António Ferreira

Castro





Texto utilizado para esta edición digital:
Ferreira, António. Castro (1598). [on-line] En: Camões, José (dir.) Teatro de autores portugueses do Séc. XVI. Base de dados textual. Lisboa: Centro de Estudos de Teatro, Universidade de Lisboa. [15 março 2019] Disponível em: http://www.cet-e-quinhentos.com/
Adaptación digital para EMOTHE:
  • Camões, José
  • Silva, Helena Reis

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Pessoas da tragédia

Castro
Ama
Coro das moças de Coimbra
Ifante dom Pedro
Secretário seu
el rei dom Afonso IV
Pêro Coelho
Diogo Lopes Pacheco
Messageiro

Acto I

Castro. Ama. Coro.

CASTRO
1
Colhei, colhei alegres
2
donzelas minhas, mil cheirosas flores.
3
Tecei frescas capelas
4
de lírios e de rosas, coroai todas
5
as douradas cabeças.
6
Espirem suaves cheiros
7
de que s’encha este ar todo.
8
Soem doces tangeres, doces cantos.
9
Honrai o claro dia
10
meu dia tam ditoso. A minha glória
11
com brandas liras, com suaves vozes.

AMA
12
Que novas festas, novos cantos pedes?

CASTRO
13
Ama, na criação ama, no amor mãe
14
ajuda-m’ao prazer.

AMA
15
Novos extremos vejo.
16
Nas palavras prazer, água nos olhos.
17
Quem te faz juntamente leda e triste?

CASTRO
18
Triste não pode estar quem vês alegre.

AMA
19
Mistura às vezes a fortuna tudo.

CASTRO
20
Riso, prazer, brandura n’alma tenho.

AMA
21
Lágrimas sinais são da má fortuna.

CASTRO
22
Também da boa fortuna companheiras.

AMA
23
À dor são naturais.

CASTRO
E ao prazer doces.

AMA
24
Que força de prazer tas traz aos olhos?

CASTRO
25
Vejo meu bem seguro que receava.

AMA
26
Que novo caso foi? que bem te veo?
27
Por que me tens suspensa?
28
Abre-me já senhora essa alma tua.
29
O mal s’abranda, o bem contando-o cresce.

CASTRO
30
Ó ama amanheceu-me um alvo dia.
31
Dia de meu descanso. Sofre um pouco
32
repetir de mais alto a minha história
33
enquanto o sprito ledo co a lembrança
34
de seu temor de que já está seguro
35
ajunta ao mal passado o bem presente.
36
Daquele grande Afonso forte e santo
37
por poderosa mão de Deos alçando
38
entre armas, ant‘imigos o real cetro
39
do grande Portugal que inda está tinto
40
do sangue de infiéis por seu bom braço
41
por legítima herança rege e manda
42
o bom velho glorioso da vitória
43
e nome do Salado, Afonso Quarto
44
dos reis de Portugal sétimo em ordem
45
filho do grande Dinis, de Isabel Santa
46
ambos já no alto céu claras estrelas
47
cuja alta casa e acrecentado império
48
pelos grandes avós, espera alegre
49
seu desejado herdeiro o ifante Pedro
50
meu doce amor, minha esperança e honra.
51
Sabes como em saindo dos teus braços
52
Ama, na viva flor da minha idade
53
(ou fosse fado seu ou estrela minha)
54
c’os olhos lhe acendi no peito fogo
55
fogo que sempre ardeu e inda arde agora
56
na primeira viveza inteiro e puro.
57
Por mim lhe aborreciam altos estados
58
por mim os nomes de princesas grandes
59
por tam grande me havia nos seus olhos.
60
Um tempo duro, mas em fim forçado
61
deu a Costança a mão, Costança aquela
62
por tantas armas e furor trazida
63
já quasi do seu fado triste agouro.
64
Deu a Costança a mão mas a alma livre,
65
amor, desejo e fé me guardou sempre.
66
Quantas vezes quisera honestamente
67
podê-la dar a mim. Quantas mais vezes
68
s’arrependeu despois de se ver preso.
69
Não lhe apagou o amor a nova esposa
70
não o tam festejado nascimento
71
do desejado parto: antes mais vivo
72
c’o tempo e c’o desejo ardia o fogo.
73
Que fará? Se o encobre então mais queima.
74
Descobri-lo nam quer nem lhe é honesto.
75
Mas quem o fogo guardará no seo?
76
Quem esconderá amor que em seus sinais
77
apesar da vontade se descobre?
78
Nos olhos e no rosto chamejava.
79
Nos meus olhos os seus o descobriam.
80
Suspira e geme e chora a alma cativa
81
forçada da brandura e doce força
82
sojeita ao cruel jugo que pesado
83
a seu desejo sacodir deseja.
84
Não pode, não convém, a fúria cresce.
85
Lavra a doce peçonha nas entranhas.
86
Òs homens foge, foge à luz e ò dia.
87
Só passea, só fala, triste cuida.
88
Castro na boca, Castro n’alma, Castro
89
em toda parte tem ante si presente.
90
Ele à molher cuidado, eu ódio e ira.
91
Arde o peito a Costança em furor novo.
92
Nem me ousam descobrir nem vedar nada.
93
D’antiga casa Castro em toda Espanha
94
já dantes do real cetro deste reino
95
por grande conhecida, inda meu sangue
96
do real sangue seu tinha grã parte.
97
Mas inda à natureza dobram força
98
arte ajuntando e manha: el rei ao neto
99
por madrinha me dá, comadre ao filho.

AMA
100
Cegos, que quanto mais vedam mais chamam.
101
Cresce co a força amor, e o que à vontade
102
se faz mais impossível mais deseja.

CASTRO
103
Em fim fortuna que me já chamava
104
esta glória tam grande quebra o nó
105
daquele jugo a meu amor contrário.
106
Leva ante tempo a morte à ifante triste.
107
Herdo eu mais livremente o amor constante
108
que a mim se entregou todo e todo vive
109
na minh’alma onde está seguro e firme
110
já com doces penhores confirmado.
111
Mas o sprito inquieto c’os clamores
112
do povo e rogos graves que trabalham
113
apartar est’amor, quebrar sua força
114
me traziam medrosa receando
115
a volta da fortuna, que ora amiga
116
ora imiga cruel, alça e derriba
117
que sempre do mor bem mor mal promete
118
falsa, inconstante, cega, vária e forte.
119
Lograva como a medo os meus amores.
120
Criava o grande amor desconfiança
121
e a conciência errada sempre teme.

AMA
122
Quem te segurou já? quem novo sprito
123
te deu aos temores?

CASTRO
O meu medo.

AMA
124
Contrárias cousas falas.

CASTRO
O medo ousa
125
às vezes mais que o esforço, tomo os filhos
126
co as lágrimas nos olhos, rosto branco
127
a língua quasi muda, em choro solta
128
ant‘ele assi começo: meu senhor
129
soam-me as cruéis vozes deste povo
130
vejo del rei a força e império grave
131
armado contra mim, contra a constância
132
que em meu amor té ‘gora tens mostrado.
133
Não receo senhor que a fé tam firme
134
queiras quebrar a quem tua alma deste
135
mas receo a fortuna que mais possa
136
com seu furor que tu com teu amor brando.
137
Por estas minhas lágrimas, por esta
138
mão tua que em sinal de fé me deste
139
pelos doces amores, doce fruito
140
que deles tens diante, se me deves
141
amor igual ao meu ou se algũ‘hora
142
fui a teus olhos vista alegre e doce
143
me segures, me guardes, me conserves
144
contra os duros mandados de teu pai
145
contra importunas vozes dos que podem
146
mudar acaso teu constante peito.
147
Ou quando minha estrela e cruel génio
148
te puder arrancar dest’alma minha
149
com teu armado braço envolta em sangue
150
m’arranques deste corpo, que não veja
151
tam triste dia, tam cruel mudança.
152
Eu tomarei por doce a minha morte
153
por piadoso amor tal crueldade.

AMA
154
Moveste-me a alma e os olhos.

CASTRO
155
Assi disse. Ele então lançando os braços
156
estreitamente em mim, mudado todo
157
em vão trabalha de encobrir a mágoa
158
de meu temor e lágrimas. E pode
159
ó dona Inês, me diz, pode teu peito
160
conceber tal receo? Aquele dia
161
primeiro que te vi não mostrou logo
162
que esta minh’alma à tua só se deve?
163
Por ti a vida me é doce, por ti espero
164
acrecentar impérios, sem ti o mundo
165
duro deserto me pareceria.
166
Não poderá fortuna, não os homens
167
não estrelas, não fados, não planetas
168
apartar-me de ti por arte ou força.
169
Nesta tua mão te ponho firme e fixa
170
minh’alma, por ifante te nomeo
171
do meu amor senhora e do alto estado
172
que me espera e teu nome me faz doce.
173
O grande movedor dos céus e terras
174
invoco e chamo aqui: o alto céu m’ouça
175
e meu intento santo aprove e cumpra.

AMA
176
Entendo o teu prazer, as tuas lágrimas.
177
Também de prazer choro, tam contrária
178
nos é sempre a alegria que inda toma
179
lágrimas emprestadas à tristeza.

CASTRO
180
Já não temo fortuna, já segura
181
e leda vivirei.

AMA
No real sprito
182
não se deve esperar leve mudança.
183
Ajuda tua estrela co bom siso.
184
Muitas vezes a culpa empece ao fado.
185
Prudência e bom conselho o bem conserva
186
a soberba o destrue e em gram mal muda.

CASTRO
187
Rege tu Ama minha este meu peito.
188
O súbito prazer engana e erra.

AMA
189
Encobre teu segredo.

CASTRO
N’alma o tenho.

AMA
190
Deos to conserve.

CASTRO
Humilde aos céus o peço.

Ifante. Coro.

IFANTE
191
Poderoso senhor, grão pai do mundo
192
cujo poder ĩmenso, altas grandezas
193
cantam os céus, a terra, os elementos
194
a cujo aceno treme a redondeza
195
a cujo querer nada é impossível
196
fortalece meu peito, arma-me todo
197
de paciência igual à dura afronta.
198
Sossega os alvoroços deste povo
199
a fúria de meu pai, que em vão trabalha
200
arrancar-me minh’alma donde vive.
201
Sou humano senhor, tentações grandes
202
vencem ânimos fortes.
203
Ferve o sangue, arde o peito, cresce-me ira
204
contra quem me persegue, tu me amansa.
205
Não poderei sofrer, não poderei
206
a dura pertinácia, o cruel ódio
207
que ao meu doce amor mostram.
208
Vence a dor a razão, vence amor força.
209
Tu conserva, alto Deos, a prometida
210
fé a quem já de lá dar-ma mandaste.
211
Tudo de ti procede, sem ti nada
212
se move cá na terra. Quem entende
213
teus meos e teus fins e teus segredos?
214
Quantas vezes mal é o que bem parece.
215
Quantas vezes o mal causa bens grandes.
216
Quanto tempo sofreste ó grande Afonso
217
no nome de Bolonha celebrado
218
que novas torres ajuntou às quinas
219
dura força fazendo ao matrimónio
220
contr’as divinas leis, contra as humanas.
221
Quem então não chorava a crueldade
222
contra o primeiro amor? E quem calava
223
a dura pertinácia do segundo?
224
Mas tu querias dar ao mundo o grande
225
forte, prudente e santo, um só Dinis
226
paz e concórdia entre altos reis, que reinos
227
deu e tirou, em armas claro e em letras.
228
Eu de seu sangue, de seu estado herdeiro
229
por que do meu amor tam mal julgado
230
nam esperarei grandezas? Vê-las-ei
231
vê-las-ei de ti Castro, vive leda
232
vive segura, lança os medos fora
233
que antes morte que vida sem ti quero.

CORO
234
Não é desculpa ao mal outro mal grande.
235
Quam danoso é no mundo um mau exemplo.
236
Mas não pode assi ser a razão cega
237
que o que reprende em outro, em si o aprove.
238
Cada um levar se deixa da vontade.

Secretário. Ifante. Coro.

SECRETÁRIO
239
Quem ajuntar puder com água o fogo
240
quem misturar c’o dia a noite escura
241
e quem o mau pecado com a virtude
242
este no amor ajuntará razão
243
este em falsa lisonja a lealdade.
244
Um o amor não sofre, outro a virtude.
245
E eu destes ambos venho agora armado.
246
Não sei se poderei vencer com eles.
247
S’algum sprito bom me quisesse ora
248
ajudar lá dos céus e aqui acabasse
249
esta vida, que fim mais glorioso
250
que polos céus deixar a baixa terra
251
antes que por temor, honra e verdade?
252
Aquele é que lá vejo pensativo
253
Deos m’inspire que diga sem temor.
254
Confiança há mister e ânimo livre
255
quem quiser resistir ao mau propósito
256
do príncipe, em que está determinado.
257
Mas deixar de o fazer é vil fraqueza.

IFANTE
258
Que dirás Secretário a tam grã força
259
como querem fazer a esta minh’alma?

SECRETÁRIO
260
Senhor, mas antes querem dar-ta livre
261
donde está tam forçada e tam cativa.

IFANTE
262
Arrancam-me as entranhas. Que me querem?
263
Esta gente que quer, que assi me mata?

SECRETÁRIO
264
Querem-te só e procuram-te tua honra.
265
E quebrar daqui as asas à fortuna
266
que contra ti não tenha nunca forças.

IFANTE
267
Mas antes lhas vão dando quanto podem
268
procurando apartar-me donde vivo.

SECRETÁRIO
269
Se te visses senhor ver-te-ias morto.
270
Ver-te-ias cego. Enquanto homem não vive
271
com su’alma própria pode a tal ser vida?

IFANTE
272
Também tu me persegues. Também vens
273
afiado cortar-me estas raízes
274
que no meu peito já tam firmes tenho?

SECRETÁRIO
275
Piadosa obra faz ao que está preso
276
quem as prisões lhe corta e as más cadeas?
277
Ó claríssimo Ifante meu senhor
278
muito há que me conheces. Teus segredos
279
de mim com razão sempre confiaste
280
nunca te descobri as zombarias
281
nunca descobrirei o menor deles.
282
D’ũa parte me tens por secretário
283
mas doutra me hás de ter por conselheiro.
284
Comprirei eu contigo e c’o que devo
285
Então venha tua ira que eu não quero
286
melhor morte que aquela que de infâmia
287
livrar a vida, e a alma de perigo.
288
Não vês senhor que o sol se escurecesse
289
quanto cobre e descobre ficaria
290
tam triste e escuro como agora claro?
291
Pois tal é o bom príncipe: sol nosso
292
com cuja luz nós vemos e seguimos
293
a justiça que aos céus nos vai levando.
294
Se s’esta em ti perder onde a acharemos?
295
Quem a virtude seguirá, quem honra?
296
Abateres-te assi de príncipe alto
297
a pensamentos baixos que s’estranham
298
nos homens baixos, parecer-te pode
299
grandeza de ti digna e do que deves
300
a este estado tam alto que te espera?

IFANTE
301
Quem tam livre te faz e tam ousado?

SECRETÁRIO
302
Amor e lealdade esta ousadia
303
me dão, dá-ma a razão que tem tal força
304
que inda que se não siga não se nega.
305
Lá dentro em ti te vejo estar sentindo
306
em teu ânimo real e generoso
307
quasi ũa reverência a que te move
308
inda que com desgosto, a sã verdade.
309
Não me queres ouvir mas bem me julgas.
310
Move-te o zelo honesto, a fé tam pura.
311
Deixa-te reprender de quem bem t’ama
312
que ou te aproveita ou quer aproveitar-te.
313
Não recebas enganos de quem teme
314
ou deseja ou espera à custa tua,
315
de tua honra e dos teus, que a tantos mata.
316
Louvas tu ou alguém louvará aquele
317
que podendo ilustrar a glória antiga
318
de seus passados com mor honra e fama
319
não somente o não faz mas escurece
320
daquela luz antiga o claro raio?

IFANTE
321
Mas antes não viver merecia esse
322
antes não ser nascido, que a águia vemos
323
os filhos enjeitar que ao sol não olham.

SECRETÁRIO
324
E que dirás, que julgarás daquele
325
que em vez de se armar bem contr’a fortuna
326
causas anda buscando de a ter sempre
327
contrária à sua vida e seu estado?

IFANTE
328
Quem não teme a fortuna e não procura
329
de contr’ela se armar tê-la-á imiga
330
que aos que se lhe mais dão sempre persegue.

SECRETÁRIO
331
Julgaste-te a ti mesmo.

IFANTE
Em quê? Ou como?

SECRETÁRIO
332
Aquele claro sangue, aquele nome
333
heróico, tam alto e em todo o mundo
334
honrado e conhecido dos reis grandes
335
de cujo tronco vens, não fica escuro
336
misturado com outro diferente
337
dos que foram nascidos e criados
338
pera humildes sofrerem teu real jugo
339
obedecendo ao império e aos acenos?
340
Despois disto não vês o grão desprezo
341
em que serás aos teus? O grão perigo
342
em que pões este reino co a soberba
343
de poucos que ergues tanto e tanto podem
344
com teu favor que mostram já desprezo
345
a quem devem mostrar acatamento?
346
Que cousa mais destrue o rei e reino?
347
Que cousa cria mor desprezo e ódio
348
que vê-lo sojeitar-se a cousas baixas?
349
Que vê-lo ser mandado de seus vícios?
350
Com que rosto senhor darás castigo
351
aos que assi cometerem o que cometes?
352
Como conservarás a obediência
353
santa devida aos pais, pois tu a negas
354
aos teus no que te pedem justamente?
355
Memória deixarás de mau exemplo
356
a teus filhos: darás licença larga
357
a reis que isto souberem: ao mundo causa
358
d’escurecer teu nome pera sempre.
359
De um mal vê quantos males nascem logo
360
todos sobre ti caem. Senhor vê-te
361
conhece-te melhor, entra em ti mesmo.
362
Verás então o por que te importunam
363
o que te pede el rei, o que teu povo.

CORO
364
Conselheiro fiel, ousado e forte
365
feriste co a razão a alma que dura
366
os olhos em vão cerra.

IFANTE
367
Eu não sou nem fui nunca qual me julgas
368
ou qual me julgais todos. Outros olhos
369
diferentes dos vossos são os meus
370
com que me vejo, e vejo que o que faço
371
não é tamanho mal como vós vedes.
372
Eu não faço erro algum: sigo o que o sprito
373
me diz e me revela, a quem eu creo.
374
C’os príncipes tem Deos outros segredos
375
que vós não alcançais, e como cegos
376
nos juízos errais de seus mistérios.
377
Olhai esta molher, vede o que há nela.
378
Dum sangue nos formou a natureza:
379
real é, de reis vem, de reis é digna.
380
Do mundo quisera eu ser só monarca
381
monarca de mil mundos pera todos
382
debaixo dos pés pôr de quem tanto amo.
383
Mui baixa me parece esta coroa
384
para aquela cabeça. Olha o que mando
385
tu jamais me não fales em tal cousa
386
meus duros pais não curem de cansar-me
387
porque nem posso nisso obedecer-lhes
388
nem em o não fazer desobedeço.
389
Arranquem-me a vontade deste peito
390
arranquem-me do peito est’alma minha
391
entam acabarão o que começam.
392
Não cuidem que me posso apartar donde
393
estou todo, onde vivo, que primeiro
394
a terra subirá onde os céus andam
395
o mar abrasará os céus e terra
396
o fogo será frio, o sol escuro
397
a lua dará dia e todo mundo
398
andará ao contrário de sua ordem
399
que eu ó Castro te deixe ou nisso cuide.
400
Dei-te alma, dei-te fé, guardá-la-ei firme.
401
Confio isto de ti não mo descubras.

SECRETÁRIO
402
Oh senhor que me matas. Deos quisera
403
que nunca merecera honra tamanha
404
pois me põe em perigo de desonra.
405
Seguir tua vontade é destruir-te
406
destruir este reino e teu pai triste
407
querer-te apartar dela é impossível.

IFANTE
408
Sigue minha razão, minha vontade.

SECRETÁRIO
409
Não te vejo razão, vejo vontade.

IFANTE
410
Sigue a vontade que forçar não podes.

SECRETÁRIO
411
Manda-me o que te devo que a não siga.

IFANTE
412
Queres mandar teu príncipe?

SECRETÁRIO
Mas sirvo.

IFANTE
413
Obedece ao que quero.

SECRETÁRIO
Manda o justo.

IFANTE
414
Deos só me julga.

SECRETÁRIO
E a razão te obriga.

IFANTE
415
Livre há de ser um príncipe.

SECRETÁRIO
Cativo
416
é quem de si se vence.

IFANTE
Inda importunas?

SECRETÁRIO
417
Se te não conselhar meus são teus erros.

IFANTE
418
Eu te livrarei deles.

SECRETÁRIO
A Deos temo.
419
Tu no corpo só podes, ele n’alma.
420
Eu aconselhar-te posso, forçar não.
421
Testemunha me é Deos e tu também.
422
Amor em ti só reina, amor te manda
423
peçonha doce d’alma, d’honra e vida.
424
Mas porque te não movem tantos choros
425
da rainha tua mãe? Os tantos rogos
426
del rei teu pai? Os tam leais conselhos
427
de quantos a teus pés estão lançados
428
pedindo-te piedade deste reino
429
que ameaçado está assi da fortuna?
430
Não te declararás por honra tua
431
e prova pera o mundo que t’infama
432
com nome de pecado pertinaz?
433
Eu choro de assi ver ũa molher fraca
434
mais forte contra ti que quantas forças
435
de Deos, do mundo, estão por ti tirando.

IFANTE
436
Oh persiguição forte, oh ódio estranho.
437
Oh duros fados, todos conjurados
438
c’os céus e com as estrelas a perder-me.
439
Que me quereis? Que sem-razão vos faço
440
homens d’entranhas feras e danadas
441
em ter igual amor a quem mo tem?
442
Quem é tam devido? Quem o mundo
443
todo merece ter, e inda é pequeno?
444
Homens que procurais meu mal e morte
445
vede bem o que eu vejo. Que alto império
446
daquele real rosto não será
447
honrado e acrecentado? Aquele rosto
448
que tanto aborreceis, que mundos pede.
449
Que estados, que grandezas, que triunfos.
450
Em corpo tam fermoso, a fermosa alma
451
tam santa, tam honesta, casta e pura
452
que tacha podeis dar? Ou que virtudes
453
que graças das mais raras e excelentes
454
não achareis em tudo quanto mostra?
455
Pode ser mais cru ódio e mais injusto?
456
Pode ser mor inveja e mais sem causa?

CORO
457
Oh quam perigoso é qualquer princípio
458
de mal, que um só descuido pode tanto
459
que traz um ânimo alto a tal baixeza.

IFANTE
460
Para onde fugirei por que me deixem?

SECRETÁRIO
461
De ti hás de fugir por teu remédio.

IFANTE
462
Não me valerá já ver que não posso?

SECRETÁRIO
463
Tu mesmo te puseste em tal fraqueza.

IFANTE
464
Não quero nem desejo arrepender-me.

SECRETÁRIO
465
Acrecentas o erro co a vontade.

IFANTE
466
S’é erro como dizes, não houve outros?

SECRETÁRIO
467
Houve, mas todavia foram erros.

IFANTE
468
Desculpem-me outros reis e emperadores.

SECRETÁRIO
469
Como o farão pois a si não puderam?

IFANTE
470
Não me persigas mais.

SECRETÁRIO
O mal persigo.

IFANTE
471
Um príncipe de um reino tam cativo
472
há de ser que não faça o que costuma
473
qualquer do povo seu?

SECRETÁRIO
Um príncipe antes
474
há de ter seu sprito tam alçado
475
da terra, que dela erga o pensamento
476
ao baixo povo seu pera que o siga.
477
Sprito há de ser puro, um ouro limpo
478
sem fezes e sem liga, exemplo claro
479
de fortaleza, mansidão e justiça.

IFANTE
480
Vai-te diante mim, fuge minha ira.

SECRETÁRIO
481
Quem governará ũa vontade livre
482
que outro senhor não tem senão a si mesma?

CORO I
483
Quando amor nasceu
484
nasceu ao mundo vida
485
claros raios ao sol, luz às estrelas.
486
O céu resplandeceu
487
e de sua luz vencida
488
a escuridão mostrou as cousas belas.
489
Aquela, que subida
490
está na terceira esfera
491
do bravo mar nascida
492
amor ao mundo dá, doce amor gera.
493
Por amor s’orna a terra
494
d’águas e de verdura
495
às árvores dá folhas, cor às flores.
496
Em doce paz a guerra
497
a dureza em brandura
498
e mil ódios converte em mil amores.
499
Quantas vidas a dura
500
morte desfaz, renova
501
a fermosa pintura
502
do mundo, amor a tem inteira e nova.
503
Ninguém tema seus fogos
504
e chamas furiosas.
505
Amor é tudo, amor suave e brando
506
sojeito a brandos rogos
507
as águas amorosas
508
dos olhos com brandura está alimpando.
509
Douradas e fermosas
510
setas n’aljaba soam
511
à vista perigosas
512
mas amor levam, dos amores voam.
513
Amor em doces cantos
514
em doces liras soe
515
torne seu brando nome est’ar sereno.
516
Fujam mágoas e prantos
517
o ledo prazer voe
518
e claro o rio faça, o vale ameno.
519
No terceiro céu toe
520
d’amor a doce lira
521
e de lá te coroe
522
Castro, d’ouro o grão Deos que amor inspira.

CORO II
523
Antes cego tirano
524
dos poetas fingido
525
cruel desejo e engano
526
Deos de vã gente, de ócio só nascido.
527
Geral estrago e dano
528
da gloriosa fama
529
com sua seta e chama
530
tirando a toda parte
531
ardendo fica Apolo, ardendo Marte.
532
Vai pelos ares voando
533
arde cá toda a terra
534
e d’aljaba soando
535
o tiro empece mais quanto o mais erra.
536
Tem por glória ir juntando
537
estados diferentes
538
os mais convenientes
539
a amor, e iguais aparta.
540
Nunca de sangue e lágrimas se farta.
541
No tenro e casto peito
542
da moça vergonhosa
543
tempo esperando e jeito
544
entra com força branda ou furiosa.
545
O fogo já desfeito
546
da cinza outra vez cria
547
no frio sangue e fria
548
neve outra vez se acende.
549
Dos olhos no meo d’alma o raio prende.
550
Dali sua peçonha
551
vai por todas as veas.
552
A alma dormente sonha
553
em seu engano, e tece doces teas.
554
Foge a casta vergonha
555
foge a constância forte.
556
Entra tristeza e morte
557
debaixo de brandura
558
que a razão mata, o coração endura.
559
Quem a ferrada maça
560
ao grande Alcides toma?
561
E quer que assi aos pés jaça
562
da moça, feito moça, quem leões doma?
563
Quem da espantosa caça
564
os despojos famosos
565
lhe converte em mimosos
566
trajos de dama, e o uso
567
das duras mãos lhe põe no brando fuso?
568
Júpiter transformado
569
em tam várias figuras
570
deixando desprezado
571
o céu, quam baixo o mostram mil pinturas.
572
Poderosas branduras
573
que assi as almas convertem
574
no que amam. Assi sovertem
575
por manha a grande alteza
576
do sprito que s’enterra em vil fraqueza.
577
De que outro fogo ardia
578
dos teucros a alta glória?
579
De que deixou história
580
tam triste ao mundo Espanha a forte e pia?
581
Amor cego vencia.
582
Amor cruel matava.
583
Um moço triunfava
584
de tanto sangue e vidas
585
por um vão apetite mal vendidas.
586
Ditoso, oh quam ditoso
587
quem o seu peito armou
588
contra o raio furioso
589
ou em alçando as chamas o apagou.
590
Poucos que Deos amou
591
dos céus tanto alcançaram.
592
E mil e mil choraram
593
do vão contentamento
594
ao cego Ifante seu rependimento.


Acto II

El rei dom Afonso IV. Pêro Coelho, Diogo Lopes Pacheco, conselheiros.

REI
595
Ó cetro rico, a quem te não conhece
596
como és fermoso e belo. E quem soubesse
597
bem quam diferente és do que prometes
598
neste chão que te achasse, quereria
599
pisar-te antes c’os pés que levantar-te.
600
Não louvo os que se louvam por impérios
601
a ferro, sangue e fogo destruírem,
602
o seu próprio estendendo, mas aqueles
603
(oh grandeza espantosa e ânimo livre)
604
que tendo-os muito grandes os deixaram.
605
Mor alteza e mor ânimo é as grandezas
606
desprezar que aceitar, e mais seguro
607
a si cada um reger que o mundo todo.
608
O resplandor deste ouro nos engana.
609
E é terra em fim, e terra a mais pesada.
610
De ũa alta fortaleza estamos sempre
611
postos por atalaias à fortuna
612
por escudos do povo oferecidos
613
a receber seus golpes, não fazê-lo
614
é usar mal do cetro, e bem fazê-lo
615
é não ter vida mais segura e certa
616
que quanto estes perigos nos prometem.

COELHO
617
Gloriosos perigos e trabalhos
618
oh bem-aventurados pois te sobem
619
da coroa da terra à que nos céus
620
mais rica, mais gloriosa te darão.

PACHECO
621
Trabalho mais que estado tem os reis
622
os bons reis que não amam assi seus vícios
623
como as obrigações de se mostrarem
624
contra si mais isentos e mais fortes
625
que o povo baixo que anda só após eles.
626
E tal rei como tu senhor, é rei.
627
Não te pese de o ser, que virá tempo
628
que te hajam mais inveja a esses trabalhos
629
sofridos com paciência e bem regidos
630
que a vitórias famosas com grã perda
631
de homens e de riquezas mal ganhadas.
632
Isto faz os reis grandes dignos sempre
633
de memória ĩmortal, sofrer trabalhos
634
polo público bem, quebrar a força
635
do sangue e próprio amor, fazer-se exemplo
636
de todo bem ao povo, atalhar prestes
637
o mal em seu começo, antes que empeça.
638
Despois nem forças bastam nem conselho.
639
Atalhando a este mal que t’assi agora
640
tam trabalhado traz, ficarás livre
641
rindo-te da fortuna e de seus medos.

REI
642
Vence o mal ao remédio. Vejo o Ifante
643
de todo contra mim determinado,
644
duro a meus rogos, mais duro aos mandados.
645
Que estrela foi aquela tam escura?
646
Que mau signo ou que fado ou que planeta?

PACHECO
647
Enquanto há ocasião dura o pecado
648
tirando-lha, ei-lo livre.

REI
Forte cousa
649
endurecer-se assi aquela vontade.

PACHECO
650
Endureça-se a tua com justiça.

REI
651
Duro remédio. Quanto melhor fora
652
amor e obediência. Meus pecados
653
quam gravemente sobre mim caíram.

COELHO
654
Senhor pera que é mais? Moura esta dama.

REI
655
Que moura todavia?

PACHECO
Senhor moura
656
por salvação do povo.

REI
Não é crueza
657
matar quem não tem culpa?

COELHO
Muitos podes
658
mandar matar sem culpa mas com causa.

REI
659
Com que cor, com que causa esta matamos?

PACHECO
660
Não basta que em sua morte só se atalham
661
os males que sua vida nos promete?

REI
662
Ela que culpa tem?

PACHECO
Dá ocasião.

REI
663
Oh que ela não a dá, o Ifante a toma
664
que lei há que a condene, ou que justiça?

COELHO
665
O bem comum senhor tem tais larguezas
666
com que justifica obras duvidosas.

REI
667
Assi que assentais nisto?

COELHO
Nisto, moura.

PACHECO
668
Moura.

REI
Ũa ĩnocente?

COELHO
Que nos mata.

REI
669
Não haverá outro meo?

PACHECO
Não o temos.

REI
670
Metê-la-ei num mosteiro.

COELHO
Ei-lo queimado.

REI
671
Mandá-la-ei deste reino.

COELHO
O amor voa.
672
Este fogo senhor não morre logo.
673
Quanto lhe mais resistes mais s’acende.
674
Contra amor que lugar darás seguro?

REI
675
Matá-la é cruel meo e rigoroso.

PACHECO
676
Não vês, não ouves quantas vezes morrem
677
muitos que o não merecem? Deos o quer
678
polo bem que se segue.

REI
Deos o faça.
679
Cuja vontade é lei e a minha não.

PACHECO
680
Essa licença tem também os reis
681
que em seu lugar estão.

REI
Antes não tem
682
licença pera mais que quanto pede
683
a razão e justiça. A mais licença
684
é bárbara crueza de infiéis.

PACHECO
685
Pois que dirás daqueles que a seus próprios
686
filhos e a seu amor não perdoaram
687
polo exemplo comum e bem do povo?

REI
688
Aos que o bem fizeram hei inveja.
689
Òs outros nem os louvo nem os sigo.

COELHO
690
Inda que houvesse excessos, todavia
691
mais males atalharam do que deram.

REI
692
Não se há de fazer mal por quantos bens
693
se possam daí seguir.

COELHO
Nem bem nenhum
694
de que se sigam males.

REI
Mal parece
695
matar ũa ĩnocente.

PACHECO
Não é mal
696
que a causa o justifica.

REI
Antes Deos quer
697
que se perdoe um mau que um bom padeça.

COELHO
698
O bem geral quer Deos que mais s’estime
699
que o bem particular. Nas circunstâncias
700
se salvam ou se perdem as obras todas.

REI
701
Enganam-se os juízos muitas vezes.

COELHO
702
Os dos reis bem fundados Deos inspira.

REI
703
Hei medo de deixar nome de injusto.

COELHO
704
De justo o deixarás pois te conselhas
705
c’os juízos dos teus leais prudentes.

PACHECO
706
Vês poderoso rei, vês c’os teus olhos
707
a peçonha cruel que vai lavrando
708
gerada deste amor cego, vês quanto
709
a soberba e desprezo destes homens
710
contra ti e contra todos vai crescendo.
711
S’em tua vida nos tememos tanto
712
que faremos despois de tua morte?
713
Por dar saúde ao corpo qualquer membro
714
que apodrece se corta, e pelo são
715
por que o são não corrompa. Este teu corpo
716
de que tu és cabeça está em perigo
717
por esta molher só, corta-lh’a vida,
718
atalha esta peçonha, tê-lo-ás salvo.
719
Médico senhor és desta república.
720
O poder que tem o médico num corpo
721
tens tu sobre nós todos, usa dele.
722
Se te parece em parte isto crueza
723
não é crueza aquela mas justiça,
724
quando de cruel ânimo não nasce.
725
Tua tenção não peca, em si se salva.
726
A aspereza dest’obra é medicina
727
com que s’atalham as mortes que adiante
728
muitos é que por força te mereçam.
729
A clemência por certo é grã virtude
730
e digna mais dos reis que outras virtudes
731
polo perigo grande que há na ira
732
em quem tam livremente assi a executa,
733
mas com esta o rigor é necessário
734
por não vir em desprezo tal virtude.
735
Este é o que se chamou severidade
736
de que tantos exemplos nos deixaram
737
os famosos romãos em paz e guerra.
738
Estas colũnas ambas são tam fortes
739
que bem-aventurado este teu reino
740
que nelas por ti só está tam fundado.
741
De tal modo senhor hás de usar delas
742
que ũa vá sempre doutra acompanhada.
743
Exemplos tens mostrado de clemência
744
mostra agora, que é bem, severidade.

REI
745
A parte que me cabe deste feito
746
eu a ponha em vós toda, como aqueles
747
que sem ódio e temor sois obrigados
748
aquilo conselhar-me que é só justo
749
mais serviço de Deos e bem do povo.
750
Vós outros sois meus olhos que eu não vejo.
751
Vós sois minhas orelhas que eu não ouço.
752
Minha tenção me leve, ela me salve.
753
O engano se é vosso em vós só caia.

PACHECO
754
Sobre nós descarrega esse teu peso.

COELHO
755
Eu tomo minha parte, ou tomo todo.
756
Almas e honras temos, estas ambas
757
a ti senhor se devem a ti as damos.
758
Estas sós te conselham, que bem vês
759
quam grande mal é nosso o que fazemos.
760
Aventuramos vidas e fazendas
761
que em ódio de teu filho ficam sempre
762
sob cujos pés ficamos e em cuja ira.
763
Mas percamo-nos nós, percamos vidas
764
soframos cruéis mortes, nossos filhos
765
fiquem órfãos de nós e deserdados
766
a fúria de teu filho nos persiga
767
antes que esse tal medo em nós mais possa
768
que o que a virtude manda e te devemos.

REI
769
I-vos aparelhar que em vós me salvo.
770
Senhor que estás nos céus e vês as almas
771
que cuidam, que propõem, que determinam
772
alumia minh’alma, não se cegue
773
no perigo em que está, não sei que siga.
774
Entre medo e conselho fico agora
775
Matar injustamente é grã crueza.
776
Socorrer a mal público é piedade.
777
D’ũa parte receo mas doutra ouso.
778
Ó filho meu que queres destruir-me.
779
Há dó desta velhice tam cansada,
780
muda essa pertinácia em bom conselho.
781
Não dês ocasião pera que eu fique
782
julgado mal na terra e condenado
783
ant’aquele grão juiz que está nos céus.
784
Oh vida felicíssima a que vive
785
o pobre lavrador só no seu campo
786
seguro da fortuna e descansado
787
livre destes desastres que cá reinam.
788
Ninguém menos é rei que quem tem reino.
789
Ah que não é isto estado, é cativeiro
790
de muitos desejado mas mal crido.
791
ũa servidão pomposa, um grão trabalho
792
escondido sob nome de descanso.
793
Aquele é rei somente que assi vive
794
(inda que cá seu nome nunca s’ouça)
795
que de medo e desejo e d’esperança
796
livre passa seus dias. Oh bons dias
797
com que eu todos meus anos tam cansados
798
trocara alegremente. Temo os homens
799
com outros dissimulo, outros não posso
800
castigar ou não ouso. Um rei não ousa.
801
Também teme seu povo, também sofre.
802
Também suspira e geme e dissimula.
803
Não sou rei sou cativo, e tam cativo
804
como quem nunca tem vontade livre.
805
Salvo-me no conselho dos que creo
806
que me serão leais, isto me salve
807
senhor contigo, ou tu me mostra cedo
808
remédio mais seguro com que viva
809
conforme a este alto estado que me deste.
810
E me livra algum tempo antes que moura
811
de tanta obrigação, pera que possa
812
conhecer-me melhor e a ti voar
813
com mais ligeiras asas do que pode
814
ũa alma carregada de tal peso.

CORO I
815
Quanto mais livre, quanto mais seguro
816
é aquele estado que de si contente
817
não se levanta mais que quanto pode
818
fugir misérias.
819
Tristes pobrezas ninguém as deseje.
820
Cegas riquezas ninguém as procure.
821
Num meo honesto está a felicidade
822
dos céus e terra.
823
Reis poderosos, príncipes, monarcas
824
sobre nós pondes vossos pés, pisai-nos.
825
Mas sobre vós está sempre a fortuna.
826
Nos livres dela.
827
Nos altos muros soam mais os ventos.
828
As mais crescidas árvores derribam.
829
As mais inchadas velas no mar rompem
830
caem mores torres.
831
Pompas e ventos, títulos inchados
832
não dão descanso nem mais doce sono.
833
Antes mais cansam, antes em mais medo
834
põem e perigo.
835
Como se volvem no grão mar as ondas
836
assi se volvem estes peitos cheos
837
e nunca fartos, nunca satisfeitos
838
nunca seguros.
839
S’eu me pudesse à minha vontade
840
formar meus fados, mais não quereria
841
que meãmente segurar a vida
842
c’o necessário.
843
Quem mais deseja muitas vezes s’acha
844
triste, enganado, poucas vezes dorme
845
temendo o fogo, ventos, ares, sombras
846
temendo os homens.
847
Rei poderoso, tu porque desejas
848
nunca ter reino? Porque essa coroa
849
chamas pesada? Polo peso d’alma
850
que te carrega.

CORO II
851
Quam poucas vezes vimos
852
tardar a grã justiça
853
que não decesse sobre
854
aqueles livres filhos
855
que contra a natural
856
obrigação e lei
857
negaram obediência
858
àqueles que os geraram.
859
Pecado torpe e feo
860
ante Deos, ant‘os homens.
861
Mais pera hircanos tigres
862
mais pera leões bravos
863
que razão não conhecem
864
que pera quem só dela
865
e par’ela é formado.
866
Aquele amor tam grande
867
dos pais com que te criam
868
c’o sangue do seu peito
869
que fereza há tamanha
870
que tal brutalidade
871
que contr’ele te mova?
872
Rei dom Afonso, rei
873
lembra-te de ti mesmo.
874
Aqueles erros feos
875
com que tu perseguiste
876
teu pai tam cruamente
877
lhe dão de ti vingança.
878
Por outro tu teu filho
879
que te desobedece.
880
Viram-se as reais quinas,
881
polo mesmo Deos dadas
882
àquele rei primeiro
883
de que herdaste esse nome
884
com esse cetro rico
885
levantadas por ti
886
não contra cinco reis
887
com cujo sangue as houve
888
mas contra el rei teu pai
889
mas contra teus vassalos.
890
Viram-se as reais quinas
891
cruéis contra si mesmas
892
em bravo fogo acesas
893
contr’ũa parte e outra
894
de que tam cruelmente
895
corria um mesmo sangue.
896
Quantas vezes a santa
897
rainha tua mãe
898
se meteu nesse fogo
899
por te salvar a vida?
900
Por ela era apagado.
901
Por ti tornava arder.
902
Agora ardes nestoutro
903
justiça de Deos grande.


Acto Terceiro

Castro. Ama.

CASTRO
904
Nunca mais tarde pera mim que agora
905
amanheceu. Ó sol claro e fermoso
906
como alegras os olhos que esta noite
907
cuidaram não te ver. Ó noite triste.
908
Ó noite escura quam comprida foste.
909
Como cansaste est’alma em sombras vãs.
910
Em medos me trouxeste tais que cria
911
que ali se me acabava o meu amor
912
ali a saudade da minh’alma
913
que me ficava cá, e vós meus filhos
914
meus filhos tam fermosos, em que eu vejo
915
aquele rosto e olhos do pai vosso,
916
de mim ficáveis cá desemparados.
917
Oh sonho triste que assi me assombraste.
918
Tremo ind‘agora, tremo. Deos afaste
919
de nós tam triste agouro. Deos o mude
920
em mais ditoso fado, em melhor dia.
921
Crescereis vós primeiro filhos meus
922
que chorais de me ver estar-vos chorando.
923
Meus filhos tam pequenos, ai meus filhos
924
quem em vida vos ama e teme tanto
925
na morte que fará? Mas vivireis
926
crescereis vós primeiro, que veja eu
927
que pisais este campo em que nascestes
928
em fermosos ginetes arraiados
929
quais vosso pai vos guarda, com que o rio
930
passeis a nado a ver esta mãe vossa
931
com que canseis as feras e os imigos
932
vos temam de tam longe que não ousem
933
nomear-vos somente. Entam me venham
934
buscar meus fados, venha aquele dia
935
que me está esperando, em vossos olhos
936
ficarei eu meus filhos, vossa vida
937
tomarei eu por vida em minha morte.

AMA
938
Que choros e que gritos senhora eram
939
os que t’ouvi esta noite?

CASTRO
Ó Ama minha
940
vi a morte esta noite, crua e fera.

AMA
941
Entre sonhos t’ouvi chorar tam alto
942
que de medo e d’espanto fiquei fria.

CASTRO
943
Ind’agora minh’alma s’entristece
944
assombrada dos medos em que estive.
945
Cansada de cuidar na saudade
946
que sempre leva e deixa aqui o Ifante
947
adormeci tam triste que a tristeza
948
me fez tomar o sono mais pesado
949
do que nunca me lembra que tivesse.
950
Então sonhei que estando eu só num bosque
951
escuro e triste, de ũa sombra negra
952
coberto todo, ouvia ao longe uns brados
953
de feras espantosas cujo medo
954
m’arrepiava toda e meimpidia
955
a língua e os pés, eu co alma quasi morta
956
sem me mover, meus filhos abraçava.
957
Nisto um bravo leão a mim se vinha
958
co a catadura fera e logo manso
959
para trás se tornava, mas em s’indo
960
não sei donde saíam uns bravos lobos
961
que remetendo a mim com suas unhas
962
os peitos me rasgavam. Então alçava
963
vozes aos céus, chamava meu senhor
964
ouvia-me e tardava, e eu morria
965
com tanta saudade que ind'agora
966
parece que a cá tenho, e est’alma triste
967
se m’arrancava tam forçadamente
968
como quem antetempo assi deixava
969
seu lugar, e deixava pera sempre
970
(que este na minha morte era o mor mal)
971
a doce vista de quem me ama tanto.

AMA
972
Ai, e como estaria essa tu’alma
973
tam morta. Deos te guarde. Mas às vezes
974
o pensamento triste traz visões
975
escuras e medonhas. Do cuidado
976
com que senhora andaste e adormeceste
977
se te representaram esses medos.

CASTRO
978
Choro daquela dor, daquela mágoa
979
que ao meu Ifante dera a minha morte.

AMA
980
Pera que choras sonhos?

CASTRO
Não sei que hei
981
não sei que peso é este que cá tenho
982
assi no coração que me carrega.
983
Soía ser que quando só ficava
984
como agora me vejo, em meu senhor
985
eram todos meus sonhos tam alegres
986
que desejava a noite pera nela
987
me lograr dos enganos que com ele
988
se me representavam. Ali o via
989
ali cria que o tinha e que falava
990
comigo e eu com ele e muitas vezes
991
muitas palavras que ele em se partindo
992
me dizia chorando, ali chorando
993
mas tornava a dizer. E eu o detinha
994
apertado em meus braços, senão quando
995
acordava abraçada só comigo.
996
Aqueles meus enganos me sostinham
997
das noites pera os dias. E esta noite
998
perdia estes enganos com a vida.

AMA
999
Outro dia verás que te amanheça
1000
mais claro e mais ditoso, em que a coroa
1001
que t’espera terás sobr’esses teus
1002
cabelos d’ouro. Alegra-te entretanto.
1003
Deixa vãs sombras, deixa tristes medos.

CASTRO
1004
Não sei que est’alma vê que tanto teme.

AMA
1005
A imaginação é perigosa.

CASTRO
1006
Que fará quem não pode fugir dela?

AMA
1007
Cuidar no bem, lança a tristeza fora.

CASTRO
1008
Faze-me o bem seguro, que eu não vejo.

AMA
1009
Por que temes o mal de que estás livre?

CASTRO
1010
Porque temo perder o bem que espero.

AMA
1011
Temer de longe o mal é mal dobrado.

CASTRO
1012
Como estará alma leda em culpa sua?
1013
Julgam-me mal os homens e a Deos temo.

AMA
1014
Dos secretos senhora que parecem
1015
ao mundo (que os não vê, e do de fora
1016
julga somente) feos, maus e torpes,
1017
basta a só consciência, basta tanto
1018
que com esta há de ter Deos toda a conta.
1019
Esta senhora é boa prova d’alma.
1020
Pois esta está segura no teu peito.
1021
Se pecado houve já, já está purgado
1022
com esse ânimo firme com que já ambos
1023
estais confederados santamente.
1024
O tempo Deos trará com mor seguro
1025
do que vos este dá, pera mais claro
1026
o mundo conhecer quam grão perigo
1027
é as almas julgar que só Deos vê.
1028
Entretanto contente espera e vive.
1029
Vive pera que viva quem tanto ama
1030
esta tua vida em que toda está a sua.

CASTRO
1031
Nunca o tanto meus olhos desejaram.
1032
Nunca meu pensamento o imaginou
1033
de mim tam esquecido. Deos o guarde.
1034
Deos te guarde senhor, que me parece
1035
que algum mal te detém, algum mal grande.
1036
Arranca-se a minh’alma de mim mesma
1037
parece que voar quer onde estás.
1038
Parece que lhe foges, que me deixas.
1039
Ah pensamentos tristes, pensamentos
1040
escuros, carregados, i-vos, i-vos.

AMA
1041
Ah não te agoures mal que melhor fado
1042
o teu será senhora, quem tristeza
1043
de sua vontade chama mal a pode
1044
lançar de si, que às vezes n’alegria
1045
entra tam furiosa que a destrue?
1046
Olha pera estes teus doces penhores
1047
tam seguros e certos desse amor
1048
de que foram gerados, em seus olhos
1049
alegra ora esses teus que assi desfazes
1050
com essas cruéis lágrimas. Não chores
1051
danas esse teu rosto tam fermoso
1052
filha, com tantas lágrimas, não chores
1053
não ofendas teus olhos, ah não vejam
1054
neles sinais tamanhos de tristeza
1055
aqueles cuja glória é ver-te alegre.
1056
Olha as águas do rio como correm
1057
pera onde está tam saudosamente.
1058
De lá te vê senhora, elas lhe lembram
1059
este aposento seu ou da su’alma.
1060
Estes campos fermosos que parecem
1061
debaixo deste céu dourado e belo
1062
quem os verá que logo não se alegre?
1063
Ouve a música doce com que sempre
1064
te vem a receber os passarinhos
1065
por cima destas árvores fermosas.
1066
Cuida senhora de lograres isto.
1067
Em algum tempo com dobrado gosto
1068
segura da fortuna e de seus medos
1069
senhora do teu bem e desta terra.

Coro. Castro. Ama.

CORO
1070
Tristes novas, cruéis
1071
novas mortais te trago dona Inês.
1072
Ah coitada de ti, ah triste, triste.
1073
Que não mereces tu a cruel morte
1074
que assi te vem buscar.

AMA
Que dizes? Fala.

CORO
1075
Não posso. Choro.

CASTRO
De que choras?

CORO
Vejo
1076
esse rosto, esses olhos, essa.

CASTRO
Triste
1077
de mim triste. Que mal? Que mal tamanho
1078
é esse que me trazes?

CORO
É tua morte.

CASTRO
1079
É morto o meu senhor? O meu Ifante?

CORO
1080
Ambos morrereis cedo.

CASTRO
Oh novas tristes.
1081
Matam-me o meu amor? Por que mo matam?

CORO
1082
Porque te matarão, por ti só vive.
1083
Por ti morrerá logo.

AMA
Deos não queira
1084
tal mal, tal desventura.

CORO
Vem mui perto.
1085
nam te tardará muito, põe-te em salvo.
1086
Fuge coitada, fuge que já soam
1087
as duras ferraduras, que te trazem
1088
correndo a morte triste. Gente armada
1089
correndo vem senhora em busca tua.
1090
El rei te vem buscar determinado
1091
d’em ti vingar sua fúria. Vê se podes
1092
salvar também teus filhos, não lh’empeça
1093
parte de teus maus fados.

CASTRO
Oh coitada
1094
só, triste, perseguida, ai meu senhor
1095
onde estás que não vens? El rei me busca?

CORO
1096
El rei.

CASTRO
Por que me mata?

CORO
Rei cruel.
1097
Cruéis os que o moveram a tal crueza.
1098
Por ti vem perguntando. Esses teus peitos
1099
vem só buscar pera com duro ferro
1100
serem furiosamente traspassados.

AMA
1101
Cumpriram-se teus sonhos.

CASTRO
Sonhos tristes.
1102
Sonhos cruéis. Por que tam verdadeiros
1103
me quisestes sair? Ó sprito meu.
1104
Como não creste mais o mal tamanho
1105
que crias e sabias? Ama fuge.
1106
Fuge desta ira grande que nos busca.
1107
Eu fico, fico só, mas ĩnocente.
1108
Não quero mais ajudas, venha a morte
1109
moura eu, mas ĩnocente. Vós meus filhos
1110
vivireis cá por mim, meus tam pequenos
1111
que cruelmente vem tirar de mim.
1112
Socorra-me só Deos e socorrei-me
1113
vós moças de Coimbra. Homens que vedes
1114
esta ĩnocência minha, socorrei-me.
1115
Meus filhos não choreis, eu por vós choro.
1116
Lograi-vos desta mãe, desta mãe triste
1117
enquanto a tendes viva. E vós amigas
1118
cercai-me em roda todas, e podendo
1119
defendei-me da morte que me busca.

CORO I
1120
Teme teus erros mocidade cega.
1121
Fuge a ti mesma, logra-te do tempo
1122
que assi te deixa correndo e voando
1123
com suas asas.
1124
Oh quanto ũa hora, quanto um só momento
1125
breve algũ‘hora quererás debalde.
1126
Poupa o presente, guarda-o, entesoura-o
1127
tê-lo-ás seguro.
1128
Todo ouro e prata, pedras preciosas
1129
a que correndo vão todos perdidos
1130
por água e fogo, não temendo a morte
1131
cavar nas veas
1132
nunca puderam, nunca poderão
1133
comprar um ponto deste tempo livre
1134
que assi atrás deixa príncipes, senhores
1135
como os mais baixos.
1136
Iguala a todos, igualmente foge.
1137
Não valem forças, não val gentileza.
1138
Por tudo passa, tudo calca e pisa.
1139
Ninguém o força.
1140
Com sua fouce, cruel vai cortando
1141
vidas a moços, trabalhos a velhos.
1142
Só boa fama, só virtude casta
1143
pode mais que ele.
1144
Esta se salva somente em si mesma.
1145
Esta o sprito segue, sempre vive.
1146
Esta seguindo vencerás o tempo
1147
rir-te-ás da morte.
1148
Vive, pois, vive mocidade cega
1149
vive co tempo, dele te enriquece.
1150
Dele só t’arma contr’aquele dia
1151
do grande aperto.

CORO II
1152
Após amor vem morte
1153
ou da vida ou da honra
1154
e d’alma juntamente
1155
que em noite escura põe
1156
sem ver, o claro dia
1157
da razão que lhe diz
1158
os males e perigos
1159
em que este amor acaba.
1160
Ó príncipe tam cego.
1161
Ó príncipe tam duro.
1162
Que cerraste os teus olhos
1163
àqueles bons conselhos
1164
que cerraste as orelhas
1165
àqueles bons avisos
1166
tu dormes ou passeas
1167
e pelos campos vem
1168
do Mondego correndo
1169
a cruel morte em busca
1170
da tua doce vida
1171
do teu amor tam doce.
1172
Cruel morte que vens
1173
buscar esta ĩnocente
1174
há piadade e mágoa
1175
dos seus fermosos olhos
1176
do seu fermoso rosto
1177
não desates um nó
1178
tam firme com que dous
1179
corações ajuntou
1180
amor tam estreitamente.
1181
Crueza farás grande
1182
partir uns olhos doutros
1183
ũa alma assi doutr’alma
1184
e derramar o sangue
1185
o sangue tam fermoso
1186
do seu fermoso corpo.
1187
Doam-te aqueles peitos
1188
de marfim ou de neve
1189
doam-te aquelas faces
1190
de lírios e de rosas
1191
que já perdem sua cor
1192
pola falta do sangue
1193
que no coração junto
1194
lhe tens frio e coalhado
1195
com medo do teu nome.
1196
Aquela alva garganta
1197
de cristal ou de prata
1198
que sostém a cabeça
1199
tam alva e tam dourada
1200
por que cortar a queres
1201
com golpe tam cruel?
1202
E derramar nos ares
1203
aquele sprito digno
1204
do corpo em que vivia
1205
há piedade e mágoa
1206
de tanta fermosura
1207
daquele triste Ifante
1208
e destes seus penhores.
1209
Detém-te enquanto chega
1210
detém-te enquanto tarda.
1211
Corre ó Ifante corre
1212
socorre ao teu amor.
1213
Ai tardas, saberás
1214
como o amor sempre acaba.


Acto Quarto

Pacheco. El Rei. Coro. Castro. Coelho.

PACHECO
1215
A presteza em tal caso é bom seguro.
1216
E piedade senhor será crueza.
1217
Cerra os olhos a lágrimas e mágoas
1218
que te podem mover dessa constância.

REI
1219
Esta é que a mim se vem. Oh rosto digno
1220
de mais ditosos fados.

CORO
Eis a morte
1221
vem. Vai-te entregar a ela, vai depressa
1222
terás que chorar menos.

CASTRO
Vou amigas
1223
acompanhai-me vós amigas minhas
1224
ajudai-me a pedir misericórdia.
1225
Chorai o desemparo destes filhos
1226
tam tenros e ĩnocentes. Filhos tristes
1227
vedes aqui o pai de vosso pai.
1228
Eis aqui vosso avô nosso senhor
1229
beijai-lhe a mão, pedi-lhe piedade
1230
de vós, desta mãe vossa cuja vida
1231
vos vem, filhos, roubar.

CORO
Quem pode ver-te
1232
que não chore e s’abrande?

CASTRO
Meu senhor
1233
esta é a mãe de teus netos. Estes são
1234
filhos daquele filho que tanto amas.
1235
Esta é aquela coitada molher fraca
1236
contra quem vens armado de crueza.
1237
Aqui me tens, bastava teu mandado
1238
pera eu segura e livre t’esperar
1239
em ti e em minh’ĩnocência confiada.
1240
Escusaras senhor todo este estrondo
1241
d’armas e cavaleiros, que não foge
1242
nem se teme a ĩnocência da justiça.
1243
E quando meus pecados me acusaram
1244
a ti fora buscar, a ti tomara
1245
por vida em minha morte, agora vejo
1246
que tu me vens buscar. Beijo estas mãos
1247
reais tam piadosas, pois quiseste
1248
por ti vir-te informar de minhas culpas.
1249
Conhece-mas senhor, como bom rei
1250
como clemente e justo e como pai
1251
de teus vassalos todos a quem nunca
1252
negaste piedade com justiça.
1253
Que vês em mim senhor? Que vês em quem
1254
em tuas mãos se mete tam segura?
1255
Que fúria, que ira esta é com que me buscas?
1256
Mais contra imigos vens que cruelmente
1257
t’andassem tuas terras destruindo
1258
a ferro e fogo. Eu tremo senhor, tremo
1259
de me ver ante ti como me vejo
1260
molher, moça, ĩnocente, serva tua
1261
tam só, sem por mim ter quem me defenda.
1262
Que a língua não s’atreve, o sprito treme
1263
ante tua presença, porém possam
1264
estes moços, teus netos defender-me.
1265
Eles falem por mim, eles sós ouve
1266
mas não te falarão senhor com língua
1267
que inda não podem, falam-te co as almas
1268
com suas idades tenras, com seu sangue
1269
que é teu te falarão, seu desemparo
1270
t’está pedindo vida, não lha negues.
1271
Teus netos são que nunca té qui viste
1272
e vê-los em tal tempo que lhes tolhes
1273
a glória e o prazer qu’em seus spritos
1274
lhe está Deos revelando de te verem.

REI
1275
Tristes foram teus fados, dona Inês
1276
triste ventura a tua.

CASTRO
Antes ditosa
1277
senhor, pois que me vejo ante teus olhos
1278
em tempo tam estreito, põe-nos ora,
1279
como nos outros sois, nesta coitada.
1280
Enche-os de piedade com justiça.
1281
Vens-me senhor matar? Por que me matas?

REI
1282
Teus pecados te matam, cuida neles.

CASTRO
1283
Pecados meus. Ao menos contra ti
1284
nenhum, meu rei, me acusa. Contra Deos
1285
me podem acusar muitos, mas ele ouve
1286
as vozes d’alma triste, em que lhe pede
1287
piedade ò Deos justo, Deos benigno
1288
que não mata, podendo com justiça
1289
mas dá tempo de vida e espera tempo
1290
só pera perdoar, assi o fazes,
1291
assi o fizeste sempre, pois não mudes
1292
agora contra mim teu bom costume.

REI
1293
Tua morte m’estão outras muitas vidas
1294
pedindo com clamores.

PACHECO
Foge o tempo.

CASTRO
1295
Oh triste, triste. Meu senhor não me ouves?
1296
Sossega tua fúria, não a sigas.
1297
Nunca conselhou bem, nunca deu tempo
1298
de remédio a algum mal a ira. Sempre
1299
traz arrependimento sem remédio.
1300
Ouve minha razão, minh’ĩnocência.
1301
Culpa é senhor guardar amor constante
1302
a quem mo tem? Se por amor me matas
1303
que farás ao imigo? Amei teu filho
1304
não o matei. Amor amor merece
1305
estas são minhas culpas, estas queres
1306
com morte castigar? Em que a mereço?

PACHECO
1307
Dona Inês, contra ti é a sentença dada.
1308
Despide essa tu’alma desse corpo
1309
em bom estado. E seja prestesmente
1310
não tenhas que chorar mais que só a morte.

CASTRO
1311
Ó meus amigos, porque não tirais
1312
el rei de ira tamanha? A vós me vou
1313
em vós busco socorro, ajudai-me ora
1314
pedir-lhe piedade. Ó cavaleiros
1315
que as tristes prometestes defender
1316
defendei-me que mouro injustamente.
1317
Se me vós não defendeis vós me matais.

COELHO
1318
Por mágoa dessas lágrimas te rogo
1319
que este tempo que tens, inda que estreito
1320
tomes pera remédio da tu’alma.
1321
O que el rei em ti faz, faz com justiça.
1322
Nós o trazemos cá, não com tenção
1323
de sermos em ti crus, mas de salvarmos
1324
este reino que pede esta tua morte.
1325
Que nunca o Deos quisera que tal meo
1326
nos fora necessário. A el rei perdoa
1327
que crueza não faz, se a nós fazemos
1328
por ti ante o grão Deos será pedida
1329
vingança justa, se te não parece
1330
que perdão merecemos nas tenções
1331
com que el rei conselhamos. Oh ditosa
1332
dona Inês, tua morte. pois só nela
1333
se ganha ũa geral vida a todo reino.
1334
Bem vês por tua causa como estava
1335
além desse pecado em que te tinha
1336
o Ifante forçada (que assi o cremos)
1337
mas pois para remédio é necessário
1338
a morte sua ou tua, é necessário
1339
que tu sofras a tua com paciência.
1340
Que isso te ficará por maior glória
1341
que aquela que esperavas cá do mundo.
1342
E quanto mais injusta te parece
1343
tanto mais justa glória lá terás
1344
onde tudo se paga por medida.
1345
Nós, que a teu parecer mal te matamos
1346
não viviremos muito, lá nos tens
1347
antes de muito tempo ant‘esse trono
1348
do grão juiz, onde daremos conta
1349
do mal que te fazemos. Não ouviste
1350
já das romãs e gregas com que esforço
1351
morreram muitas só por glória sua?
1352
Morre pois Castro, morre de vontade
1353
pois não pode deixar de ser tua morte.

CASTRO
1354
Triste prática, triste. Cru conselho
1355
me dás, quem o ouvira? Mas pois já mouro
1356
ouve-me rei senhor, ouve primeiro
1357
a derradeira voz dest’alma triste.
1358
Co estes teus pés me abraço, que não fujo.
1359
Aqui me tens segura.

REI
Que me queres?

CASTRO
1360
Que te posso querer que tu não vejas?
1361
Pergunta-te a ti mesmo o que me fazes
1362
a causa que te move a tal rigor.
1363
Dou tua consciência em minha prova.
1364
S’os olhos de teu filho s’enganaram
1365
com o que viram em mim, que culpa tenho?
1366
Paguei-lhe aquele amor com outro amor
1367
fraqueza costumada em todo estado.
1368
Se contra Deos pequei contra ti não.
1369
Não soube defender-me, dei-me toda.
1370
Não a imigos teus, não a traidores
1371
a que alguns teus segredos descobrisse
1372
confiados a mim, mas a teu filho
1373
príncipe deste reino. Vê que forças
1374
podia eu ter contra tamanhas forças.
1375
Não cuidava senhor que t’ofendia
1376
defenderas-mo tu e obedecera.
1377
Inda que o grand’amor nunca se força.
1378
Igualmente foi sempre entre nós ambos
1379
igualmente trocámos nossas almas.
1380
Esta que te ora fala é de teu filho.
1381
Em mim matas a ele, ele pede
1382
vida par’estes filhos concebidos
1383
em tanto amor. Não vês como parecem
1384
aquele filho teu? Senhor meu, matas
1385
todos a mim matando, todos morrem.
1386
Não sinto já nem choro minha morte
1387
inda que injustamente assi me busca
1388
inda que estes meus dias assi corta
1389
na sua flor indigna de tal golpe
1390
mas sinto aquela morte triste e dura
1391
pera ti e pera o reino, que tam certa
1392
vejo naquele amor que esta me causa.
1393
Não vivirá teu filho, dá-lhe vida
1394
senhor dando-ma a mim, que eu me irei logo
1395
onde nunca apareça, mas levando
1396
estes penhores seus que não conhecem
1397
outros mimos e tetas senão estas
1398
que cortar-lh’ora queres. Ai meus filhos
1399
chorai, pedi justiça aos altos céus.
1400
Pedi misericórdia a vosso avô
1401
contra vós tam cruel meus ĩnocentes.
1402
Ficareis cá sem mim, sem vosso pai
1403
que não poderá ver-vos sem me ver.
1404
Abraçai-me meus filhos, abraçai-me.
1405
Despedi-vos dos peitos que mamastes.
1406
Estes sós foram sempre, já vos deixam.
1407
Ah já vos desempara esta mãe vossa.
1408
Que achará vosso pai quando vier?
1409
Achar-vos-á tam sós, sem vossa mãe
1410
não verá quem buscava, verá cheas
1411
as casas e paredes de meu sangue.
1412
Ah, vejo-te morrer senhor por mim.
1413
Meu senhor já que eu mouro vive tu.
1414
Isto te peço e rogo: vive, vive.
1415
Empara estes teus filhos que tant’amas.
1416
E pague minha morte seus desastres
1417
se alguns os esperavam. Rei senhor
1418
pois podes socorrer a tantos males
1419
socorre-me, perdoa-me. Não posso
1420
falar mais. Não me mates, não me mates.
1421
Senhor não to mereço.

REI
Oh molher forte.
1422
Venceste-me, abrandaste-me. Eu te deixo.
1423
Vive enquanto Deos quer.

CORO
Rei piadoso
1424
vive tu pois perdoas, moura aquele
1425
que sua dura tenção leva adiante.

Pacheco. Rei. Coelho.

PACHECO
1426
Oh senhor que nos matas. Que fraqueza
1427
essa é indigna de ti? De um real peito?
1428
Vence-te ũa molher, e estranhas tanto
1429
vencer assi teu filho? Que já agora
1430
terá desculpa honesta. Não te esqueças
1431
da tenção tam fundada que te trouxe.

REI
1432
Não pode o meu sprito consentir
1433
em crueza tamanha.

PACHECO
Mor crueza
1434
fazes agora ao reino, agora fazes
1435
o que faz a pouca água em grande fogo.
1436
Agora mais s’acende, arderá mais
1437
o fogo de teu filho. A que vieste?
1438
A pôr em mor perigo teu estado?

REI
1439
Vejo aquela ĩnocente, chora-m’alma.

COELHO
1440
O ânimo real tam firme e forte
1441
há de ser no que faz que nunca possa
1442
debaixo do céu nada pervertê-lo.
1443
A justiça senhor, pinta-se armada
1444
d’espada aguda, contra cujos fios
1445
não possa haver brandura nem dureza.
1446
Cada um destes extremos é grão vício
1447
em quem é pai comum de todo um reino.
1448
Despois da conta feita e razões claras
1449
despois de tais conselhos em que viste
1450
quam necessária era esta tua vinda
1451
quam necessário o efeito a que vieste
1452
se muda assi senhor tam levemente
1453
por lágrimas teu ânimo constante?
1454
Antes não cometeras nem cuidaras
1455
cometer isto, por que não vieras
1456
acrescentar o mal que agora vejo
1457
que fica já de todo sem remédio.

REI
1458
Não vejo culpa que mereça pena.

PACHECO
1459
Inda hoje a viste, quem ta esconde agora?

REI
1460
Mais quero perdoar que ser injusto.

COELHO
1461
Injusto é quem perdoa a pena justa.

REI
1462
Peque antes ness’extremo que em crueza.

COELHO
1463
Não se consente o rei pecar em nada.

REI
1464
Sou homem.

COELHO
Porém rei.

REI
O rei perdoa.

PACHECO
1465
Nem sempre perdoar é piadade.

REI
1466
Eu vejo ũa ĩnocente, mãe de uns filhos
1467
de meu filho que mato juntamente.

COELHO
1468
Mas dás vida a teu filho, salvas-lh’alma
1469
pacificas teu reino, a ti seguras.
1470
Restitues-nos honra, paz, descanso.
1471
Destrues a traidores, cortas quanto
1472
sobre ti e teu neto se tecia.
1473
Ofensas, senhor, públicas não querem
1474
perdão mas rigor grande. Daqui pende
1475
ou remédio dum reino ou queda certa.
1476
Abre os olhos às causas necessárias
1477
que te mostramos sempre e que tu vias.
1478
Cuida no que emprendeste e no que deixas.
1479
O ódio de teu filho contra ti
1480
contra nós tal será como qual fora
1481
fazendo-se o que deixas por fazer.
1482
A ti ficam seus filhos, ama-os, honra-os.
1483
Assi lh’amansarás grã parte da ira.
1484
Senhor, por teu estado te pedimos
1485
polo amor do teu povo com que t’ama
1486
polo com que sabemos que nos amas
1487
por mais vida, e mais honra de teu filho
1488
príncipe nosso, e por aquele seu
1489
Fernando único herdeiro cuja vida
1490
te está pedindo justamente a morte
1491
desta molher, enfim por honra tua
1492
pola constância firme com que sempre
1493
acodiste òs remédios e à justiça
1494
que a não deixes agora, que te movam
1495
mais estas razões fortes que essa mágoa
1496
injusta que despois chorarás mais
1497
perdendo esta ocasião que Deos te mostra.

REI
1498
Eu não mando nem vedo. Deos o julgue.
1499
Vós outros o fazei se vos parece
1500
justiça assi matar quem não tem culpa.

COELHO
1501
Essa licença basta, a tenção nossa
1502
nos salvará c’os homens e com Deos.

CORO
1503
Enfim venceu a ira, cruel imiga
1504
de todo bom conselho. Ah quanto podem
1505
palavras e razões em peito brando.
1506
Eu vejo teu sprito combatido
1507
de mil ondas ó rei. Bom é teu zelo
1508
o conselho leal, cruel a obra.

REI
1509
Por crueza julgais o que é justiça?

CORO
1510
Crueza a chamará tod’outra idade.

REI
1511
Minh’alma ĩnocente é, conselho sigo.

CORO
1512
Deos te julgue. Eu não ouso. Porém temo.

REI
1513
Que temes?

CORO
Este sangue que aos céus brada.
1514
Não culpamos a ti, nem desculpamos
1515
as descorteses mãos de teus ministros
1516
constantes no conselho, crus na obra.
1517
Ai vês que crueldade? Oh nunca visto
1518
mais ĩnocente sangue. E como sofres
1519
ó rei tal injustiça? Ouves os brados
1520
da ĩnocente moça? Ouves os choros
1521
dos ĩnocentes filhos? Triste Ifante
1522
ali passam tu’alma teus vassalos
1523
de teu sangue os cruéis tingem seus ferros.

REI
1524
Afronta-se minh’alma. Oh quem pudera
1525
desfazer o que é feito.

CORO I
1526
Já morreu dona Inês, matou-a amor
1527
amor cruel. Se tu tiveras olhos
1528
também morreras logo. Ó dura morte
1529
como ousaste matar aquela vida?
1530
Mas não mataste. Melhor vida e nome
1531
lhe deste do que cá tinha na terra.

CORO II
1532
Este seu corpo só gastará a terra
1533
por quem estará chorando sempre o amor
1534
honrando-se somente do seu nome.
1535
Mas quem a quiser ver com outros olhos
1536
outro nome, outra glória, outra honra e vida
1537
lhe achará, contra a qual não pode a morte.

CORO I
1538
Aqueles matas tu somente ó morte
1539
cujo nome s’esquece e a quem na terra
1540
fica de todo sepultada a vida.
1541
Mas esta vivirá enquanto o amor
1542
entr’os homens reinar, e sempre os olhos
1543
de todos a verão com melhor nome.

CORO II
1544
Real amor lhe dará real nome.
1545
Oh que coroa lhe aparelha a morte.
1546
Despois que lhe cerrou os claros olhos
1547
indignos d’antetempo irem à terra,
1548
sem quem só fica e desarmado amor
1549
sem quem quam triste, Ifante, a tua vida.

CORO I
1550
Tu és o que morreste, aquela vida
1551
era tua, já agora aquele nome
1552
que tam doce te fez sempre o amor
1553
triste to tem tornado a cruel morte.
1554
Chorando a andarão sempre na terra
1555
té que nos céus a vejam esses teus olhos.

CORO II
1556
Nem haverá já nunca no mundo olhos
1557
que não chorem de mágoa de ũa vida
1558
assi cortada em flor. E quem a terra
1559
for ver, em que estiver escrito o nome
1560
dela, dirá: aqui está chorando a morte
1561
de mágoa do que fez aqui o amor.

CORO I
1562
Amor quanto perdeste nuns sós olhos
1563
que debaixo da terra pôs a morte
1564
tanto eles mais terão de vida e nome.
Sáficos.
1565
Choremos todos a tragédia triste
1566
que esta crua morte deixará no mundo.
1567
Já aquele sprito que também vivia
1568
em ti, ó Castro, vai aos céus voando.
1569
Já aquele sangue purpúreo, ĩnocente
1570
forçadamente desempara os membros
1571
a que ele dava aquela cor e graça
1572
que a natureza mais perfeitamente
1573
formar pudera nesta ou outra idade.
1574
Assi a região que vê nascer o sol
1575
como a região onde o sol se esconde
1576
assi aquela que ao fervente Cancro
1577
como aqueloutra que à fria Mor Ursa
1578
estão sojeitas, esta mágoa chorem.
1579
Jaz a coitada no seu sangue envolta
1580
aos pés dos filhos pera quem fugia.
1581
Não lhe valeram que não tinham forças
1582
pera tomarem os agudos ferros
1583
com que seus peitos tam irosamente
1584
traspassar viam aqueles cruéis.
1585
Ó mãos tam duras, ó corações duros
1586
como pudestes fazer tal crueza?
1587
Outras mãos venham que vo-las arranquem
1588
com mor crueza.

CORO I
1589
Que duros getas, mas que leões, que ussos
1590
não amansara tam fermoso rosto?
1591
Que ira tam brava não tornara branda
1592
ũa só mágoa de tam doce boca?
1593
Que mãos tão cruas não ataram logo
1594
aqueles crespos seus ricos cabelos?
1595
Aqueles olhos em que pedras duras
1596
não imprimiram brandura? Oh que mágoa.
1597
Oh que crueza tam fera e tam bruta.
1598
Moça ĩnocente por amor só morta
1599
com gente armada como forte imigo.
1600
Tu Deos que o viste, ouve o clamor justo
1601
daquele sangue que t’está pedindo
1602
crua vingança.


Acto V

Ifante. Messageiro.

IFANTE
1603
Outro céu, outro sol me parece este
1604
diferente daquele que lá deixo
1605
donde parti, mais claro e mais fermoso.
1606
Onde não resplandecem os dous claros
1607
olhos da minha luz, tudo é escuro.
1608
Aquele é só meu sol, a minha estrela
1609
mais clara, mais fermosa, mais luzente
1610
que Vénus quando mais clara se mostra.
1611
Daqueles olhos s’alumia a terra
1612
em que sombra não há nem nuvem escura.
1613
Tudo ali é tam claro que té a noite
1614
me parece mais dia que este dia.
1615
A terra ali s’alegra e reverdece
1616
doutras flores mais frescas e melhores.
1617
O céu se ri e se doura diferente
1618
do que neste horizonte se me mostra.
1619
O soberbo Mondego com tal vista
1620
parece que ao grão mar vai fazer guerra.
1621
Doutros ares respira ali a gente
1622
que fazem ĩmortais os que lá vivem.
1623
Ó Castro, Castro, meu amor constante.
1624
Quem me de ti tirar tire-me a vida.
1625
Minh’alma lá ma tens, tenho cá a tua.
1626
Morrendo ũa destas vidas ambas morrem.
1627
E havemos de morrer? Pode vir tempo
1628
que ambos nos não vejamos? Nem eu possa
1629
indo buscar-te ó Castro, achar-te lá?
1630
Nem achar os teus olhos tam fermosos
1631
de que os meus tomam luz e tomam vida?
1632
Não posso cuidar nisto sem os olhos
1633
mostrarem a saudade que me fazem
1634
tam tristes pensamentos. Viviremos
1635
muitos anos e muitosViviremos
1636
sempre ambos nest’amor tam doce e puro.
1637
Rainha te verei deste meu reino
1638
doutra nova coroa coroada
1639
diferente de quantas coroaram
1640
ou de homens ou molheres as cabeças.
1641
Então serão meus olhos satisfeitos
1642
então se fartará da glória sua
1643
est’alma que anda morta de desejos.

MESSAGEIRO
1644
Oh triste nova, triste messageiro
1645
tens ante ti senhor.

IFANTE
Que novas trazes?

MESSAGEIRO
1646
Novas cruéis, cruel sou contra ti
1647
pois m’atrevi trazê-las. Mas primeiro
1648
sossega teu sprito e nele finge
1649
a mor desaventura que te agora
1650
podia acontecer. Que gram remédio
1651
é ter o sprito armado à má fortuna.

IFANTE
1652
Tens-me suspenso. Conta, que acrecentas
1653
o mal com a tardança.

MESSAGEIRO
1654
É morta dona Inês que tanto amavas.

IFANTE
1655
Oh Deos, oh céus. Que contas? Que me dizes?

MESSAGEIRO
1656
De morte tam cruel que é nova mágoa
1657
contar-ta não me atrevo.

IFANTE
É morta?

MESSAGEIRO
Si.

IFANTE
1658
Quem ma matou?

MESSAGEIRO
Teu pai com gente armada
1659
foi hoje salteá-la. A ĩnocente
1660
que tam segura estava não fugiu.
1661
Não lhe valeu o amor com que te amava.
1662
Não teus filhos com quem se defendia.
1663
Não aquela ĩnocência e piedade
1664
com que pediu perdão aos pés lançada
1665
del rei teu pai, que teve tanta força
1666
que lho deu já chorando. Mas aqueles
1667
cruéis ministros seus e conselheiros
1668
contr’aquele perdão tam merecido
1669
arrancando as espadas se vão a ela
1670
traspassando-lh’os peitos cruelmente
1671
abraçada c’os filhos a mataram
1672
que inda ficaram tintos do seu sangue.

IFANTE
1673
Que direi? Que farei? Que clamarei?
1674
Oh fortuna, oh crueza, oh mal tamanho.
1675
Ó minha dona Inês, ó alma minha
1676
morta m’és tu? Morte houve tam ousada
1677
que contra ti pudesse? Ouço-o e vivo.
1678
Eu vivo e tu és morta. Ó morte crua.
1679
Morte cega mataste minha vida
1680
e não me vejo morto? Abra-se a terra
1681
sorva-me num momento, rompa-s’alma
1682
aparte-se de um corpo tam pesado
1683
que ma detém por força.
1684
Ah minha dona Inês, ah minh’alma.
1685
Amor meu, meu desejo, meu cuidado
1686
minh’esperança só, minh’alegria
1687
mataram-te. Mataram-te. Tua alma
1688
ĩnocente, fermosa, humilde e santa
1689
deixou já seu lugar? Ah, de teu sangue
1690
s’encheram as espadas, de teu sangue?
1691
Que espadas tam cruéis, que cruéis mãos.
1692
Ah como se moveram contra ti?
1693
Como tiveram forças, como fios
1694
aqueles duros ferros contra ti?
1695
Como tal consentiste rei cruel?
1696
Imigo meu, não pai, imigo meu.
1697
Porque assi me mataste? Ó leões bravos.
1698
Ó tigres, ó serpentes. Que tal sede
1699
tínheis deste meu sangue, por que causa
1700
vós não vínheis em mim fartar vossa ira?
1701
Matáreis-me e vivera. Homens cruéis
1702
por que não me matastes? Meus imigos
1703
se mal vos merecia em mim vingáreis
1704
esse mal todo. Aquela ovelha mansa
1705
ĩnocente, fermosa, simples, casta
1706
que mal vos merecia? Mas quisestes
1707
como imigos cruéis buscar-me a morte
1708
não da vida, mas d’alma. Ó céus que vistes
1709
tamanha crueldade, como logo
1710
não caístes? Ó montes de Coimbra
1711
como não sovertestes tais ministros?
1712
Como não treme a terra e s’abre toda?
1713
Como sustenta em si tam grã crueza?

MESSAGEIRO
1714
Senhor pera chorar fica assaz tempo
1715
mas lágrimas que fazem contr’a morte?
1716
Vai ver aquele corpo, vai fazer-lhe
1717
as honras que lhe deves.

IFANTE
Tristes honras.
1718
Outras honras, senhora, te guardava
1719
outras se te deviam. Ó triste, triste.
1720
Enganado, nascido em cruel signo
1721
quem m’enganou? Ah cego que não cria
1722
aquelas ameaças. Mas quem crera
1723
que tal podia ser?
1724
Como poderei ver aqueles olhos
1725
cerrados pera sempre? Como aqueles
1726
cabelos já não de ouro mas de sangue?
1727
Aquelas mãos tam frias e tam negras
1728
que antes via tam alvas e fermosas?
1729
Aqueles brancos peitos traspassados
1730
de golpes tam cruéis? Aquele corpo
1731
que tantas vezes tive nos meus braços
1732
vivo e fermoso, como morto agora
1733
e frio o posso ver? Ai como aqueles
1734
penhores seus tam sós? Ó pai cruel
1735
tu não me vias neles? Meu amor
1736
já me não ouves? Já não te hei de ver?
1737
Já te não posso achar em toda a terra?
1738
Chorem meu mal comigo quantos m’ouvem.
1739
Chorem as pedras duras, pois nos homens
1740
s’achou tanta crueza. E tu Coimbra
1741
cubre-te de tristeza pera sempre.
1742
Não se ria em ti nunca, nem s’ouça
1743
senão prantos e lágrimas, em sangue
1744
se converta aquela água do Mondego.
1745
As árvores se sequem e as flores.
1746
Ajudem-me pedir aos céus justiça
1747
deste meu mal tamanho.
1748
Eu te matei senhora, eu te matei.
1749
Com morte te paguei o teu amor.
1750
Mas eu me matarei mais cruelmente
1751
do que te a ti mataram se não vingo
1752
com novas crueldades tua morte.
1753
Para isto me dá Deos somente vida.
1754
Abra eu com minhas mãos aqueles peitos.
1755
Arranque deles uns corações feros
1756
que tal crueza ousaram, entam acabe.
1757
Eu te perseguirei, rei meu imigo.
1758
Lavrará muito cedo bravo fogo
1759
nos teus, na tua terra, destruídos
1760
verão os teus amigos, outros mortos
1761
de cujo sangue s’encherão os campos
1762
de cujo sangue correrão os rios
1763
em vingança daquele. Ou tu me mata
1764
ou fuge da minh’ira, que já agora
1765
te não conhecerá por pai. Imigo
1766
me chamo teu, imigo teu me chama.
1767
Não m’és pai, não sou filho, imigo sou.
1768
Tu, senhora, estás lá nos céus, eu fico
1769
enquanto te vingar, logo lá vou.
1770
Tu serás cá rainha como foras.
1771
Teus filhos, só por teus serão ifantes.
1772
Teu ĩnocente corpo será posto
1773
em estado real, o teu amor
1774
m’acompanhará sempre té que deixe
1775
o meu corpo c’o teu e lá vá est’alma
1776
descansar com a tua pera sempre.