1554
vuestra mercé sin dudar.
Sósia
Sí, señor,
1556
si otro no.
Anfatrião
Outro há qui
1557
por quem tu zombes de mi?
1558
Pois só desse encantador
1559
me quero vingar de ti.
Sósia
1560
Oh, Júpiter, a quién bramo,
1561
por su bondá que me vala,
1562
pues porque Sosia me llamo
1563
yo mismo y después mi amo
1564
me dieron venida mala.
Entra Júpiter e diz:
1565
Quem é o tam atrevido
1566
que aqui ousa de fazer
1567
tam revoltoso arroído
1568
com meus moços, sem temer,
1569
que fui sempre tam temido?
1570
Quem aqui faz união
1571
toma mui grande despejo.
Belferrão
1572
Oh, grande admiração,
1573
vejo eu outro Anfatrião
1574
ou é sonho isto que vejo?
Sósia
1575
No miráis la encantación
1576
que aquél hizo a mi señor?
1577
El que sale, Belferrón,
1578
es el cierto Anfatrión,
1579
qu’estotro es encantador.
Júpiter
1581
Patrão, por vós só espero.
Sósia
1582
No os lo decía yo
1583
que éste era el verdadero
1584
y ése que allá queda no?
Anfatrião
1585
Bargante, onde te vás?
1586
Fazes teu senhor sandeu?
1587
Pois espera e levarás.
Júpiter
1588
Oulá, tornai por detrás,
1589
não deis no moço que é meu.
Anfatrião
Pode isto haver,
1591
que outrem minhas cousas tome?
1592
Vós, galante, haveis de ser
1593
o que me tomais o nome,
1594
casa, moços e molher.
1595
Eu vos farei conhecer
1596
com quem tendes esse trato.
Júpiter
Vai dizer
1598
que aparelhem de comer
1599
enquanto este doudo mato.
Belferrão
1600
Oh, senhor, não seja assim,
1601
haja em vós concerto algum,
1602
e, se não, pois aqui vim,
1603
farei que só tome em mim
1604
os golpes de cada um.
Júpiter
1605
Patrão, vossa boa estrela
1606
me fará deixar com vida
1607
quem me não merece tê-la.
Anfatrião
1608
Não na tenho eu merecida
1609
pois que vos deixo com ela.
Belferrão
1610
O homem que for sesudo
1611
nũa tão grande questão
1612
há de tomar por escudo
1613
a justiça e a rezão,
1614
que estas armas vencem tudo.
1615
E pois nossa natureza
1616
muitos homens faz iguais,
1617
dê qualquer de vós sinais
1618
de quem é, pera certeza
1619
da forma que ambos mostrais.
Júpiter
1620
Sou contente de mostrar,
1621
pelos sinais que vos dou,
1622
que sam este sem faltar.
Anfatrião
1623
Que sinais podeis vós dar
1624
pera que sejais quem sou?
Júpiter
1625
Estes, que logo vereis
1626
se são vãos se de raiz.
1627
Patrão, vós sede juiz,
1628
que em vós logo enxergareis
1629
qual mais verdade vos diz.
Belferrão
1630
Eu não sinto onde consista
1631
a cura desta doença,
1632
que há tam pouca diferença
1633
que aquele em que ponho a vista
1634
por esse dou a sentença.
1635
Mas, senhor, vós que ordenastes
1636
que o juiz disto fosse eu,
1637
quando se a batalha deu
1638
dizei que me encomendastes
1639
que ficasse a cargo meu?
Júpiter
1640
Dei-vos cargo que estevesse
1641
tod’a armada a bom recado,
1642
e se mal vos socedesse
1643
que para os vivos houvesse
1644
o refúgio aparelhado.
Belferrão
1645
Ora vós quantos dobrões
1646
esse dia m’entregastes?
Anfatrião
1647
Três mil, e vós os contastes.
Belferrão
1648
Ambos sois Anfatriões,
1649
pelos sinais que mostrastes.
Júpiter
1650
Pera ser mais conhecida
1651
a tenção deste sandeu
1652
vede estoutro sinal meu,
1653
que é neste braço a ferida
1654
que me el rei Terela deu.
Belferrão
1655
Mostrai vós, senhor, também.
Anfatrião
1656
Aqui o podeis olhar.
Belferrão
1657
Oh, cousa para espantar,
1658
que ambos a ferida tem
1659
dum tamanho em um lugar.
Vem Sósia.
Sósia
1660
Dice mi señora Almena
1661
que no se ha así d’estar
1662
con un bobo a razonar,
1663
que se le enfría la cena.
Júpiter
1664
Belfarrão, vamos cear.
Anfatrião
1665
Belfarrão, não me leixeis.
1666
Como? Também me negais?
Júpiter
1667
Andai, não vos detenhais.
1668
Vamos comer, se quereis,
1669
não ouçais um doudo mais.
Anfatrião
1670
Ah, maus, assi me ordenais
1671
ofensa tão mal olhada?
1672
Eu farei, se me esperais,
1673
com que todos conheçais
1674
os fios da minha espada.
Júpiter
1675
As portas prestes fechemos,
1676
nam entre este doudo cá.
Sósia
1677
De fuera se dormirá.
1678
Entretanto que cenemos
1679
puede pasearse allá.
Vão-se dentro e fica Anfatrião só e diz:
1680
Oh, ira para se nam crer
1681
em que minh’alma se abrasa,
1682
que me faz endoudecer
1683
e nam me ajuda a romper
1684
as paredes desta casa.
1685
E por que nam tenho eu
1686
forças que tudo destrua,
1687
pois que tanto a salvo seu
1688
outrem acho que possua
1689
a milhor parte do meu?
1690
Eu irei hoje buscar
1691
quem me ajude a vir queimar
1692
toda esta casa sem pena,
1693
donde veja arder Almena
1694
com quem a vejo enganar.
Vai-se Anfatrião e vem Aurélio e um seu moço, e diz Aurélio:
1695
No hallo a mis males culpa
1696
pera que merezca pena
1697
la causa que me condena.
Moço
1698
Essa está gentil desculpa
1699
para hoje dar Almena,
1700
tem-no mandado chamar
1701
e ele está tão descuidado.
Aurélio
1702
Moço, queres-me matar?
1703
Que desculpa posso eu dar
1704
milhor qu’este meu cuidado?
Moço
1705
E não há mais que fazer?
1706
Com isso a boca me tapa
1707
pera mais nada dizer.
Aurélio
1708
Ora dá-me cá essa capa
1709
e vamos ver o que quer.
1710
Não trates de mais rezão
1711
pois não há quem te resista.
1712
Que vejo? Outra novação?
Aurélio
Ou me mente a vista
1714
ou eu vejo Anfatrião.
Moço
1715
Eu ouvi a Feliseu,
1716
quando cá trouxe o recado,
1717
como ele era chegado,
1718
e quis-me dizer que veio
1719
do siso desconcertado.
Aurélio
1720
Isso quero eu saber,
1721
pois que tal cousa se soa.
1722
Senhor, pode-se dizer
1723
que a vinda seja mui boa?
Anfatrião
1724
Essa não pode ela ser.
Anfatrião
Porque é roubada
1726
minha honra sem temor
1727
e minha casa tomada
1728
e vossa prima enganada
1729
por um grande encantador.
Anfatrião
E manifesto,
1731
e tudo tem já por seu,
1732
adúltero e desonesto,
1733
tem tomado o meu gesto
1734
e faz-lhe crer que sam eu.
Aurélio
1735
Contais um caso d’espanto.
1736
E pois não podeis entrar,
1737
defendei-me por entanto
1738
que eu hei lá de chegar
1739
pera ver quem pode tanto.
Vai-se Aurélio dentro, e diz Anfatrião:
1740
Se ver desonra tam crara
1741
me não tevera o sentido
1742
totalmente endoudecido,
1743
que gravemente chorara
1744
ver tam grande amor perdido.
1745
E quando vejo a verdade
1746
do nosso amor e amizade
1747
desfeito com tanta mágoa
1748
enche-se-me os olhos d’água
1749
e alma de saudade.
1750
Assi que quis minha estrela
1751
para nunca ser contente
1752
que agora estando presente
1753
viva mais saudoso dela
1754
que quando dela era ausente.
1755
Esta porta vejo abrir
1756
com ímpeto demasiado.
1757
Que poderei presumir,
1758
que vejo Aurélio sair
1759
como homem desatinado?
Vem Aurélio e Belfarrão e Sósia, e diz Aurélio:
1760
Oh, estranha novidade,
1761
oh, causa para nam crer.
Belferrão
1762
Venho cego de verdade,
1763
que não puderam sofrer
1764
meus olhos a claridade.
Sósia
1765
Oh, triste, que vengo ciego
1766
con rayos y con visiones
1767
y destas encantaciones,
1768
si nuestra casa arde en fuego
1769
hanse de arder mis colchones.
Aurélio
1770
Vamos a Anfatrião
1771
contar-lhe cousas tamanhas.
Anfatrião
1772
Que vai lá? Que cousas vão?
Aurélio
1773
Maravilhas tam estranhas
1774
que me treme o coração.
1775
Porque aquele homem que assi
1776
tantos enganos teceu,
1777
como era cousa do céu,
1778
tanto que apareci
1779
logo desapareceu.
1780
E em desaparecendo
1781
com roído grande e horrendo
1782
toda a casa alumiou,
1783
e d’arte nos inflamou
1784
que nos vimos acolhendo
1785
do raio que nos cegou.
1786
Estes acontecimentos
1787
não são de humana pessoa,
1788
vós ouvis a voz que soa?
1789
Escutai, estai atentos,
1790
vejamos o que pregoa.
Voz de Júpiter de dentro:
1791
Anfatrião, que em teus dias
1792
vês tamanhas estranhezas,
1793
nam te espantem fantesias
1794
que às vezes grandes tristezas
1795
parem grandes alegrias.
1796
Júpiter sam, manifesto
1797
nas obras de admiração
1798
que por mim causadas são.
1799
Quis-me vestir em teu gesto
1800
por honrar tua geração:
1801
tua molher parirá
1802
um filho de mim gerado
1803
que Hércules se chamará,
1804
o mais valente e esforçado
1805
que no mundo se achará.
1806
Com este, teus sucessores
1807
se honrarão de serem teus,
1808
e dar-lhe-ão os escritores
1809
por doze trabalhos seus
1810
doze milhões de louvores.
1811
Dessa ilustre fadiga
1812
colherás mui rico fruito.
1813
Enfim, a razão me obriga
1814
que tam pouco dela diga
1815
porque o tempo dirá muito.
Fim.