Cena segunda.
Antonioto; Fabiano.
ANTONIOTO
631Dias há i em que os homens não podem ir avante por cousa que comecem.
FABIANO
632Estes são os mais neste tempo.
ANTONIOTO
633A isto chamam nadar, nadar e ir morrer à beira.
FABIANO
634Quê? Em tais Bancos de Frandes navegas?
ANTONIOTO
635Té Cesarião que busco, para lhe dar más novas, não o posso achar.
FABIANO
636Jará naquela casa.
ANTONIOTO
637Ó Fabiano, saber-m’-ás dizer de Cesarião?
FABIANO
638Hoje o vi e deve estar onde te disse.
ANTONIOTO
639Já é de lá degradado, não sei ainda se pera tod’o sempre.
FABIANO
640Assi o fizesse Deos, que é ũa grande quebra e vergonha sua andar como anda.
ANTONIOTO
641Com tanta dor de seu pai e de sua mãe.
FABIANO
642E dos seus amigos.
ANTONIOTO
643Tendo-o seu pai casado tam bem por todas as vias.
ANTONIOTO
645Ele to dirá, se to já não disse.
FABIANO
646Segredo é que tod’o mundo saberá cedo, se assi é.
ANTONIOTO
647Não é inda cousa muito certa.
FABIANO
648Assi duvidosa ma hás de dizer.
ANTONIOTO
649Deixa-me, que vou de pressa.
FABIANO
650Não deixarei. Conta-mo e irás mais leve.
ANTONIOTO
651Isto é força? Chamarei áque del rei.
FABIANO
652Está longe, não te ouvirá.
ANTONIOTO
653À fé que me não descubras.
FABIANO
654Como se fizesses ũa cova na terra a que o dixesses.
ANTONIOTO
655Nem essas não mantêm segredo, olha que me fio de ti.
FABIANO
656Dize seguramente.
ANTONIOTO
657Com a filha deste nosso vezinho.
ANTONIOTO
659Mário, que deves conhecer.
ANTONIOTO
661Não tem mais d’uma, e assi cuido que se chama. Deixa-me passar.
Encostou-se Fabiano e fica como pasmado.
FABIANO
662Antonioto não parece. Caíram-me as mãos, foi-se-me a vista dos olhos. Entretanto,
ele partiu e deixou-me morto, como dizem dos partos. Ah, fé boa e sã amizade tão más
d’achar neste mundo todo falso, todo cheo d’enganos e maldades. Os segredos da minh’alma,
Cesarião os sabia todos. Os seus sabe-os tod’o mundo senão eu, ele que mo assi encobriu
não foi sem causa. Poderão tal sofrer os tristes dos meus olhos? E ainda que daqui
fuja, poderá o triste do meu coração sofrer tal? Onde quer que ele vá, esta só é a
dor que o pode matar, e ela me matará. Ah, triste de mim, que nem aqueles meus amores
tam limpos puderam ser sem fel e sem tantas lágrimas. Onde as irei encobrir que me
assi descobrem?
Cena quarta.
Trefo; Antonioto.
TREFO
664Falando vai o velho consigo, Cesarião não parece, noss’ ama reza. Quero-me lograr
do dia.
ANTONIOTO
665Pera cá me disseram que vinha um perdido, quem o achará? Vejo Trefo que sai de casa.
TREFO
666Irei ver a Justiça que se hoje faz pomposamente, dizem que vai em ũa carreta rodeada
das suas vitórias pintadas. Vejo Antonioto, o diabo o agora cá traz.
ANTONIOTO
667Trefo, ah Trefo, não ouves?
TREFO
668A palavras loucas, orelhas moucas.
ANTONIOTO
669Trefo, Trefo, que te não errou o nome quem to pôs.
TREFO
670Ao menos não me comerás, que to defende a lei.
ANTONIOTO
671Faz que não ouve. Saber-me-ás dar novas?
TREFO
672De quem, filho de dous roins?
ANTONIOTO
673Deu-mas, mas foram de meu pai e de minha mãe. Torna cá.
TREFO
674Teu avô marmelo torto, tenho al que fazer.
ANTONIOTO
675E de meus avós também, e ainda se está rindo.
TREFO
676Não rio, mas arreganho-me.
ANTONIOTO
677Como um cão que és.
TREFO
678Mas como a cão que és.
ANTONIOTO
679Que dizes, roim?
TREFO
680Que falo com outro.
ANTONIOTO
681Por esta dom rapaz, olha que a beijo.
TREFO
682Não, por muito bem que lhe ora queiras.
ANTONIOTO
683Por esta que me Deos aqui pôs
TREFO
684Por esta em que o vós outros pusestes.
ANTONIOTO
685Ah, dom porco.
TREFO
686Por isso te avorreço tanto.
TREFO
688Portanto, ora me chamas Trefo ora porco.
ANTONIOTO
689Viste Cesarião?
ANTONIOTO
691Sabes onde o acharei?
TREFO
692Por este direito.
ANTONIOTO
693Está amostrando cornos. Por onde vai, cão perro?
TREFO
694Caminho da Praça Judea. Vem-se chegando.
ANTONIOTO
695Espera, má cousa.
ANTONIOTO
697Vejamos quem corre mais.
TREFO
698Quem mor medo houver.
Cena quinta.
Vilhalpando; Milvo.
VILHALPANDO I
699Ora vejamos este contrato em que tanto confias.
MILVO
700Temos negócio c’o mesmo diabo, mas deixa-me que eu te segurarei daquela velha.
VILHALPANDO I
701Crê-me que não há de brincar comigo.
MILVO
702Ora provam forças, ora manhas. Às forças acudirás tu, às manhas eu.
VILHALPANDO I
703Nesta vossa Roma tudo é papel e tinta.
MILVO
704E nem assi não pode homem sair de dúvida.
VILHALPANDO I
705Assi acontece onde há pouca verdade.
MILVO
706Escuita, e leo somente as forças: «tal dia de tal mês de tal ano...»
VILHALPANDO I
707Entendo.
MILVO
708«O capitão Vilhalpando...»
VILHALPANDO I
709O senhor ficou no tinteiro.
MILVO
710«O senhor capitão Vilhalpando duma parte e Giscarda da outra fizeram, concertaram,
contrataram desaforadamente...»
VILHALPANDO I
711Espera, que me não parece cousa conveniente contratar eu com Giscarda.
MILVO
712Diremos logo assi: «e doutra parte Milvo pelo senhor capitão».
VILHALPANDO I
713Não vês quanto milhor está assi?
MILVO
714Como de branco a preto. Digo mais: «que ele dito senhor capitão desse à dita Giscarda
trinta escudos d’ouro do sol...»
VILHALPANDO I
715Dos que lh’est’ano renderam os franceses.
VILHALPANDO I
717Estou gracejando contigo, vai adiante.
MILVO
718«Dos quais trinta escudos acima declarados, a dita Giscarda logo i confessou que tinha
já recebidos dez por mão dele dito Milvo, feitor dele, dito senhor capitão...»
VILHALPANDO I
719Este nome de feitor é muito mercantil.
MILVO
720«Por mão do dito Milvo, seu procurador...»
VILHALPANDO I
721Pedir-te-ão logo conta da procuração.
MILVO
722«Por mão do dito Milvo, do qual o dito senhor capitão se quis servir neste caso...»
A ver se acabaremos.
VILHALPANDO I
723Assi está mais cortesão.
MILVO
724«Os outros vinte lhe dará, entregará, pagará...»
VILHALPANDO I
725Emenda: «lhe mandará dar, entregar, pagar».
VILHALPANDO I
727Adiante.
MILVO
728«A cada quinze dias seguintes outros dez escudos...»
VILHALPANDO I
729Dize aí mais: «por lhe fazer graça e mercê».
MILVO
730«Por lhe o dito senhor capitão fazer graça e mercê...»
VILHALPANDO I
731Prossigue.
MILVO
732«E isto durante o tempo do seu contrato, como se declara...»
VILHALPANDO I
733Está bem, dize mais.
MILVO
734«E logo assi mesmo da outra parte a dita Giscarda em seu nome e de Aurélia bolonhesa,
sua filha...»
VILHALPANDO I
735Não guardas o decoro?
VILHALPANDO I
737Não vês tu que é ela «minha senhora»?
MILVO
738Estou no cabo: «em seu nome e da senhora, a senhora Aurélia bolonhesa...»
VILHALPANDO I
739Está como deve, dize mais.
MILVO
740«Prometeu, concertou e declarou que dos primeiros dous meses seguintes, contando trinta
dias por cada mês, todas as terças-feiras e as quintas de cada somana, elas lhe despejem
a casa...»
VILHALPANDO I
741A minha ou a sua?
MILVO
742Bem apontas, que são aves de rapina, mester há declarado: «que elas lhe despejem as
casas em que ora vivem de tod’a pessoa viva...»
VILHALPANDO I
743Não digas tampouco assi, que eu não hei mester as paredes.
MILVO
744Onde dizia «de tod’a pessoa viva», ponho «de tod’a pessoa de fora».
VILHALPANDO I
745Não vês quanto releva ũa só palavra?
MILVO
746Às vezes mais do que a razão quer, por isso não lhe hajamos dó delas.
VILHALPANDO I
747Dize mais.
MILVO
748«De sorte, modo, forma e maneira...»
VILHALPANDO I
749«Via, jure et causa».
MILVO
750A que propósito?
VILHALPANDO I
751Tudo acham que aproveita.
MILVO
752Muito embora: «jure via et causa, que sendo o dia seguinte terça-feira, como será
de manhã, logo a noite d’hoje faça por ele sobredito senhor capitão com seu dia, e
outro tanto às quintas-feiras de cada somana, durante o termo dos dous meses, como
dito é...»
VILHALPANDO I
753Como o cuidaste agudamente em obrigares primeiro as noites! Dormiremos as manhãs!
MILVO
754Estes são os meus pontos, que se fora pera cavar e roçar, metera primeiro os dias.
VILHALPANDO I
755Ah, ah, ah, como és salgado! Vai avante.
MILVO
756«E acabadas as ditas noites com os seus dias o sobredito senhor capitão lhes tornará
a despejar sua casa...»
VILHALPANDO I
757Declara «por sua cortesia».
MILVO
758«Por sua própia e livre vontade e pura cortesia».
VILHALPANDO I
759Depois que te homem põe no caminho, muito bem assentas tudo.
MILVO
760Nos primores d’honra não sam tão usado, no mais descansa.
VILHALPANDO I
761Vai por teu contrato adiante.
MILVO
762«Nos quais dias assi obrigados, das portas adentro não haverá nenhum negócio...»
VILHALPANDO I
763Praticamente.
MILVO
764«Puridades, nem acenos, nem outro mistério algum...»
VILHALPANDO I
765Muito bem.
MILVO
766«Remoques, nem palavras com dous entenderes...»
VILHALPANDO I
767Nem dirivações.
MILVO
768Bem dizes, que aprazem inda muito a certa gente. «Não haja coimas, nem achaques...»
VILHALPANDO I
769Os ciúmes, todavia, não se escusam nos amores.
MILVO
770«Ressalvando sempre os ciúmes a que se não pode poer lei...»
VILHALPANDO I
771Galantemente, prossigue.
MILVO
772«Não terá a dita senhora Aurélia aqueles dias amigo, inda que seja de bõa amizade,
nem parente, inda que seja irmão...»
VILHALPANDO I
773Bem te seguraste dos primos.
MILVO
774«Serão assi mesmo os sobreditos dias forros, livres e isentos de todo jejum, votos,
romaria e toda a devação...»
VILHALPANDO I
775Muito bem, prometam do seu, se quiserem.
MILVO
776Por isso não vês que dias te escolhi? Que em um cai sempre o Entruido e no outro a
Festa das Comadres?
VILHALPANDO I
777Festas corporais, que se fazem guardar por si.
MILVO
778«Não suspire, não ande cuidosa, não lhe venha dor de coração...»
VILHALPANDO I
779Nem d’olhado, que é muito de fermosas.
MILVO
780«Nem lhe venham cartas de sua terra...»
VILHALPANDO I
781Como dizes bem, que tresandam toda ũa pessoa e nunca a deixam como a tomaram dantes.
MILVO
782É muito grande verdade. «Não saiba ditos nem motes...»
VILHALPANDO I
783Tem aí ponto, «nem contos de seus monseores...»
VILHALPANDO I
785De que te ris?
MILVO
786Deixa-me primeiro matar de riso. Ora vês aqui por que ria?
VILHALPANDO I
787É verdade, que assi o tinhas assentado.
MILVO
788Polas mismíssimas palavras. Ora ouve mais: «Não lave aquela noite a cabeça, nem ande
de rodilhado...»
VILHALPANDO I
789As moças fermosas são as mais frescas.
MILVO
790Em tua escolha é, eu queria arredar inconvenientes.
VILHALPANDO I
791Enfim, dizes verdade, seja tudo obra chã.
MILVO
792«Não tangerá, nem cantará tão alto que possa ser sinal aos de fora...»
VILHALPANDO I
793Quantas vezes me já aconteceu com as amigas alheas.
MILVO
794«Aqueles dias, tudo seja música de câmara...»
VILHALPANDO I
795Delicado ponto.
MILVO
796«Não haja menino em casa que ela tome nos braços e beije à jenela, de beijos chupados...»
VILHALPANDO I
797Que às vezes se ouvem no cabo de toda a rua.
MILVO
798«Os convidados e amigos dele dito senhor capitão, tratá-los-á a dita senhora igualmente...»
VILHALPANDO I
799Si, que são muito de bandos, mais que os catelães.
MILVO
800«Seja a mesa larga e haja sempre muitas candeas...» Não fiquemos às escuras.
VILHALPANDO I
801Bem te acautelaste dos pés ao claro e das mãos ao escuro.
MILVO
802Por se homem acautelar nam perde nada. Digo mais: «não ensine por aqueles dias o seu
papagaio a dizer ‘meus olhos, meu coração, minha alma, minha vida, beijai-me’...»
VILHALPANDO I
803Matas-me d’amores.
MILVO
804«Nam consinta que se lhe chegue ninguém a ver as suas jóias...» Gabem-lhas de longe,
o que quiserem comprar busquem-no nas tendas.
VILHALPANDO I
805Falas como um Séneca.
MILVO
806«Assi mais, durante o dito tempo, não mudará nome nem casa...»
VILHALPANDO I
807Dizem-me que muito o costumam estas vossas cortesãs.
MILVO
808Por levarem muitas novidades; ora são Aurélias, ora Faustinas, ora Dianas. Falece
algũa cousa?
VILHALPANDO I
809Tudo está de mão de mestre.
MILVO
810«E por aqui houveram seu contrato por acabado, prometendo d’haver tudo por rato, grato,
firme e valioso, renunciando juiz e juízes de seu foro...»
VILHALPANDO I
811Não cuidei que eras tam prático.
MILVO
812«E rogaram a mim, sobredito Milvo...»
VILHALPANDO I
813Isso é muito destes notairos, que dizem sempre no fim «rogado e requerido».
MILVO
814«E assi mandaram ao dito cabrão de Milvo que o escrevesse».
VILHALPANDO I
815Parece como que te anojaste.
MILVO
816Antes te digo que topaste com um homem muito pontoso.
VILHALPANDO I
817Não pode estar milhor, vai e assina.
MILVO
818Que enfadonho pontoso! O acutiladiço não há também de querer perder ponto de diligência.
Lá se avenham, a noite é, como dizem, capa d’órfãos, cubram-se com ela. Ah, com quanta
fadiga ganhamos este inferno.
Cena oitava
Antonioto; os dous Vilhalpandos; Giscarda; Torquemada, paje.
ANTONIOTO
840Cuidei que se me fora Cesarião lançar no rio, ele pera lá fez ũa ponta. Mas, finalmente,
tomou meu conselho e acolheu-se a casa. Eu, por agora, não quero entrar com o velho
em campo cerrado, antes quero andar cá por fora às aventuras.
VILHALPANDO II
841Determino d’acometer a porta afoutamente, que sempre valeu muito a segurança do coração
e das palavras. Tá, tá, tá. Já vem. Cuidado havia em casa.
ANTONIOTO
842Entrada é a fortaleza, sem muita bateria; mais bateu Cesarião a noite passada.
VILHALPANDO I
843Sempre o diabo a tais tempos traz embaraços de que me não pude desenvolver mais cedo,
mas o contrato me assegura.
ANTONIOTO
844Outro vem e leva a mesma viagem. Mas anteparou, quero espreitar.
VILHALPANDO I
845Paje, bate a essa porta.
TORQUEMADA
846Tá, tá, tá.
ANTONIOTO
847Parece-me que tarde piache.
VILHALPANDO I
848Bate bem, hás dó da porta?
TORQUEMADA
849Não hei senão da minha mão.
VILHALPANDO I
850Toma ũa pedra, que à minha porta bates.
TORQUEMADA
851Trás, trás, trás.
ANTONIOTO
852Ao capitão mentiram-lh’as espias, a quanto vejo.
VILHALPANDO I
853Espera, que ouço falar dentro.
TORQUEMADA
854E rir também, mande Deos que não seja de nós.
VILHALPANDO I
855Escuita rapaz, que tanto falas?
GISCARDA
856Quem quebra essa porta?
VILHALPANDO I
857Quem já tem quebrados os olhos, olhando se aparecia alguém.
GISCARDA
858E quem é o galante dos olhos quebrados?
VILHALPANDO I
859O maior servidor.
VILHALPANDO I
861O que de vencido venceu.
TORQUEMADA
862Como é parvo este meu amo.
GISCARDA
863Cada noite havemos aqui de ter quebradores de portas.
VILHALPANDO I
864Aberta me houvera ela de estar por obrigação, mas parece que nesta terra nem contratos
desaforados não valem.
ANTONIOTO
865Bem começa a noite.
GISCARDA
866Oh, Roma, que patranhas são as tuas!
TORQUEMADA
867Esta é ũa das boas.
VILHALPANDO I
868Que contrataste hoje com Milvo?
GISCARDA
869O que eu com Milvo contratei eu lho compri.
VILHALPANDO I
870Não certo inda até‘gora.
GISCARDA
871A bem virá este negócio.
VILHALPANDO I
872Não sei, mas ele mal começa.
GISCARDA
873Por culpa de quem?
VILHALPANDO I
874Da porta que inda está fechada.
GISCARDA
875Abriu-se a quem se havia d’abrir.
VILHALPANDO I
876Ora pois, já que hei de falar da rua: não se havia ela d’abrir ao capitão Vilhalpando
por seu contrato?
GISCARDA
877É muita verdade.
VILHALPANDO I
878Pois como o tendes assi fora em tantas práticas?
GISCARDA
879Ai minha mãe, que quer isso dizer? E tu quem és?
VILHALPANDO I
880O mesmo que se nunca negou, nem negará.
GISCARDA
881Oh, graça das graças. Filha, temos à porta outro capitão Vilhalpando!
TORQUEMADA
882Este só basta para enfadar o mundo, quanto mais dous.
VILHALPANDO II
883Que zombarias são estas ou que borracharias?
VILHALPANDO I
884As bulras e borracharias são as dessa casa, que de fora não se fala senão muita verdade.
VILHALPANDO II
885Que tu és o capitão Vilhalpando?
VILHALPANDO I
886E tu nega-lo?
VILHALPANDO II
887Salvo se tu és eu.
VILHALPANDO I
888Tu vê quem és, que eu sam o capitão Vilhalpando, conhecido na guerra dos grandes e
pequenos.
VILHALPANDO II
889Na guerra bem nos averemos. Por agora, quem te fez aí vir?
VILHALPANDO I
890Milvo, por cujo meo contratei.
VILHALPANDO II
891Que graça tamanha seria se i houvesse também dous Milvos.
VILHALPANDO I
892Eu digo o que levou a esparsa.
VILHALPANDO II
893E eu o da esparsa digo.
VILHALPANDO I
894O que levou os escudos.
VILHALPANDO II
895E eu o dos escudos, senão que eram todos do sol.
VILHALPANDO I
896O do contrato desaforado.
VILHALPANDO II
897Por virtude do qual esta casa é agora minha com suas vinte e quatro horas.
VILHALPANDO I
898Milvo florentino, muito mau cabrão.
VILHALPANDO II
899Esse mesmo.
TORQUEMADA
900Se quererá este também ser meu amo!
VILHALPANDO I
901Que gente capitaneaste? Que desafios fizeste? Em que feitos d’armas te achaste?
VILHALPANDO II
902Não são contas pera aqui, pide-mas em outra parte.
VILHALPANDO I
903Como diz essa tua esparsa?
VILHALPANDO II
904«Hércules que la serpienta, etc.»
VILHALPANDO I
905E tu a fizeste?
VILHALPANDO II
906Não, por te dizer verdade, que o começo é já velho; o cabo lhe enxeri eu como a gavião.
VILHALPANDO I
907Os escudos quantos foram?
VILHALPANDO II
908Não mais de dez, em começo de paga.
TORQUEMADA
909Quero dizer a meu amo que acudamos a casa antes que lá vá estoutro apanhar tudo.
VILHALPANDO I
910Ah Roma, ah Milvo, ah molheres!
VILHALPANDO II
911Mas por que não falas tu na empresa que a senhora Aurélia mandou a esse capitão Vilhalpando,
seu servidor?
VILHALPANDO I
912Por quem?
VILHALPANDO II
913Por o mesmo Milvo.
VILHALPANDO I
914E que empresa?
VILHALPANDO II
915Um lenço, com que primeiro alimpou o seu fermoso rosto.
TORQUEMADA
916Calou noss’amo, parece-me que c’o outro havemos de viver todos.
VILHALPANDO I
917Mas seja assi, partamos logo esta deferença à espada. Pera que há d’haver tantos Vilhalpandos?
VILHALPANDO II
918Como? E hás medo que te fuja o tempo? Deixa vir o dia.
VILHALPANDO I
919Não, mas hei medo que me fujas tu.
VILHALPANDO II
920Então que queres mais que ficares por um só Vilhalpando?
VILHALPANDO I
921Agora me relevava.
VILHALPANDO II
922Por agora, quero-me assi estar em minha posse. Depois, quem me algũa cousa quiser
requeira-me por si e como deve.
VILHALPANDO I
923Ah romanisco falso, letigoso.
VILHALPANDO II
924Vai passear, que a senhora Aurélia me tem preso e me não leixa lá sair.
VILHALPANDO I
925Ora capitão Vilhalpando, novamente descuberto, estás bem agasalhado por esta noite
e eu mal. Amanhã eu passearei por Santo Agostinho té às dez horas com um penacho branco.
Quero ver qual é o Vilhalpando que por i parece com outro tal sinal, pera que nos
conheçamos.
VILHALPANDO II
926Logo queres que eu tenha outro penacho branco?
VILHALPANDO I
927Tens-me o meu nome, tens-me a amiga, tens a minha esparsa e o meu contrato e só o
penacho branco te falece?
VILHALPANDO II
928Ora vai, que nam falecerá.
TORQUEMADA
929Fechou a janela, quisera-me decrarar primeiro com ele e contigo.
TORQUEMADA
931Com qual hei de ficar.
VILHALPANDO I
932Queres que te esbarre àquela parede? Onde acharei Milvo? E, entretanto, onde acharei
paciência?
TORQUEMADA
933Quando te não abrem a tua porta como te abrirão as alheas?
VILHALPANDO I
934Não te queres calar? Recolhamo-nos.
TORQUEMADA
935Recolhamos, que, enfim, sempre ouvi dizer que milhor era o meu que o nosso.
VILHALPANDO I
936Judeu, truão, que fala às portas fechadas. Eu o acolherei.
TORQUEMADA
937Dá-o ò demo. Grandes sinais dava.
VILHALPANDO I
938Que sinais? Os que lhe disse Milvo?
TORQUEMADA
939E Aurélia, que era perdida por ti, que fazia? Ouvia e calava.
VILHALPANDO I
940De manhã sairemos de todas essas dúvidas.
TORQUEMADA
941Mas sempre ouvi dizer que em Roma nem de si mesmo se há homem de fiar, e agora o vi
craramente.
VILHALPANDO I
942Por que me fiei de Milvo?
TORQUEMADA
943Não digo senão de ti mesmo, ao pé da letra, que quando foste, já te lá achaste diante.
VILHALPANDO I
944Tu queres pagar por todos?
ANTONIOTO
945Oh graça, oh saboroso acontecimento, oh Cesarião, que assi empregas bem teus sospiros
e as tuas lágrimas, quem te me aqui dera! Tu queres morrer d’amores por Aurélia e
os Vilhalpandos a pares. Já me é necessário esperar a menhã andando por estas ruas.