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Ó ama amanheceu-me um alvo dia.
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Dia de meu descanso. Sofre um pouco
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repetir de mais alto a minha história
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enquanto o sprito ledo co a lembrança
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de seu temor de que já está seguro
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ajunta ao mal passado o bem presente.
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Daquele grande Afonso forte e santo
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por poderosa mão de Deos alçando
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entre armas, ant‘imigos o real cetro
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do grande Portugal que inda está tinto
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do sangue de infiéis por seu bom braço
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por legítima herança rege e manda
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o bom velho glorioso da vitória
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e nome do Salado, Afonso Quarto
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dos reis de Portugal sétimo em ordem
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filho do grande Dinis, de Isabel Santa
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ambos já no alto céu claras estrelas
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cuja alta casa e acrecentado império
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pelos grandes avós, espera alegre
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seu desejado herdeiro o ifante Pedro
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meu doce amor, minha esperança e honra.
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Sabes como em saindo dos teus braços
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Ama, na viva flor da minha idade
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(ou fosse fado seu ou estrela minha)
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c’os olhos lhe acendi no peito fogo
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fogo que sempre ardeu e inda arde agora
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na primeira viveza inteiro e puro.
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Por mim lhe aborreciam altos estados
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por mim os nomes de princesas grandes
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por tam grande me havia nos seus olhos.
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Um tempo duro, mas em fim forçado
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deu a Costança a mão, Costança aquela
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por tantas armas e furor trazida
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já quasi do seu fado triste agouro.
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Deu a Costança a mão mas a alma livre,
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amor, desejo e fé me guardou sempre.
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Quantas vezes quisera honestamente
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podê-la dar a mim. Quantas mais vezes
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s’arrependeu despois de se ver preso.
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Não lhe apagou o amor a nova esposa
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não o tam festejado nascimento
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do desejado parto: antes mais vivo
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c’o tempo e c’o desejo ardia o fogo.
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Que fará? Se o encobre então mais queima.
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Descobri-lo nam quer nem lhe é honesto.
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Mas quem o fogo guardará no seo?
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Quem esconderá amor que em seus sinais
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apesar da vontade se descobre?
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Nos olhos e no rosto chamejava.
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Nos meus olhos os seus o descobriam.
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Suspira e geme e chora a alma cativa
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forçada da brandura e doce força
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sojeita ao cruel jugo que pesado
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a seu desejo sacodir deseja.
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Não pode, não convém, a fúria cresce.
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Lavra a doce peçonha nas entranhas.
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Òs homens foge, foge à luz e ò dia.
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Só passea, só fala, triste cuida.
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Castro na boca, Castro n’alma, Castro
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em toda parte tem ante si presente.
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Ele à molher cuidado, eu ódio e ira.
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Arde o peito a Costança em furor novo.
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Nem me ousam descobrir nem vedar nada.
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D’antiga casa Castro em toda Espanha
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já dantes do real cetro deste reino
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por grande conhecida, inda meu sangue
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do real sangue seu tinha grã parte.
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Mas inda à natureza dobram força
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arte ajuntando e manha: el rei ao neto
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por madrinha me dá, comadre ao filho.