Diz logo o Mordomo, ou dono da casa:
ESCUDEIRO
1Eis, senhores: o autor, por me honrar nesta festival noite, me quis representar ũa
farsa e diz que, por se não encontrar com outras já feitas, buscou uns novos fundamentos
para a quem tiver um juízo assi arrezoado satisfazer. E diz que quem se dela não contentar,
querendo outros novos acontecimentos, que se vá aos soalheiros dos escudeiros da Castanheira
ou d’Alhos Vedros e Barreiro, ou converse na Rua Nova em casa do boticário, e não
lhe faltará que conte. Porém diz o autor que usou nesta obra da maneira de Isopete.
Ora quanto à obra se não parecer bem a todos, o autor diz que entende dela menos que
todos os que lha puderem ẽmendar. Todavia, isto é para praguentos, aos quais diz que
responde com um dito de um filósofo que diz: Vós outros estudastes para praguejar,
e eu para desprezar praguentos. E contudo quero saber da farsa em que ponto vai. Moço,
Lançarote.
ESCUDEIRO
3São já chegadas as figuras?
MOÇO
4Chegadas são elas quasi ao fim de sua vida.
MOÇO
6Porque foi a gente tanta que não ficou capa com frisa, nem talão de sapato que não
saísse fora do couce. Ora vieram uns embuçadetes, quiseram entrar por força, ei-lo
arrancamento na mão. Deram ũa pedrada na cabeça ao Anjo e rasgaram ũa meia calça ao
Ermitão, e agora diz o Anjo que não há de entrar até lhe não darem ũa cabeça nova,
nem o Ermitão até lhe não porem ũa estopada na calça. Este pantufo se perdeu, assi
mande-o vossa mercê domingo apregoar nos púlpitos, que não quero nada do alheo.
ESCUDEIRO
7Se ela fora outra peça de mais valia, tu botaras a conciência pela porta fora para
a meteres em tua casa.
MOÇO
8Oh se o ela fora, mais conciência seria torná-la a seu dono, quem a havia mister para
si.
ESCUDEIRO
9Ora vem cá. Vai daqui a casa de Martim Chinchorro, e dize-lhe que temos cá auto com
grande fogueira, que se venha sua mercê para cá e que traga consigo o senhor Romão
d’Alvarenga, para que sobre o cantochão botemos nosso contraponto de zombaria. Ouves
Lançarote? Ir-lhe-ás abrir a porta do quintal, por que mudemos o vinte aos que cuidam
de entrar por força.
Indo-se o Moço, diz:
MOÇO
10Chichelo de judeu, assi como foste pantufo, que te custava ser ũa bolsa com um par
de reales, que são bons para escudeiro hipócrita, que são muito e valem pouco?
ESCUDEIRO
11Moço, que estás fazendo que não vás?
MOÇO
12Senhor, estou tardando e porém estou cuidando que se agora fora aquele tempo em que
corriam as moedas dos sambarcos, sempre deste tiraria para ũas palmilhas. Mas já que
assi é, diga-me vossa mercê que farei deste.
ESCUDEIRO
13Oh fi de puta bargante, esperai, que estoutro vo-lo dirá.
Faz que lhe atira com outro pantufo. Vai-se o Moço e diz o Escudeiro:
ESCUDEIRO
14Não há mais mau conselho que ter um vilão destes mimoso, porque logo passam o pé além
da mão, zombam assi da gravidade de seu amo. Mas tornando ao que importa, vossas mercês
é necessário que se cheguem uns para os outros, para darem lugar aos outros senhores
que hão de vir, que doutra maneira, se todo o corro se há de gastar em palanques,
será bom mandar fazer outro Alvalade. E mais, que me hão de fazer mercê, que se hão
de desembuçar, porque eu não sei quem me quer bem, nem quem me quer mal. Este só desgosto
tem um auto, que é como ofício de alcaide, ou haveis deixar entrar a todos, ou vos
hão de ter por vilão ruim.
Entra Martim Chinchorro, falando com outro escudeiro por nome Ambrósio, e diz o Martim
Chinchorro:
MARTIM
15Entre vossa mercê.
AMBRÓSIO
16Dias há, senhor, que ando de quebras com cortesias e por isso vou diante. Bejo as
mãos a vossa mercê. A verdade é esta: passear com casa juncada, fogueira com castanhas,
mesa posta com alcatifa e cartas. Além disso, auto para esgaravatar os dentes. Esta
é a vida de que se há de fazer conciência.
ESCUDEIRO
17Senhor, o descanso dizem lá que se há de ter enquanto homem puder, porque os trabalhos,
sem os chamarem, de seu se vem por seu pé, que seu nome é.
MARTIM
18Ora pois, senhor, o auto dizem que é tal? Porque um auto enfadonho traz mais sono
consigo que ũa pregação comprida.
ESCUDEIRO
19Senhor, por bom mo venderam e eu o tomei à cala de sua boa fama. E se tal é, eu acho
que por outra parte não há tal vida como ouvir um vilão que arranca a fala da garganta
mais sem sabor que ũa pêra-pão e ũa donzela que vem mais podre de amor, falando como
apóstolo, mais piadosa que ũa lamentação.
MARTIM
20Para estes tais é grande peça rapaz travesso com molho de junco, por que não andem
mais ao coscorrão, mais roucos que ũa cigarra, trazendo de si enfadamento.
MOÇO
21Oulá, senhores. Pedem as figuras alfinetes para toucarem um escudeiro. Ora sus, há
i quem dê mais? Que ainda vos veja todas a mim às rebatinhas. Ora sus, venham de mano
em mano, ou de mana em mana.
ESCUDEIRO
22Moço, fala bem ensinado.
MOÇO
23Senhor, não faz ao caso, que os erros por amores tem privilégio de moedeiro.
AMBRÓSIO
24Ó rapaz, não me entendes? Pergunto-te se tardará muito por entrar.
MOÇO
25Perece-me, senhor, que antes que amanheça começarão.
AMBRÓSIO
26Oh que salgado moço, zombas de mim? Vem cá, donde és natural?
MOÇO
27Donde quer que me acho.
AMBRÓSIO
28Pergunto-te onde naceste.
MOÇO
29Nas mãos das parteiras.
MOÇO
31Toda a terra é ũa, e mais eu naci em casa assobradada, varrida daquela hora, que não
havia palmo de terra nela.
MARTIM
32Bem varrido de vergonha que me tu pareces. Dize, cujo filho és? É para ver com que
disparate respondes.
MOÇO
33A falar verdade, parece-me a mim que eu sou filho de um meu tio.
MARTIM
34Vem cá. De teu tio? E isso como?
MOÇO
35Como? Isto, senhor, é adevinhação que vossas mercês não entendem. Meu pai era clérigo,
e os clérigos sempre chamam aos filhos sobrinhos, e daqui me ficou a mim ser filho
de meu tio.
MARTIM
36Ora te digo que és gracioso. Senhor, donde houvestes este?
ESCUDEIRO
37Aqui me veio às mãos sem piós nem nada, e eu por gracioso o tomei. E mais tem outra
cousa, que ũa trova fá-la tão bem como vós, ou como eu, ou como o Chiado.
AMBRÓSIO
38Não. Quant’a disso nós havemos-lhe de ver fazer algũa cousa, enquanto se vestem as
figuras, ainda que, para que é mais auto que vermos a este?
ESCUDEIRO
39Vem cá, Moço. Dize aquela trova que fizeste à moça Briolanja, por amor de mim.
MOÇO
40Senhor, si, direi. Mas aquela trova não é senão para quem a entender.
MARTIM
41Como, tão escura é ela?
MOÇO
42Senhor, assi a sei eu escrever e a fiz na memória, porque eu não sei escrever senão
com carvão, e porém diz assi:
43
Per amor de vós, Briolanja
44
ando eu morto,
45
pesar de meu avô torto.
MARTIM
46Oh como é galante, que descuido tão gracioso. Mas vem cá. Que culpa te tem teu avô
nos disfavores que te tua dama dá?
MOÇO
47Pois, senhor, se eu houve de pesar de alguém, não pesarei eu antes dos meus parentes
que dos alheios?
ESCUDEIRO
48Pois ouçam vossas mercês a volta, que é mais cheia de gavetas que a trombeta de Sereníssimo
de la Valla.
MOÇO
49A volta, senhores, é mui funda e parece-me, senhores, que nem de mergulho a entenderão,
e por isso mandem assoar os engenhos e metam mais ũa sardinha no entendimento. E pode
ser que com esta servilha lhe calçará melhor, e todavia palra assi:
50
Vossos olhos tão daninhos
51
me trataram de feição
52
que não há em meu coração
53
em que atem dous réis de cominhos.
54
Meu bem anda sem focinhos
55
por vós morto
56
pesar de meu avô torto.
MARTIM
57Ora bem, que tem de ver os cominhos com o teu coração?
MOÇO
58Pois, senhores, coração, bofes, baço e toda a outra mais cabedela não se podem comer
senão com cominhos. E mais, senhores, minha dama era tindeira, este é o verdadeiro
entendimento.
MARTIM
59E aquela regra que diz «meu bem anda sem focinhos» me dá tu a entender, que ela não
dá nada de si.
MOÇO
60Nunca vossas mercês ouviram dizer: meu bem e meu mal lutaram um dia meu bem era tal
que meu mal o vencia? Pois desta luta foi tamanha a queda que meu bem deu entre ũas
pedras, que quebrou os focinhos. E por ficarem tão esfarrapados, porque lhe não podiam
botar pedaço, por conselho dos físicos lhos cortaram por lhe neles não saltarem herpes,
e daqui ficou: meu bem anda sem focinhos, como diz o texto.
AMBRÓSIO
61Tu fazes já melhores argumentos que moços do estudo por dia de são Nicolau.
MARTIM
62Senhor, aquilo tudo é bom engenho. Este moço é natural para lógico.
MOÇO
63Quê, senhor, natural para lójia? Si, mas não tão fria como vossas mercês.
ESCUDEIRO
64Parece-me, senhor, que entra a primeira figura. Moço, mete-te aqui por baixo desta
mesa, e ouçamos este representador, que vem mais amorlotado dos encontros que um capuz
roxo de piloto que sai em terra e o tira d’arca de cedro.
MARTIM
65Senhor, ele parece que aprende a cirugião.
AMBRÓSIO
66Mais parece ourinol capado, que anda de amores com a menina dos olhos verdes.
ESCUDEIRO
67Enfim, parece figura d’auto, em verdade.
Entra o representador.
REPRESENTADOR
68
É lei de direito assaz verdadeira
69
julgar por si mesmos aquilo que vem
70
porque eu cuido que eu zombo d’alguém
71
e cuido que zombam da mesma maneira.
72E se a qualquer parece que está mais dobrado, sem nenhum conhecer, seu próprio engano,
por grande que seja...
73Ora, senhores, a mi me esquece o dito todo de ponto em claro, mas não sou de culpar,
porque não há mais que três dias que mo deram. Mas em breves palavras direi a vossas
mercês a suma da obra: ela é toda de rir, do cabo até à ponta. Entrarão logo primeiramente
quinze donzelas que vão fugidas de casa de seus pais, e vão com cabazes apanhar azeitona.
E trás elas vem logo oito mundanos, metidos em um covão, cantando: quem os amores
tem em Sintra. E depois de cantarem farão ũa dança de espadas, cousa muito para ver.
Entra mais el rei dom Chancho, bailando os machatins, e entra logo Caterina Real com
uns poucos de parvos nũa joeira e semeá-los-á pela casa, de que nascerá muito mantimento
ao riso. E nisto fenecerá o auto, com música de chocalho e bozinas, que Cupido vem
dar a ũa alfeloeira a quem quer bem, e ir-se-ão vossas mercês cada um para suas pousadas
ou consoarão cá connosco disso que aí houver. Parece-me que nenhum diz que não. Ora
pois ficareis em vano laboraverunt, porque até ‘gora zombei de vós, por me forrar
do erro da representação, como quem diz: digo-te, antes que mo digas.
AMBRÓSIO
74Ora vos digo, senhores, que, se as figuras são todas tais, que acertariam em errar
os ditos, ainda que me parece que este o não fez, senão a ser mais galante. Mas se
assi é, ela é a melhor invenção que eu vi, porque já agora representações, todas é
darem por praguentos, e são tão certas, que é melhor errá-las que acertá-las.
ESCUDEIRO
75Parece-me que entram as figuras de siso. Vejamos se são tam galantes na prática como
nos vestidos.
Entra el Rei Seleuco, com a Rainha Estratónica.
REI
Decima
76
Senhora, dês que a ventura
77
me quis dar-vos por molher
78
me sinto ẽmeninecer
79
porque em vossa fermosura
80
perde a velhice seu ser.
81
Um homem velho, cansado
82
não tem força nem vigor
83
para em si sentir amor
84
se não é que estou mudado
85
com ser vosso noutra cor.
Decima
86
Muito grande dita tem
87
a molher que é fermosa.
RAINHA
88
Senhor, grande. Mas porém
89
se a tal é virtuosa
90
quer-lhe a ventura mor bem.
REI
91
Si, mas porém nunca vemos
92
a natureza esmerar
93
donde haja que tachar
94
que quando ela faz extremos
95
em tudo quer-se extremar.
Decima
96
Eu falo como quem sente
97
em vós esta calidade
98
pelo que vejo presente
99
e se me esta mostra mente
100
mente-me a mesma verdade.
101
Ũa só tristeza sento
102
que não tem a meninice
103
que no mor contentamento
104
o trabalho da velhice
105
me embaraça o sentimento.
RAINHA
Decima
106
Senhor, novidades tais
107
far-me-ão crer de verdade.
REI
108
Novidades lhe chamais
109
folgo, senhora, que achais
110
na velhice novidades.
RAINHA
111
Senhor, dias há que sento
112
no príncipe Antioco
113
certo descontentamento
114
dera algũa cousa a troco
115
por saber seu sentimento
Decima
116
vejo-lhe amarelo o rosto
117
ou de triste ou de doente
118
ou ele anda mal-disposto
119
ou lá tem certo disgosto
120
que o não deixa ser contente.
121
Mande senhor, vossa alteza
122
a chamá-lo por alguém
123
saberemos que mal tem
124
se é doença de tristeza
125
de que nace ou de que vem.
REI
Decima
126
Certo que eu me maravilho
127
do que vos ouço dizer.
128
Que mal pode nele haver?
129
Ide dizer a meu filho
130
que me venha logo ver.
RAINHA
131
Se curar não se procura
132
ũa cousa destas tais
133
vem depois a crecer mais.
134
Quando já se não acha cura
135
toda a cura é por demais.
Entra o Príncipe Antioco, com seu pajem por nome Leocádio.
PRÍNCIPE
Decima
136
Leocádio se és avisado
137
e não te falta saber
138
saber-me-ás dar a entender:
139
quem ama desesperado
140
que fim espera de haver?
PAJEM
141
Senhor, não.
142
Mas porém por que razão
143
lhe vem sabê-lo, ou de quê?
PRÍNCIPE
144
Pergunto-te a conclusão
145
não me perguntes porquê
Decima
146
porque é minha pena tal
147
e de tão estranho ser
148
que me hei de deixar morrer
149
e por não cuidar no mal
150
o não ouso de dizer.
151
Que maneira de tormento
152
tão estranho e evidente
153
que nem cuidar se consente
154
porque o mesmo pensamento
155
há medo do mal que sente.
PAJEM
Oncena
156
Não entendo a vossa alteza.
PRÍNCIPE
157
Assi importa à minha dor.
PAJEM
158
E por que rezão, senhor?
PRÍNCIPE
159
Para que seja a tristeza
160
castigo de meu temor.
161
Porque ordena
162
o amor que me condena
163
que se haja de sentir
164
e sem dizer nem ouvir.
165
Bem-aventurada a pena
166
que se pode descobrir.
Decima
167
Oh caso grande e medonho
168
oh duro tormento fero
169
verdade é isto que eu quero?
170
Não é verdade mas sonho
171
de que acordar não espero.
172
Quero-me chegar a el Rei
173
meu pai, que já me está vendo.
174
Mas onde vou? Não m’entendo.
175
Com que olhos olharei
176
um pai a quem tanto ofendo?
Quintilla
177
Que novo modo de antolhos
178
porque neste atrevimento
179
divera meu sentimento
180
para ele não ter olhos
181
nem para ela pensamento.
Chega aonde está el Rei e diz el Rei:
REI
Decima
182
Filho, como andais assi
183
que tanto disgosto tomo
184
de vos ver como vos vi?
PRÍNCIPE
185
Não sei eu tanto de mi
186
que possa saber o como.
187
Dias há senhor que ando
188
mal-disposto sem saber
189
este mal que possa ser
190
que se nele estou cuidando
191
quasi me vejo morrer.
REI
Decima
192
Pois filho será razão
193
que meus físicos vos vejam.
PRÍNCIPE
194
Os físicos, senhor, não
195
que os males que em mi estão
196
são curas que me sobejam.
RAINHA
197
Deite-se que na verdade
198
um corpo deitado e manso
199
descansa à sua vontade.
PRÍNCIPE
200
Senhora, esta enfermidade
201
não se cura com descanso.
RAINHA
Decima
202
Todavia bom será
203
que lhe façam ũa cama.
PRÍNCIPE
204
Um coxim abastará
205
que assi não descansará
206
o repouso de quem ama.
REI
207
Vamos filho para dentro
208
enquanto a cama se faz.
209
Repousai como capaz
210
que a mi me dá cá no centro
211
a pena que assi vos traz.
Vão-se e vem ũa Moça a fazer a cama, e diz:
MOÇA
Nona
212
Mimos de grandes senhores
213
e suas extremidades
214
me hão de matar de amores
215
porque de meros dulçores
216
adoecem.
217
Então logo lhe parecem
218
aos outros que são mamados
219
e os que são mais privados
220
sobre eles estremecem.
Nona
221
Certo e assi Deos me ajude
222
que são muito graciosos
223
porque de meros viçosos
224
não podem com a saúde.
225
Mas deixá-los
226
porque eles darão nos valos
227
donde mais não se erguerão
228
inda que lhe dem a mão
229
os seus privados vassalos.
Entra um Porteiro da cana e bate primeiro, e diz:
PORTEIRO
231
Já vós, mana, éreis mamada
232
para vos levar furtada
233
nunca tal ensejo vi
234
e vós estais descuidada.
MOÇA
235
E meus descuidos que fazem?
PORTEIRO
236
Vossos descuidos, cadela?
237
Ah minha alma, sois tão bela
238
que esses descuidos me trazem
239
dous mil cuidados à vela
Decima
240
pois sou vosso há tantos anos
241
mana tirai os antolhos
242
e vereis meus tristes danos.
MOÇA
243
Não tenhais esses enganos.
PORTEIRO
244
Nem vós tenhais esses olhos
245
que de vossos olhos vem
246
esta minha pena fera.
PORTEIRO
Assi era.
248
Moça que tais olhos tem
249
nenhuns olhos ver divera.
PORTEIRO
Porque cegais
251
a quantos olhos olhais
252
posto que por vós padecem.
253
Olhos que tão bem parecem
254
por que não nos castigais?
MOÇA
255
Deos dê siso pois de vós
256
tirou o que aos outros deu.
PORTEIRO
257
Desatai-me lá esses nós.
258
Que mais siso quero eu
259
que não ter siso por vós?
MOÇA
Decima
260
Falais d’arte, eu vos prometo
261
que a reposta vem à vela.
PORTEIRO
262
Isso é olho de panela.
MOÇA
263
Quanto há que sois discreto?
PORTEIRO
264
Quanto há que vós sois bela?
MOÇA
265
Dais-me logo a entender
266
que eu sou fea, a meu ver.
PORTEIRO
267
E isso por que o entendeis?
MOÇA
268
Porquê? Porque me dizeis
269
que só de meu parecer
270
vos procede o que sabeis.
MOÇA
Pois bem sento
272
que o vosso saber é vento
273
fica a cousa declarada
274
meu parecer não ser nada.
PORTEIRO
275
Olhai aquele argumento
276
além de bela, avisada.
277
Oh nem tanto nem tão pouco
278
vede vós o que falais.
MOÇA
279
Cego no saber andais.
PORTEIRO
280
No siso, mas não tão louco
281
como vós, mana, cuidais
Decima
282
ora dizei duna má
283
que não amais quem vos ama?
MOÇA
284
Ouvistes vós cantar já
285
Velho malo em minha cama?
286
Já me entendereis.
PORTEIRO
Ah ah
287
senhora estais enganada
288
que com ũa capa e espada
289
e com este capuz fora...
MOÇA
290
Ora bem tirai-o ora
291
e fazei ũa levada.
PORTEIRO
Decima
292
Não, se me eu hoje alvoroço
293
achar-me-eis doutra feição.
Aqui tira o capuz e diz:
294
Tenho má disposição?
295
Estas obras são de moço
296
se as mostras de velho são.
MOÇA
297
Tendes mui gentis meneos.
PORTEIRO
298
Não senhora. Faço extremos.
MOÇA
299
Passeai ora, veremos
300
se tendes tão bons passeos.
PORTEIRO
301
Tudo senhora faremos.
MOÇA
Decima
302
Virai ora a essoutra mão.
PORTEIRO
303
Esta disposição vede-a
304
que tenho gentil feição.
MOÇA
305
Tendes vós mui boa rédea.
306
Sofreis ancas?
MOÇA
307
Por certo que tendes graça
308
em tudo quanto fizerdes
309
fazei mais o que souberdes.
PORTEIRO
310
Não sei cousa que não faça
311
senhora por me quererdes.
MOÇA
Oncena
312
Tendes vós muito bom ar.
PORTEIRO
313
Mais, que isto faz quem quer bem.
MOÇA
314
I-vos asinha, que vem
315
o Príncipe a se deitar.
PORTEIRO
316
Nunca ũa pessoa tem
317
ũa hora para falar.
Entra o Príncipe com o seu pajem Leocádio, e diz:
PRÍNCIPE
318
Seja a morte apercebida
319
porque já o amor ordena
320
a dar a meu mal saída
321
por que o fim da minha vida
322
o seja da minha pena
Decima
323
não tarde para tomar
324
vingança de meu querer
325
pois não se pode dizer
326
que não tem já que esperar
327
nem com que satisfazer.
328
Os físicos vem e vão
329
sem saberem minhas mágoas
330
nem o pulso me acharão
331
e se o querem ver nas águas
332
as dos olhos lho dirão
Decima
333
se com sangrias também
334
procuram ver-me curado
335
o temor de meu cuidado
336
o mais do sangue me tem
337
nas veas todo coalhado.
338
Quero-me aqui encostar
339
que já o espírito me cai.
340
Leocádio, vai-me chamar
341
os músicos de meu pai
342
folgarei de ouvir cantar.
Aqui se deita como que repousa, e fala dizendo assi:
Decima
343
Senhora, qual desatino
344
me trouxe a tanta tristura?
345
Foi, senhora, porventura
346
o terço do meu destino
347
como vossa fermosura.
348
Bem conheço que não posso
349
ter tão alto pensamento
350
mas disto só me contento
351
que se paga com ser vosso
352
o mor mal de meu tormento.
Entram os músicos, e diz Alexandre da Fonseca, um deles:
ALEXANDRE
Decima
353
Senhor, de que se acha mal
354
o Príncipe ou que mal sente?
PAJEM
355
Senhor, sei que está doente
356
mas sua doença é tal
357
que entender se não consente.
358
Os físicos vem e vão
359
uns e outros ameúde
360
sem o poderem dar são.
361
Quanto mais cura lhe dão
362
então tem menos saúde
Decima
363
o pai anda em sacrifícios
364
aos deoses que lhe dem
365
a saúde que convém
366
dizendo que por seus vícios
367
o mal a seu filho vem.
368
Eu sospeito que isto são
369
alguns novos amorinhos
370
que terá no coração.
ALEXANDRE
371
Amores, com quem serão
372
que lhe não dem de focinhos?
PORTEIRO
Oncena
373
Senhores, que lhe parece
374
da doença de Antioco?
ALEXANDRE
375
Diga-lha quem lha conhece.
PAJEM
376
Que toma morrer a troco
377
de calar o que padece.
PORTEIRO
378
Isso é estar emperrado
379
na doença, que é pior.
380
Tem-no os físicos curado?
ALEXANDRE
381
Oh que de mal del amor
382
no ha, señor, sanador.
PORTEIRO
383
Falais como exprimentado
Decima
384
que eu cuido que esta fadiga
385
que o faz que desespere
386
Y por más tormento quiere
387
que se sienta y no se diga.
ALEXANDRE
388
Pois senhor isso assele
389
porque a pena que sabeis
390
que eu cuido que está nele
391
dar-lhe-á penas cruéis
392
pues no hay quien las consuele.
PAJEM
Decima
393
Hemo-nos, senhores, de ir
394
porque nos está esperando.
PORTEIRO
395
Pois eu também hei de ir
396
que não me posso espedir
397
donde vejo estar cantando.
PRÍNCIPE
398
Cantai por amor de mi
399
algũa cantiga triste
400
que todo meu mal consiste
401
na tristeza em que me vi.
PORTEIRO
402
Mande-lhe cantar um chiste.
ALEXANDRE
Decima
403
Chiste não que é desonesto
404
e não tem esses extremos.
405
Outro canto mais modesto
406
porém não sei que diremos.
PAJEM
407
Gãoleão o dirá presto.
PORTEIRO
408
Dá licença vossa alteza
409
que diga minha tenção?
PRÍNCIPE
410
Dizei, seja em cantochão.
PORTEIRO
411
Pois crede que é sutileza
412
que os anjos a comerão.
413
Digam esta:
414
Enforquei minha esperança
415
e o amor foi tão madraço
416
que lhe cortou o baraço.
ALEXANDRE
Decima
417
Não me parece essa boa.
ALEXANDRE
419
Porque não a entenderão.
PORTEIRO
420
Entender? Bofá que é boa
421
não lhe caís na feição?
ALEXANDRE
422
Dizei ora outra melhor
423
com que nos atarraqueis.
PORTEIRO
424
Ora esperai e ouvireis.
425
Se a esta não dais louvor
426
quero que me degoleis.
Cantiga:
427
Com vossos olhos Gonçalves
428
senhora, cativo tendes
429
este meu coração mendes.
ALEXANDRE
Decima
430
Essa parece mui taibo
431
porque mostra bom indício.
PORTEIRO
432
Vós cuidareis que eu que raivo.
ALEXANDRE
433
Todavia tem mau saibo.
434
Ora mal lhe corre o ofício.
PRÍNCIPE
435
Tá, não vá mais por diante
436
a zombaria que é má.
437
Cantai qualquer delas já
438
que esse Porteiro é galante
439
ninguém o contentará.
Aqui cantam, e em acabando diz o Pajem:
PAJEM
Decima
440
Parece que adormeceu.
PORTEIRO
441
Pois será bom que nos vamos.
ALEXANDRE
442
Senhor, quer que nos vejamos?
PORTEIRO
443
Senhor, vir-me-á do céu.
444
Releva-me que o façamos.
Entra a Rainha com ũa sua criada por nome Frolalta, e diz a Rainha:
RAINHA
445
Frolalta, como ficava
446
Antioco em te tu vindo?
FROLALTA
447
Ficava-se despedindo
448
da vida que então levava
449
e assi seus dias comprindo.
RAINHA
Decima
450
Oh grave caso de amor
451
desesperada afeição
452
oh amor sem redenção
453
que ali te fazes maior
454
onde tens menos razão.
455
No mais alto e fundo pego
456
ali tens maior porfia
457
razão de ti não se fia.
458
Quem te a ti chamou cego
459
mui bem soube o que dizia.
Decima
460
Porventura ia chorando?
FROLALTA
461
Chorando ia, chamando
462
ó amor, amor cruel
463
e em, senhora, se deitando
464
lhe caiu este papel.
RAINHA
466
Amostra que quero lê-lo.
467
Agora acabo de crê-lo
468
que ao que mostra por fora
469
aqui lhe lançou o selo.
Aqui lê o papel, e diz:
Decima
470
Oh estranha pena fera
471
desditosa vida cara
472
oh quem nunca cá viera
473
e com seu pai não casara
474
ou em casando morrera.
FROLALTA
475
Ainda que eu, pes’a são
476
senhora, tudo bem vejo
477
atente que na eleição
478
o que lhe pede o desejo
479
não consente o coração.
RAINHA
Decima
480
Frolalta, pois que és discreta
481
nada te posso encobrir
482
porque se queres sentir
483
a ũa molher discreta
484
tudo se há de descobrir.
485
O dia que entrei aqui
486
que a Seleuco recebi
487
logo nesse mesmo dia
488
no Príncipe filho vi
489
os olhos com que me via.
Decima
490
Este princípio sofri-lho
491
para ver se se mudava
492
antes mais se acrecentava.
493
Eu amava-o como filho
494
e ele doutra arte me amava.
495
Agora vejo-o no fim
496
por se me não declarar.
497
Pois que já a isso vim
498
a morte que o levar
499
me leve também a mim
Decima
500
porque já que minha sorte
501
foi tão crua e desabrida
502
que me não quer dar saída
503
sejamos juntos na morte
504
pois o não somos na vida.
505
Oh quem me mandou casar
506
para ver tal crueldade
507
ninguém venda a liberdade
508
pois não pode resgatar
509
onde não tem a vontade
Decima
510
que não há mor desvario
511
que o forçado casamento
512
por alcançar alto assento
513
que enfim todo o senhorio
514
está no contentamento.
515
Não sei se o vá ver agora
516
se será tempo conforme
517
ou se imos a desora.
FROLALTA
518
Depois iremos, senhora
519
que agora dizem que dorme.
Entra o Físico a tomar-lhe o pulso, e tomando-o diz:
FÍSICO
Decima
520
Su madrastra oyó nombrar
521
y el pulso se le alteró
522
esto no entiendo yo
523
porque para le alterar
524
el corazón le obligó.
525
Pues que el corazón se altere
526
es porque en un momento
527
algún nuevo vencimiento
528
de afición terrible le hiere
529
que causa tal movimiento.
Decima
530
Pues qué afición cabe así
531
con madrastra? Digo yo
532
dos razones hay aquí
533
la una dice que sí
534
la otra dice que no.
535
Empero yo determino
536
de exprimentar la verdad
537
y hacer una habilidad
538
que declare es agua o vino
539
esta su enfermedad
Oitava
540
porque toda esta mañana
541
tengo estudiado su mal
542
sin ver causa efectual
543
de su dolencia inhumana
544
ni otra de su metal.
545
Llamar quiero este asnejón
546
mas aun debe de dormir
547
según que es dormilón.
Oncena
548
Oh Sancho, oh Sancho.
FÍSICO
550
Ea, aún estás dormiendo?
SANCHO
551
Estoyme, señor, vestiendo.
FÍSICO
552
Pues, bellaco y sinsabor
553
no me respondes dormiendo?
554
Vestíos presto, ladrón
555
oh qué mozo y qué ventura.
SANCHO
556
Mas qué amo y caratón
557
envíeme el ropón
558
que no hallo mi vestidura.
FÍSICO
Nona
559
Que envíe el ropón acá?
560
Parece que os desmandáis.
SANCHO
561
Que vaya, señor, ah, ah.
Entra o Moço embrulhado em ũa manta, e diz:
SANCHO
562
Que buenos días hayáis.
FÍSICO
563
Di, cómo vienes así
564
con la manta y para qué?
SANCHO
565
Yo, señor, se lo diré:
566
por venir presto vestí
567
lo que más presto hallé
Decima
568
porque viendo que él me llama
569
dormiendo yo sin afán
570
salté presto de la cama
571
que parezco un gavilán
572
hermoso como una dama.
FÍSICO
573
Mas es tu bobedad tanta
574
que vienes desa fición?
SANCHO
575
De mi vestido se espanta?
576
De noche sirve de manta
577
y de día de ropón.
FÍSICO
Decima
578
Envióme el Rey a llamar
579
otra vez.
SANCHO
580
Y él que presta allá sin mí?
FÍSICO
581
Qué puedes tu aprovechar?
SANCHO
582
Yo se lo diré de aquí:
583
si por la ventura quiere
584
para que le dé consejo
585
cuando doliente estuviere
586
digo: coma si pudiere
587
y beba buen vino anejo.
Decima
588
Porque éste es el licor
589
que da fuerza y es sabroso
590
que según dicen señor
591
vino letificat cor
592
hominis y le es provechoso.
FÍSICO
593
Ya sabes la medicina
594
que Avicena nos refiere.
SANCHO
595
Pues señor porque es divina.
596
Pero el Rey qué le quiere
597
qué manda o qué determina?
FÍSICO
Decima
598
El Príncipe está doliente.
SANCHO
599
Oh mezquino y qué mal ha?
FÍSICO
600
Y a ti necio qué te va?
SANCHO
601
Oh señor que es mi pariente.
FÍSICO
602
Gracioso el bobo está.
603
Y pues dime por tu fe
604
llorarás si se moriere?
SANCHO
605
No lloraré
606
empero, señor, haré
607
la peor cara que pudiere.
FÍSICO
Docena
608
Ea bobo ve corriendo
609
y ensilla la mula aína.
SANCHO
610
Mula viene ensillar mejor.
FÍSICO
611
Oh bellaco y sinsabor.
SANCHO
612
Yo por cierto no lo entiendo.
613
Pero una melecina
614
le he de pedir Dios queriendo
615
porque ando atribulado
616
y no sé parte de mí
617
con este nuevo cuidado
618
para un sayo esfarrapado
619
que me dicen hay allí.
FÍSICO
Decima
620
Ora ensilla y nunca viva
621
pues sufro tus desatinos.
SANCHO
622
Señor, pasión no reciba
623
Ya cabalga Calaynos
624
a la sombra de una oliva.
Aqui se sai bolindo com a almofaça, e acorda o Príncipe e diz:
PRÍNCIPE
625
Oh bela vista e humana
626
por quem tanto mal sostenho
627
oh princesa soberana
628
como nos braços vos tenho
629
ou este sonho me engana?
Decima
630
Pois como sonho também
631
me queres vir magoar
632
e para me atormentar
633
mostras-me a sombra do bem
634
para assi mais me enganar?
635
Assi que conquanto canso
636
já não posso achar atalho
637
pois que o sono quieto e manso
638
que os outros tem por descanso
639
me vem a mim por trabalho
Decima
640
pois há i tantos enganos
641
que condenam minha sorte
642
não o tenho já por forte
643
se à volta de tantos danos
644
viesse também a morte.
Aqui entra el Rei com o Físico, e diz el Rei:
REI
645
Andai e vede se achais
646
o rasto deste segredo
647
que me dizem que alcançais
648
ainda que tenho medo
649
que lhe seja por demais.
FÍSICO
Decima
650
Plega a Dios que aquesto sea
651
para salud y remedio
652
desta dolencia tan fea.
653
Yo buscaré todo el medio
654
que presto sano se vea.
Aqui lhe toma o Físico o pulso e diz:
FÍSICO
655
Afloxen señor sus ays.
656
Cómo se halla en su penar?
PRÍNCIPE
657
Como me acho perguntais?
658
E como se pode achar
659
quem sempre se perde mais?
FÍSICO
Quintilla
660
La respuesta abre el camino.
661
Imagina de contino?
PRÍNCIPE
662
Não tenho outro mantimento
663
nem outro contentamento
664
senão o que em mi imagino.
Aqui entra a Rainha e diz:
RAINHA
Decima
665
Como se sente senhor?
666
Tem a febre mais piquena?
PRÍNCIPE
667
Responda-lhe minha pena.
FÍSICO
668
Conocido es su dolor
669
ora sea enhorabuena
670
tomada está la tristeza
671
a las manos. Que sentió?
672
Usaré de sutileza.
Diz contra el Rei:
673
Cúmpleme que solo yo
674
platique con vuestra alteza.
REI
Decima
675
Cheguemo-nos para cá.
RAINHA
676
Não deve desesperar
677
que enfim, se bem atentar
678
para tudo o tempo dá
679
tempo para se curar.
PRÍNCIPE
680
Que cura poderá ter
681
quem tem a cura senhora
682
no impossível haver?
RAINHA
683
Ficai-vos senhor embora
684
que vos não sei responder.
Vai-se a Rainha e diz el Rei:
REI
Decima
685
Neste mal que não comprendo
686
que meio dais de conselho?
FÍSICO
687
Señor, nada entiendo dello
688
y puesto que lo entiendo
689
yo quisiera no entendello.
FÍSICO
691
Porque tengo entendido
692
lo más malo de entender
693
para lo que puede ser
694
porque anda, señor, perdido
695
d’amores por mi mujer.
REI
Decima
696
Santo Deos que tal amor
697
lhe dá doença tão fera
698
que remédio achais melhor?
FÍSICO
699
Forzado será que muera
700
por que no muera mi honor.
REI
701
Pois como a um só herdeiro
702
deste reino não dareis
703
vossa molher? Pois podeis
704
que tudo faz o dinheiro
705
pois este não o enjeiteis
Decima
706
dai-lha, porque eu espero
707
de vos dar dinheiro e honra
708
quanto eu para ele quero.
FÍSICO
709
No tira el mucho dinero
710
la mancha de la deshonra.
REI
711
Ora bem pouco defeito
712
é pequice conhecida
713
quando deixa de ser feito
714
porque com ele dais vida
715
a quem vos dará proveito.
FÍSICO
Decima
716
Cuán fácilmente aporfía
717
quien en tal nunca se vio.
718
Del consejo que me dio
719
vuestra alteza que haría
720
si agora fuese yo?
REI
721
A molher que eu tivesse
722
dar-lha-ia. Oxalá
723
que ele a Rainha quisesse.
FÍSICO
724
Pues déla si le parece
725
que por ella muerto está.
REI
727
Sem dúvida tal sentistes?
FÍSICO
728
Sin duda, sin falsedad.
729
Pues, señor, ahora tomad
730
los consejos que me distes.
REI
731
Certamente que eu o via
732
em tudo quanto falava.
733
Como o vistes? Por que via?
FÍSICO
734
Nel pulso que se alteraba
735
si la vía o si la oía.
REI
Nona
736
Que maneira há de haver?
737
Que eu certo me maravilho
738
possa mais o amor de filho
739
do que pode o da molher.
740
Finalmente hei-lha de dar
741
que a ambos conheço o centro.
742
Quero-o ir levantar
743
e iremos para dentro
744
neste caso praticar.
Diz contra o Príncipe:
Decima
745
Levantai-vos filho di
746
o melhor que vós puderdes
747
e vinde-vos para aqui
748
porque enfim o que quiserdes
749
tudo havereis de mi.
PORTEIRO
751
Viestes em conjunção
752
a melhor que pode ser.
753
Haveis aqui de fazer
754
a trosquia a um rifão.
PAJEM
Oncena
755
Deixai-me, senhor, dizer
756
haveis isto de acabar:
757
Coração i bugiar
758
no estéis preso en cadenas
759
que pois o amor vos deu penas
760
que vos lanceis a voar.
PORTEIRO
761
Por certo que bem coprou.
PAJEM
762
Ora sabeis o que vai?
763
Antioco que casou
764
com a molher de seu pai
765
e o mesmo pai o ordenou.
PAJEM
Não o sei
767
porque dizem que a amava
768
e que só por ela andava
769
para morrer e el Rei
770
deu a quem a desejava.
PORTEIRO
771
Se o casa por querer bem
772
com a moça a quem ama
773
direi que a mim me inflama
774
o amor mais que ninguém.
PAJEM
775
Pois pedi-lhe a vossa dama.
PORTEIRO
776
Por são Gil, que ei-los cá vem.
Entra el Rei e Antioco com a Rainha pela mão, e diz el Rei:
REI
Decima
777
Que mais há que esperar?
778
Olhai que estranheza, vai
779
o muito amor ordenar
780
ir-se o filho namorar
781
de ũa molher de seu pai.
782
Querer bem foi sua dor
783
negar-lha será crueldade
784
assi que já foi bondade
785
usar eu de tal amor
786
e de tal humanidade.
Decima
787
Ela deixou de reinar
788
como fazia primeiro
789
por se com ele casar
790
e por amor verdadeiro
791
tudo se pode deixar.
792
Eu que nela tinha posto
793
todo o bem de meu cuidado
794
deixei mais que ela há deixado
795
que mais se deixa no gosto
796
que no poderoso estado.
Decima
797
Mas já que tudo isto vemos
798
hajam festas de prazer
799
as que melhor possam ser
800
porque em tão grandes extremos
801
extremos se hão de fazer.
802
Hajam cantos para ouvir
803
jogos, prazeres sem fundo
804
porque se quereis sentir
805
deste modo entrou o mundo
806
e assi há de sair.
Aqui vem os músicos e cantam e depois de cantarem saem-se todas as figuras, e diz
Martim Chinchorro:
MARTIM
807Ora, senhor, tomemos também nosso pandeiro e vamos festejar os noivos ou vamos consoar
com as figuras, porque me parece que esta é a mor festa que pode ser. Mas espere vossa
mercê. Ouviremos cantar, e na volta das figuras nos acolheremos. Moço, acende esse
molho de cavacos, porque faz escuro, não vamos dar connosco em algum atoleiro, onde
nos fique o ruço e as canastras.
ESCUDEIRO
808Não, senhor, mas o meu Pilarte irá com eles com um par de tições na mão e perdoem
o mau agasalhado. Mas daqui em diante sirvam-se desta pousada e não tenham isto por
palavras, porque essas e plumas, o vento as leva.