Gil Vicente

Auto da barca do inferno





Texto utilizado para esta edición digital:
Vicente, Gil. Auto da barca do inferno. [on-line] En: Camões, José (dir.) Teatro de autores portugueses do Séc. XVI. Base de dados textual Lisboa: Centro de Estudos de Teatro, Universidade de Lisboa. [20 dezembro 2016] Disponível em: http://www.cet-e-quinhentos.com/
Adaptación digital para EMOTHE:
  • Camões, José (Artelope)

[Argumento]

Representa-se na obra seguinte ũa prefiguração sobre a regurosa acusação que os ĩmigos fazem a todas as almas humanas, no ponto que per morte de seus terrestes corpos se partem. E por tratar desta matéria põe o autor por figura que no dito momento elas chegam a um profundo braço de mar, onde estão dous batéis: um deles passa pera a glória, o outro pera o inferno. É repartida em três partes: de cada embarcação ũa cena. Esta primeira é da viagem do Inferno.


Trata-se polas figuras seguintes:

primeiramente, a barca do inferno, Arrais e Barqueiro dela, diabos. Barca do paraíso, Arrais e Barqueiros dela, anjos. Passageiros: Fidalgo, Onzeneiro, Joane, Sapateiro, Frade, Florença, Alcouviteira, Judeu, Corregedor, Procurador, Enforcado, quatro Cavaleiros.


ARRAIS DO INFERNO
Oitava
1
À barca à barca oulá
2
que temos gentil maré
3
ora venha o caro a ré.

COMPANHEIRO
4
Feito feito.

DIABO
Bem está.
5
Vai ali muit’ieramá
6
e atesa aquele palanco
7
e despeja aquele banco
8
pera a gente que virá.
Oitava
9
À barca à barca u u
10
asinha que se quer ir.
11
Oh que tempo de partir
12
louvores a Berzebuu.
13
Ora sus que fazes tu?
14
Despeja todo esse leito.

COMPANHEIRO
15
Em bon’ora logo é feito.

DIABO
16
Abaixa aramá esse cu.
Oitava
17
Faze aquela poja lesta
18
e alija aquela driça.

COMPANHEIRO
19
Oh oh caça oh oh iça.

DIABO
20
Oh que caravela esta.
21
Põe bandeiras que é festa
22
verga alta âncora a pique.
23
Ó precioso dom Anrique
24
cá vindes vós que cousa é esta?

FIDALGO
Oitava
25
Esta barca onde vai ora
26
que assi está apercebida?

DIABO
27
Vai pera a ilha perdida
28
e há de partir logo ess'hora.

FIDALGO
29
Pera lá vai a senhora?

DIABO
30
Senhor a vosso serviço.

FIDALGO
31
Parece-me isso cortiço.

DIABO
32
Porque a vedes lá de fora.

FIDALGO
Oitava
33
Porém a que terra passais?

DIABO
34
Pera o inferno senhor.

FIDALGO
35
Terra é bem sem sabor.

DIABO
36
Quê? E também cá zombais?

FIDALGO
37
E passageiros achais
38
pera tal habitação?

DIABO
39
Vejo-vos eu em feição
40
pera ir ao nosso cais.

FIDALGO
Nona
41
Parece-te a ti assi.

DIABO
42
Em que esperas ter guarida?

FIDALGO
43
Que deixo na outra vida
44
quem reze sempre por mi.

DIABO
45
Quem reze sempre por ti
46
hi hi hi hi hi hi hi
47
e tu viveste a teu prazer
48
cuidando cá guarecer
49
porque rezem lá por ti.
Oitava
50
Embarca ou embarcai
51
que haveis d’ir à derradeira
52
mandai meter a cadeira
53
que assi passou vosso pai.

FIDALGO
54
Que que que. E assi lhe vai?

DIABO
55
Vai ou vem. Embarcai prestes
56
segundo lá escolhestes
57
assi cá vos contentai.
Oitava
58
Pois que já a morte passastes
59
haveis de passar o rio.

FIDALGO
60
Não há aqui outro navio?

DIABO
61
Não senhor que este fretastes
62
e já quando espirastes
63
me tínheis dado sinal.

FIDALGO
64
Que sinal foi esse tal?

DIABO
65
Do que vós vos contentastes.

FIDALGO
Oitava
66
A estoutra barca me vou.
67
Ou da barca pera onde is?
68
Ah barqueiros não m’ouvis?
69
Respondei-me. Oulá ou.
70
Pardeos aviado estou
71
quant’a isto é já pior
72
que gericocins salvanor
73
cuidam cá que sou eu grou.

ANJO
Oitava
74
Que mandais?

FIDALGO
Que me digais
75
pois parti tam sem aviso
76
se a barca do paraíso
77
é esta em que navegais.

ANJO
78
Esta é. Que lhe buscais?

FIDALGO
79
Que me leixeis embarcar.
80
Sou fidalgo de solar
81
é bem que me recolhais.

ANJO
Oitava
82
Não s’embarca tirania
83
neste batel divinal.

FIDALGO
84
Não sei por que haveis por mal
85
que entre minha senhoria.

ANJO
86
Pera vossa fantesia
87
mui pequena é esta barca.

FIDALGO
88
Pera senhor de tal marca
89
não há ‘qui mais cortesia?
Oitava
90
Venha a prancha e o atavio
91
levai-me desta ribeira.

ANJO
92
Não vindes vós de maneira
93
pera entrar neste navio
94
essoutro vai mais vazio
95
a cadeira entrará
96
e o rabo caberá
97
e todo vosso senhorio.
Oitava
98
Ireis lá mais espaçoso
99
vós e vossa senhoria
100
contando da tirania
101
de que éreis tam curioso.
102
E porque de generoso
103
desprezastes os pequenos
104
achar-vos-eis tanto menos
105
quanto mais fostes fumoso.

DIABO
Oitava
106
À barca à barca senhores.
107
Oh que maré tam de prata
108
um ventezinho que mata
109
e valentes remadores.
Cantando:
110
Vos me veniredes a la mano
111
a la mano me veniredes
112
e vós veredes
113
peixes nas redes.

FIDALGO
Oitava
114
Ao inferno todavia
115
inferno há i pera mi?
116
Oh triste enquanto vivi
117
nunca cri que o i havia
118
tive que era fantesia
119
folgava ser adorado
120
confiei em meu estado
121
e não vi que me perdia.
Oitava
122
Venha essa prancha e veremos
123
esta barca de tristura.

DIABO
124
Embarque vossa doçura
125
que cá nos entenderemos.
126
Tomareis um par de remos
127
veremos como remais
128
e chegando ao nosso cais
129
nós vos desembarcaremos.

FIDALGO
Oitava
130
Mas esperai-me aqui
131
tornarei à outra vida
132
ver minha dama querida
133
que se quer matar por mi.

DIABO
134
Que se quer matar por ti?

FIDALGO
135
Isto bem certo o sei eu.

DIABO
136
Oh namorado sandeu
137
o maior que nunca vi.

FIDALGO
Oitava
138
Era tanto seu querer
139
que m’escrevia mil dias.

DIABO
140
Quantas mentiras que lias
141
e tu morto de prazer.

FIDALGO
142
Pera que é escarnecer
143
que nam havia mais no bem?

DIABO
144
Assi vivas tu amém
145
como te tinha querer.

FIDALGO
Oitava
146
Isto quanto ò que eu conheço.

DIABO
147
Pois estando tu espirando
148
se estava ela requebrando
149
com outro de menos preço.

FIDALGO
150
Dá-me licença te peço
151
que vá ver minha molher.

DIABO
152
E ela por não te ver
153
despenhar-s’-á dum cabeço.
Oitava
154
Quanto ela hoje rezou
155
antre seus gritos e gritas
156
foi dar glórias infinitas
157
a quem na desabafou.

FIDALGO
158
Quant’a ela bem chorou.

DIABO
159
E não há i choro d’alegria?

FIDALGO
160
E as lástimas que dezia?

DIABO
161
Sua mãe lhas ensinou.
Oitava
162
Entrai meu senhor entrai
163
venha a prancha ponde o pé.

FIDALGO
164
Entremos pois que assi é.

DIABO
165
Ora agora descansai
166
passeai e sospirai
167
entanto virá mais gente.

FIDALGO
168
Oh barca como és ardente
169
maldito quem em ti vai.
Diz o Diabo ao Moço da cadeira:
Oitava
170
Tu seu moço vai-te di
171
que a cadeira é cá sobeja
172
cousa qu’esteve na igreja
173
nam s’ há d’embarcar aqui.
174
Cá lha darão de marfi
175
marchetada de dolores
176
com tais modos de lavores
177
que estará fora de si.
Quadra
178
À barca à barca boa gente
179
que queremos dar à vela
180
chegar ela chegar ela
181
muitos e de boa mente.
Chega um Onzeneiro e diz:
Quadra
182
Oh que barca tam valente
183
pera onde caminhais?

DIABO
184
Oh que má hora venhais
185
Onzeneiro meu parente.
Oitava
186
Como tardastes vós tanto?

ONZENEIRO
187
Mais quisera eu lá tardar.
188
Na safra do apanhar

189
me deu saturno quebranto.

DIABO
190
Ora muito m’espanto

191
nam vos livrar o dinheiro.

ONZENEIRO
192
Nem tam sóis pera o barqueiro

193
nam me deixaram nem tanto.

DIABO
Oitava
194
Ora entrai entrai aqui.

ONZENEIRO
195
Nam hei eu i d’embarcar.

DIABO
196
Oh que gentil recear
197
e que cousas pera mi.

ONZENEIRO
198
Ind’agora faleci
199
deixai-me buscar batel.

DIABO
200
Pesar de Jam Pimintel
201
por que nam irás aqui?

ONZENEIRO
Oitava
202
E pera onde é a viagem?

DIABO
203
Pera onde tu hás d’ir.
204
Estamos pera partir
205
nam cures de mais linguagem.

ONZENEIRO
206
Mas pera onde é a passagem?

DIABO
207
Pera a infernal comarca.

ONZENEIRO
208
Dixe nam m’embarco eu nessa barca
209
estoutra tem avantagem.
Vai-se à barca do Anjo e diz:
Oitava
210
Ou da barca oulá ou
211
haveis logo de partir?

ANJO
212
E onde queres tu ir?

ONZENEIRO
213
Eu pera o paraíso vou.

ANJO
214
Pois quant’eu bem fora estou
215
de te levar pera lá.
216
Essoutra te levará
217
vai pera quem t’enganou.

ONZENEIRO
Oitava
218
Porquê?

ANJO
Porque esse bolsão
219
tomará todo navio.

ONZENEIRO
220
Juro a Deos que vai vazio.

ANJO
221
Nam já no teu coração.

ONZENEIRO
222
Lá me ficam de rondão
223
vinte e seis milhões nũa arca
224
pois que onzena tanto abarca
225
nam lhe dais embarcação?
Torna ao Diabo e diz:
Oitava
226
Oulá ou demo barqueiro
227
sabeis vós no que m’eu fundo:
228
quero lá tornar ò mundo
229
e trazê-lo meu dinheiro.
230
Que aqueloutro marinheiro
231
porque me vê vir sem nada
232
dá-me tanta borregada
233
como arrais lá do Barreiro.

DIABO
Oitava
234
Entra entra e remarás
235
nam percamos mais maré.

ONZENEIRO
236
Todavia.

DIABO
237
               Por força é
238
que te pês cá entrarás
239
irás servir Satanás
240
pois que sempre t’ajudou.

ONZENEIRO
241
Oh triste quem me cegou.

DIABO
242
Cal-te que cá chorarás.

Entrando no batel diz ao Fidalgo:

ONZENEIRO
Oitava
243
Santa Joana de Valdês
244
cá é vossa senhoria.

FIDALGO
245
Dá ò demo a cortesia.

DIABO
246
Ouvis? Falai vós cortês.
247
Vós Fidalgo cuidareis
248
que estais em vossa pousada?
249
Dar-vos-ei tanta pancada
250
c’um remo que arrenegueis.
Vem um Parvo e diz ao Arrais do Inferno:
Oitava
251
Ou daquela.

DIABO
Quem é?

PARVO
Eu sou.
252
É esta naviarra nossa?

DIABO
253
De quem?

PARVO
Dos tolos.

DIABO
Vossa.
254
Entra.

PARVO
De pulo ou de voo?
255
Oh pesar de meu avô
256
soma vim a adoecer
257
e fui má hora morrer
258
e nela pera mi só.

DIABO
Oitava
259
De que morreste?

PARVO
De quê?
260
Samica de caganeira.

DIABO
261
De quê?

PARVO
262
             De cagamerdeira
263
má ravugem que te dê.

DIABO
264
Entra põe aqui o pé.

PARVO
265
Oulá não tombe o zambuco.

DIABO
266
Entra tolazo enuco
267
que se nos vai a maré.

PARVO
Oitava
268
Aguardai aguardai lá.
269
E onde havemos nós d’ir ter?

DIABO
270
Ao porto de Lucifer.

PARVO
271
Como?

DIABO
272
            Ò inferno, entra cá.

PARVO
273
Ò inferno? Ieramá.
274
Hiu hiu barca do cornudo
275
beiçudo beiçudo
276
rachador d’Alverca hu ha.
Oitava
277
Capateiro da Candosa
278
antrecosto de carrapato
279
sapato sapato
280
filho da grande aleivosa.
281
Tua molher é tinhosa
282
e há de parir um sapo
283
chentado no guardanapo
284
neto da cagarrinhosa.
Oitava
285
Furta cebolas hiu hiu
286
escomungado nas igrejas
287
burrela cornudo sejas
288
toma o pão que te caiu.
289
A molher que te fogiu
290
pera a ilha da Madeira
291
ratinho da Giesteira
292
o demo que te pariu.
Oitava
293
Hiu hiu lanço-te ũa pulha
294
de pica na aquela
295
hiu hiu caga na vela
296
cabeça de grulha.
297
Perna de cigarra velha
298
pelourinho da Pampulha
299
rabo de forno de telha.
Chegando à barca da glória diz:
Oitava
300
Ou da barca.

ANJO
Tu que queres?

PARVO
301
Quereis-me passar além?

ANJO
302
Quem és tu?

PARVO
Nam sou ninguém.

ANJO
303
Tu passarás se quiseres
304
porque em todos teus fazeres
305
per malícia nam erraste.
306
Tua simpreza t’abaste
307
pera gozar dos prazeres.
Quadra
308
Espera entanto per i
309
veremos se vem alguém
310
merecedor de tal bem
311
que deva d’entrar aqui.
Vem um Sapateiro carregado de formas e diz na barca do inferno:
Quadra
312
Ou da barca.

DIABO
Quem vem i?
313
Santo Sapateiro honrado
314
como vens tam carregado.

SAPATEIRO
315
Mandaram-me vir assi.
Oitava
316
Mas pera onde é a viagem?

DIABO
317
Pera a terra dos danados.

SAPATEIRO
318
E os que morrem confessados
319
onde tem sua passagem?

DIABO
320
Não cures de mais linguagem
321
que esta é tua barca esta.

SAPATEIRO
322
Renegaria eu da festa
323
e da barca e da barcagem.
Oitava
324
Como poderá isso ser
325
confessado e comungado?

DIABO
326
E tu morreste escomungado
327
e nam no quiseste dizer
328
esperavas de viver.
329
Calaste dez mil enganos
330
tu roubaste bem trinta anos
331
o povo com teu mister.
Oitava
332
Embarca eramá pera ti
333
que há já muito que te espero.

SAPATEIRO
334
Digo-te que renam quero.

DIABO
335
Digo-te que si ressi.

SAPATEIRO
336
Quantas missas eu ouvi
337
não m’hão elas de prestar?

DIABO
338
Ouvir missa então roubar
339
é caminho pera aqui.

SAPATEIRO
Oitava
340
E as ofertas que darão
341
e as horas dos finados?

DIABO
342
E os dinheiros mal levados
343
que foi da satisfação?

SAPATEIRO
344
Oh nam praza ò cordovão
345
nem à puta da badana
346
se é esta boa tranquitana
347
em que se vê Jan’Antão.
Oitava
348
Ora juro a Deos que é graça.
Vai à barca do paraíso:
349
Ou da santa caravela
350
podereis levar-me nela?

ANJO
351
A carrega t’embaraça.

SAPATEIRO
352
Não há mercê que me Deos faça?
353
Isto u xiquer irá.

ANJO
354
Essa barca que lá está
355
leva quem rouba de praça.
Oitava
356
Ó almas embaraçadas.

SAPATEIRO
357
Ora eu me maravilho
358
haverdes por gram peguilho
359
quatro forminhas cagadas
360
que podem bem ir chentadas
361
no cantinho desse leito.

ANJO
362
Se tu viveras dereito
363
elas foram cá escusadas.

SAPATEIRO
Oitava
364
Assi que determinais
365
que vá coser ao inferno?

ANJO
366
Escrito estás no caderno
367
das ẽmentas infernais.

SAPATEIRO
368
Pois diabos que aguardais?
369
Vamos venha a prancha logo
370
e levai-me àquele fogo
371
pera que é aguardar mais?

Entra um Frade com ũa Moça pola mão e vem dançando, fazendo a baixa com a boca, e acabando diz o Diabo:

DIABO
Oitava
372
Que é isso padre que vai lá?

FRADE
373
Deo gracias, sam cortesão.

DIABO
374
Sabeis também o tordião?

FRADE
375
É mal que m’esquecerá.

DIABO
376
Essa dama há d’entrar cá?

FRADE
377
Nam sei onde embarcarei.

DIABO
378
Ela é vossa?

FRADE
379
                   Eu nam sei.
380
Por minha a trago eu cá.

DIABO
Oitava
381
E nam vos punham lá grosa
382
nesse convento sagrado?

FRADE
383
Assi fui bem açoutado.

DIABO
384
Que cousa tam preciosa.
385
Entrai padre reverendo.

FRADE
386
Pera onde levais gente?

DIABO
387
Pera aquele fogo ardente
388
que nam temeste vivendo.

FRADE
Quadra
389
Juro a Deos que nam t’entendo.
390
E este hábito nam me val?

DIABO
391
Gentil padre mundanal
392
a Berzabu vos encomendo.

FRADE
Oitava
393
Corpo de Deos consagrado
394
pola fé de Jesu Cristo
395
que eu nam posso entender isto
396
eu hei de ser condenado?
397
Um padre tam namorado
398
e tanto dado a virtude
399
assi Deos me dê saúde
400
que estou maravilhado.

DIABO
Oitava
401
Nam façamos mais detença
402
embarcai e partiremos
403
tomareis um par de remos.

FRADE
404
Nam ficou isso na avença.

DIABO
405
Pois dada está já a sentença.

FRADE
406
Pardeos essa seria ela
407
nam vai em tal caravela
408
minha senhora Florença.
Oitava
409
Como por ser namorado
410
e folgar com ũa molher
411
se há um frade de perder
412
com tanto salmo rezado?

DIABO
413
Ora estás bem aviado.

FRADE
414
Mais estás bem corregido.

DIABO
415
Devoto padre e marido
416
haveis de ser cá pingado.

FRADE
Oitava
417
Mantenha Deos esta coroa.

DIABO
418
Ó padre frei capacete
419
cuidei que tínheis barrete.

FRADE
420
Sabei que fui da pessoa.
421
Esta espada é roloa
422
e este broquel rolão.

DIABO
423
Dê vossa reverência lição
424
d’isgrima que é cousa boa.

FRADE
Quadra
425
Que me praz. Dêmos caçada:
Esgrime.
426
entam logo um contra sus
427
um fendente ora sus
428
esta é a primeira levada.
Oitava
429
Alevantai a espada
430
metei o diabo na cruz
431
como o eu agora pus
432
saí co a espada rasgada
433
e que fique anteparada
434
talho, largo, um revés
435
e logo colher os pés
436
que todo o al nam é nada.
Oitava
437
Quando o recolher se tarda
438
o ferir nam é prudente
439
eia sus mui largamente
440
cortai na segunda guarda.
441
Guarde-me Deos d’espingarda
442
ou de barão denodado
443
mas aqui estou guardado
444
como a palha n’albarda.
Oitava
445
Saio com mea espada
446
oulá guardar as queixadas.

DIABO
447
Oh que valentes levadas.

FRADE
448
Inda isto nam é nada.
449
Dêmos outra vez caçada:
450
contra sus ora um fendente
451
e cortando largamente
452
eis aqui a seista guarda.
Oitava
453
Daqui se sai com ũa guia
454
e um revés da primeira
455
esta é quinta verdadeira
456
oh quantos daqui feria.
457
Padre que tal aprendia
458
no inferno há d’haver pingos?
459
Ah nam praza a sam Domingos
460
com tanta descortesia.
Quadra
461
Prossigamos nossa história
462
nam façamos mais detença
463
dai cá mão senhora Florença
464
vamos à barca da glória.
Chega à barca da glória e diz:
Oitava
465
Deo gracias há cá lugar
466
pera minha reverença
467
e a senhora Florença
468
polo meu há lá d’entrar.

PARVO
469
Andar muit’ieramá.
470
Furtaste esse trinchão frade.

FRADE
471
Senhora dá-me à vontade
472
que este feito mal está.
Oitava
473
Vamos onde havemos d’ir
474
nam praza a Deos co a ribeira
475
eu nam vejo aqui maneira
476
senam enfim concrudir.

DIABO
477
Padre haveis logo de vir.

FRADE
478
Si tomai-me lá Florença
479
e cumpramos a sentença
480
ordenemos de partir.
Vem ũa alcouviteira per nome Brísida Vaz e chegando à barca do inferno diz:
Oitava
481
Oulá da barca oulá.

DIABO
482
Quem chama?

BRÍSIDA VAZ
483
                       Brísida Vaz.

DIABO
484
Ea aguarda-me rapaz
485
por que nam vem ela já?

COMPANHEIRO
486
Diz que nam há de vir cá
487
sem Joana de Valdeis.

DIABO
488
Entrai vós e remareis.

BRÍSIDA VAZ
489
Nam quero eu entrar lá.

DIABO
Oitava
490
Que saboroso arrecear.

BRÍSIDA VAZ
491
Nam é essa barca a qu’eu cato.

DIABO
492
E trazeis vós muito fato?

BRÍSIDA VAZ
493
O que me convém levar.

DIABO
494
Que é o que haveis d’embarcar?

BRÍSIDA VAZ
495
Seiscentos virgos postiços
496
e três arcas de feitiços
497
que nam podem mais levar.
Oitava
498
Três almários de mentir
499
e cinco cofres d’enleos
500
e alguns furtos alheos
501
assi em jóias de vestir
502
guarda-roupa d’encobrir
503
enfim casa movediça
504
um estrado de cortiça
505
com dez coxins d’embair.
Oitava
506
A mor carrega que é
507
essas moças que vendia.
508
Daquesta mercadaria
509
trago eu muita à bofé.

DIABO
510
Ora ponde aqui o pé.

BRÍSIDA VAZ
511
Ui e eu vou pera o paraíso.

DIABO
512
E quem te dixe a ti isso?

BRÍSIDA VAZ
513
Lá hei d’ir desta maré.
Oitava
514
Eu som ũa mártele tal
515
açoutes tenho eu levados
516
e tormentos soportados
517
que ninguém me foi igual.
518
Se eu fosse ao fogo infernal
519
lá iria todo o mundo.
520
A estoutra barca cá em fundo
521
me vou eu que é mais real.
E chegando à barca da glória diz ao Anjo:
Oitava
522
Barqueiro mano meus olhos
523
prancha a Brísida Vaz.

ANJO
524
Eu nam sei quem te cá traz.

BRÍSIDA VAZ
525
Peço-vo-lo de giolhos.
526
Cuidais que trago piolhos?
527
Anjo de Deos minha rosa
528
eu sou Brísida a preciosa
529
que dava as moças òs molhos.
Oitava
530
A que criava as meninas
531
pera os cónegos da sé.
532
Passai-me por vossa fé
533
meu amor minhas boninas
534
olhos de perlinhas finas.
535
E eu sou apostolada
536
angelada e martelada
537
e fiz obras mui divinas.
Oitava
538
Santa Úrsula nam converteo
539
tantas cachopas com’eu
540
todas salvas polo meu
541
que nenhũa se perdeo.
542
E prouve àquele do ceo
543
que todas acharam dono
544
cudais que dormia eu sono?
545
Nem ponta e nam se perdeo.

ANJO
Oitava
546
Ora vai lá embarcar
547
nam estês emportunando.

BRÍSIDA VAZ
548
Pois estou-vos alegando
549
o porque m’haveis de levar.

ANJO
550
Nam cures d’emportunar
551
que nam podes ir aqui.

BRÍSIDA VAZ
552
E que má hora eu servi
553
pois nam m’há d’aproveitar.
Oitava
554
Ou barqueiros da má hora
555
ponde a prancha que eis me vou
556
e tal fada me fadou
557
que pareço mal cá fora.

DIABO
558
Ora entrai minha senhora
559
e sereis bem recebida
560
se vivestes santa vida
561
vós o sentireis agora.
Vem um Judeu com um bode às costas e diz ao Diabo:
Oitava
562
Que vai lá ou marinheiro?

DIABO
563
Oh que má hora vieste.

JUDEU
564
Cuja é esta barca que preste?

DIABO
565
Esta barca é do barqueiro.

JUDEU
566
Passai-me por meu dinheiro.

DIABO
567
E esse bode há cá de vir?

JUDEU
568
O bode também há d’ir.

DIABO
569
Oh que honrado passageiro.

JUDEU
Oitava
570
Sem bode como irei lá?

DIABO
571
Pois eu nam passo cabrões.

JUDEU
572
Eis aqui quatro tostões
573
e mais se vos pagará
574
por vida de Semifará
575
que me passeis o cabrão.
576
Quereis mais outro tostão?

DIABO
577
Nem tu nam hás de vir cá.

JUDEU
Oitava
578
Por que nam irá o Judeu
579
onde vai Brísida Vaz?
Fala ao Fidalgo:
580
Ao senhor meirinho apraz?
581
Senhor meirinho irei eu?

DIABO
582
E ao Fidalgo quem lhe deu
583
o mando deste batel?

JUDEU
584
Corregedor coronel
585
castigai este sandeu.
Oitava
586
Azará pedra meúda
587
lodo, chanto, fogo, lenha
588
caganeira que te venha
589
má corrença que t’acuda.
590
Por el Deu que te sacuda
591
com a beca nos focinhos
592
fazes burla dos meirinhos
593
dize filho da cornuda.

PARVO
Oitava
594
Furtaste a chiba cabrão.
595
Pareceis-me vós a mim
596
carrapato d’Alcoutim
597
enxertado em camarão.

DIABO
598
Judeu lá te levarão
599
porque hão d’ir descarregados.

PARVO
600
E s’ele mijou nos finados
601
no adro de sam Gião.
Oitava
602
E comia a carne da panela
603
no dia de nosso senhor
604
e mais ele salvanor
605
cada vez mija na aquela.

DIABO
606
Ora sus dêmos à vela
607
vós Judeu ireis à toa
608
que sois mui roim pessoa
609
levai o cabrão na trela.
Vem um Corregedor e diz chegando à barca do inferno:
Oitava
610
Ou da barca.

DIABO
Que quereis?

CORREGEDOR
611
Está aqui o senhor juiz.

DIABO
612
Ó amador de perdiz
613
quantos feitos que trazeis.

CORREGEDOR
614
No meu ar conhecereis
615
qu’eles nam vem de meu jeito.

DIABO
616
Como vai lá o dereito?

CORREGEDOR
617
Nestes feitos o vereis.

DIABO
Oitava
618
Ora pois entrai veremos
619
que diz i nesse papel.

CORREGEDOR
620
E onde vai o batel?

DIABO
621
No inferno vos poremos.

CORREGEDOR
622
Como à terra dos demos
623
há d’ir um corregedor?

DIABO
624
Santo descorregedor
625
embarcai e remaremos.
Oitava
626
Ora entrai pois que viestes.

CORREGEDOR
627
Non est de regule juris não.

DIABO
628
Ita ita dai cá a mão
629
remareis um remo destes
630
fazei conta que nacestes
631
pera nosso companheiro.
632
Que fazes tu barzoneiro?
633
Faze-lhe essa prancha prestes.

CORREGEDOR
Oitava
634
Oh renego da viagem
635
e de quem m’há de levar.
636
Há ‘qui meirinho do mar?

DIABO
637
Nam há cá tal costumagem.

CORREGEDOR
638
Nam entendo esta barcagem
639
nem hoc non potest esse.

DIABO
640
Se ora vos parecesse
641
que nam sei mais que linguagem.
Oitava
642
Entrai entrai Corregedor.

CORREGEDOR
643
Ou videtis qui petatis
644
super jure majestatis
645
tem vosso mando vigor?

DIABO
646
Quando éreis ouvidor
647
nonne accepistis rapina?
648
Pois ireis pola bolina
649
onde nossa mercê for.
Oitava
650
Oh que isca esse papel
651
pera um fogo que eu sei.

CORREGEDOR
652
Domine memento mei.

DIABO
653
Non es tempus bacharel
654
imbarquemini in batel
655
quia judicastis malícia.

CORREGEDOR
656
Semper ego in justicia
657
fecit e bem por nivel.

DIABO
Oitava
658
E as peitas dos judeus
659
que vossa molher levava?

CORREGEDOR
660
Isso eu nam no tomava
661
eram lá percalços seus
662
non sunt peccatus meus
663
peccavit uxore mea.

DIABO
664
Et vobis quoque cum ea
665
nemo timuistis Deus.
Oitava
666
A largo modo adqueristis
667
sanguinis laboratorum
668
ignorantes peccatorum
669
ut quid eos non audistis.

CORREGEDOR
670
Vós Arrais nonne legistis
671
que o dar quebra os penedos?
672
Os dereitos estão quedos
673
si aliquid tradidistis.

DIABO
Oitava
674
Ora entrai nos negros fados
675
ireis ao lago dos cães
676
e vereis os escrivães
677
como estão tam prosperados.

CORREGEDOR
678
E na terra dos danados
679
estão os evangelistas?

DIABO
680
Os mestres das burlas vistas
681
lá estão bem fraguados.
Vem um Procurador e diz o Corregedor quando o vê:
Oitava
682
Ó senhor Procurador.

PROCURADOR
683
Beijo-vo-las mãos juiz.
684
Que diz esse Arrais que diz?

DIABO
685
Que sereis bom remador.
686
Entrai bacharel doutor
687
e ireis dando à bomba.

PROCURADOR
688
E este barqueiro zomba
689
jogatais de zombador?
Oitava
690
Essa gente que i está
691
pera onde a levais?

DIABO
692
Pera as penas infernais.

PROCURADOR
693
Dixe nam vou eu pera lá.
694
Outro navio está cá
695
muito milhor assombrado.

DIABO
696
Ora estais bem aviado
697
entrai muit’ieramá.

CORREGEDOR
Oitava
698
Confessastes-vos doutor?

PROCURADOR
699
Bacharel sou dou-me ò demo.
700
nam cuidei que era estremo
701
nem de morte minha dor.
702
E vós senhor Corregedor?

CORREGEDOR
703
Eu mui bem me confessei
704
mas tudo quanto roubei
705
encobri ao confessor.

PROCURADOR
Oitava
706
Porque se o nam tornais
707
nam vos querem absolver
708
e é mui mau de volver
709
depois que o apanhais.

DIABO
710
Pois por que nam embarcais?

CORREGEDOR
711
Quia esperamus in Deo.

DIABO
712
Imbarquemini in barco meo
713
pera que esperatis mais?
Vão-se à barca da glória e diz o Corregedor:
Oitava
714
Ou Arrais dos gloriosos
715
passai-nos nesse batel.

ANJO
716
Ó pragas pera papel
717
pera as almas odiosos
718
como vindes preciosos
719
sendo filhos da ciência.

CORREGEDOR
720
Oh habeatis clemência
721
e passai-nos como vossos.

PARVO
Oitava
722
Ou homens dos breviairos
723
rapinastis coelhorum
724
e pernis perdigatorum
725
e mijais nos campanairos.

CORREGEDOR
726
Anjos nam sejais contrairos
727
pois nam temos outra ponte.

PARVO
728
Beleguinis ubi sunte
729
ego latinus macairos.

ANJO
Oitava
730
A justiça divinal
731
vos manda vir carregados
732
por que vades embarcados
733
nesse batel infernal.

CORREGEDOR
734
Oh nam praza a sam Marçal
735
co a ribeira nem c’o rio
736
cuidam lá que é desvario
737
haver cá tamanho mal.
Oitava
738
Venha a negra prancha cá
739
vamos ver este segredo.

PROCURADOR
740
Diz um teisto do degredo.

DIABO
741
Entrai que cá se dirá.
Entram no batel dos danados e diz o Corregedor a Brísida Vaz:
742
Esteis muito aramá
743
senhora Brísida Vaz.

BRÍSIDA VAZ
744
Já siquer estou em paz
745
que nam me leixáveis lá.
Oitava
746
Cada hora encoroçada:
747
justiça que manda fazer.

CORREGEDOR
748
E vós tornar a tecer
749
e urdir outra meada.

BRÍSIDA VAZ
750
Dizede juiz d’alçada
751
vem já Pero de Lisboa?
752
Levá-lo-emos à toa
753
e irá desta barcada.
Vem um Enforcado e diz o Diabo:
Oitava
754
Venhais embora Enforcado
755
que diz lá Gracia Moniz?

ENFORCADO
756
Eu vos direi que ele diz:
757
que fui bem aventurado
758
que polos furtos que eu fiz
759
sou santo canonizado
760
pois morri dependurado
761
como o tordo na buiz.

DIABO
Oitava
762
Entra cá e remarás
763
até as portas do inferno.

ENFORCADO
764
Nam é essa a nau que eu governo.

DIABO
765
Entra que inda caberás.

ENFORCADO
766
Pesar de sam Barrabás.
767
Se Garcia Moniz diz
768
que os que morrem como eu fiz
769
são livres de Satanás.
Oitava
770
E disse que a Deos prouvera
771
que fora ele o enforcado
772
e que fosse Deos louvado
773
que em bôora eu nacera
774
e que o senhor m’escolhera
775
e por bem vi beleguins
776
e com isto mil latins
777
como s’eu latim soubera.
Oitava
778
E no passo derradeiro
779
me disse nos meus ouvidos
780
que o lugar dos escolhidos
781
era a forca e o Limoeiro.
782
Nem guardião de mosteiro
783
nam tinha mais santa gente
784
como Afonso Valente
785
o que agora é cacereiro.

DIABO
Oitava
786
Dava-te consolação
787
isso ou algum esforço?

ENFORCADO
788
C’o baraço no pescoço
789
mui mal presta a pregação.
790
Ele leva a devação
791
que há de tornar a jentar
792
mas quem há d’estar no ar
793
avorrece-lhe o sermão.

DIABO
Oitava
794
Entra entra no batel
795
que pera o inferno hás d’ir.

ENFORCADO
796
E Moniz há de mentir?

797
Dixe-me: com sam Miguel
798
irás comer pão e mel
799
como fores enforcado.
800
Ora já passei meu fado
801
e já feito é o burel.
Oitava
802
Agora nam sei que é isso
803
nam me falou em ribeira
804
nem barqueiro nem barqueira
805
senam logo ò paraíso.
806
E isto muito em seu siso
807
e que era santo o meu baraço
808
porém nam sei que aqui faço
809
ou se era mentira isto.

DIABO
Oitava
810
Falou-te no purgatório?

ENFORCADO
811
Diz que foi o Limoeiro
812
e ora por ele o salteiro
813
e o pregão vitatório.
814
E que era muito notório
815
que aqueles deciprinados
816
eram horas dos finados
817
e missa de sam Gregório.

DIABO
Oitava
818
Ora entra pois hás d’entrar
819
nam esperes por teu pai.

ENFORCADO
820
Entremos pois que assi vai.

DIABO
821
Este foi bom embarcar.
822
Eia todos apear
823
que está em seco o batel.
824
Vós doutor bota batel

825
Fidalgo saltai ò mar.

Vem quatro fidalgos Cavaleiros da Ordem de Cristo que morreram nas partes d’África e vem cantando a quatro vozes a letra que se segue:

Cantiga
826
À barca à barca segura
827
guardar da barca perdida
828
à barca à barca da vida.
829
Senhores que trabalhais
830
pola vida transitória
831
memória por Deos memória
832
deste temeroso cais.
833
À barca à barca mortais
834
porém na vida perdida
835
se perde a barca da vida.

DIABO
Oitava
836
Cavaleiros vós passais
837
e nam me dizeis pera onde is?

CAVALEIRO
838
E vós Satam presomis?
839
Atentai com quem falais.

OUTRO CAVALEIRO
840
E vós que nos demandais?
841
Siquer conhecei-nos bem
842
morremos nas partes dalém
843
e nam queirais saber mais.

ANJO
Oitava
844
Ó Cavaleiros de Deos
845
a vós estou esperando
846
que morrestes pelejando
847
por Cristo senhor dos céus.
848
Sois livres de todo mal
849
santos por certo sem falha
850
que quem morre em tal batalha
851
merece paz eternal.

Aqui fenece a primeira cena.